quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

TRÊS CARTAS EM LIVROS DE FICÇÃO



GÊNERO EPISTOLAR EM OBRAS DE FICÇÃO

O gênero epistolar sempre teve seus cultores na literatura universal, tanto em prosa como em poesia. A literatura portuguesa e a brasileira, em todas as épocas literárias, apresentam grandes autores de epístolas. Há, inclusive, muitas obras que se estruturam com o apoio único ou preponderante de cartas.
Aqui se incluem três cartas retiradas de romances brasileiros de diferentes épocas e que não São unicamente de cartas. Elas aparecem acidentalmente na narrativa.
É comum encontrarmos cartas em obras de ficção. O autor, para mudar o foco narrativo, faz uso desse recurso estilístico. Os escritores selecionados foram o carioca Machado de Assis, o paulista Oswald de Andrade e o paranaense Miguel Sanches Neto.

1. UMA CARTA EXTRAORDINÁRIA (Machado de Assis)
Meu caro Brás Cubas,
Há tempos, no Passeio Público, tomei-lhe de empréstimo um relógio. Tenho a satisfação de restituir-lho com esta carta. A diferença é que não é o mesmos porém outro, não digo superior, mas igual ao primeiro. Que voulez-vous monseigneur?- como dizia Fígaro, - c'est la misère. Muitas cousas se deram depois do nosso encontro; irei cortá-las pelo miúdo, se me não fechar a porta. Saiba que já não trago aquelas botas caducas, nem envergo uma famosa sobrecasaca cujas abas se perdiam na noite dos tempos. Cedi o meu degrau da escada de S. Francisco; finalmente, almoço.
Dito isto, peço licença para ir um dia destes expor-lhe um trabalho, fruto de longo estudo, um novo sistema de filosofia, que não só explica e descreve a origem e a consumação das cousas, como faz dar um grande passo adiante de Zenon e Sêneca, cujo estoicismo era um verdadeiro brinco de crianças ao pé da minha receita moral. E singularmente espantoso esse meu sistema; retifica o espírito humano, suprime a dor, assegura a felicidade, e enche de imensa glória o nosso país. Chamo-lhe Humanitismo, de Humanitas, princípio das cousas. Minha primeira idéia revelava uma grande enfatuação; era chamar-lhe borbismo, de Borba; denominação vaidosa, além de rude e molesta. E com certeza exprimia menos. Verá, meu caro Brás Cubas, verá que é deveras um monumento; e se alguma cousa há que possa fazer-me esquecer as amarguras da vida, é o gosto de haver enfim apanhado a verdade e a felicidade. Ei-las na minha mão essas duas esquivas; após tantos séculos de lutas, pesquisas, descobertas, sistemas e quedas, ei-las nas mãos do homem. Até breve, meu caro Brás Cubas. Saudades do
Velho amigo
JOAQUIM BORBA DOS SANTOS.
(ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: W. C. Jackson, s. d., p. 275-6.)


130. RESERVA (Oswald de Andrade)
“21 de Abril
Seu Dr.
Peguei hoje na pena para vos Felicitar os nossos antes Passado sendo um dia de grande gala, para nós no nosso Grande Brasil sendo o dia do nobre Brasileiro Tiradentes que foi ezecutado na forca, mais tudo passa vamos tratar do nosso futuro que é melhor os passado eram bobos, por aqui todos Bom grassas a Deus o mesmo a todos que aí estão. Candoca, Rufina, Delina, Maria José, Bermira e a filha estão todos na mesma. Só eu saí sorteado para o Regemento Suprimetar de Paracatu no Goiás e queria que V. S. desse as providências para mim ficar em Caçapava no Regemento de Infantaria Montada fica mais perto aqui eu estudarei para ser a Luz de minha família. Representar talento com meu falecido avô Capitão Benedito da Força Pública, não estudando agora, quando mais o tempo passa e a Velhice chega conduz a Tristeza, porque este mundo é um passatempo que nós temos essa é a Verdade! Só temos que tratar do Futuro neste mundo não vale nada a Beleza as Festas as Inlusão do mundo só o talento com o grande Rio Branco o Ouro Preto, O Padre feijó, José Bonifácio, Rui Barbosa e outros que nem se sabe.
Seu criado às ordens
Minão da Silva”
(ANDRADE, Oswald de. Memórias sentimentais de João Miramar. Rio de Janeiro: Globo, 1990.)

2. RESPOSTA AO PROFESSOR AFRICANO (Miguel Sanches Neto)
Antes de mais nada, comunico que não pretendo responder ponto por ponto às suas questões, inclusive porque a maioria delas sequer merece resposta. Mas como o senhor solicita um pronunciamento meu, redijo esta carta que vai tratar maneira genérica o Caso Jabuticaba.
A vida particular de uma pessoa não é algo totalmente isolado da vida pública, principalmente quando estes dois espaços são confundidos. O senhor recebe constantemente em sua casa uma família que tem um filho estudando nesta escola. O aluno também freqüenta a casa do senhor e isso dá a ele credenciais para ser um braço do diretor, usado contra os demais alunos.
Assim, este comportamento particular do senhor diretor interfere, sim, na vida das demais pessoas e é de interesse não só meu, mas de toda a escola. Ele cria privilégios e gera injustiças. Está, portanto, ferindo o direito de outras pessoas. E, na minha opinião, não pode e não deve continuar.
Esse negócio de discriminação dos negros é algo que realmente não entendo. Nasci e cresci em um país em que todas as raças convivem misturadas. Não há, para mim, diferença entre um negro, um japonês ou um alemão. O que há é a diferença entre a pessoa que age corretamente e a que age de forma errada. Logo, discriminação racial não é um assunto sobre o qual eu possa falar, principalmente na {ren­te do senhor, um português que viveu anos da exploração dos negros de Angola, e que só deixou a África quando Por­tugal perdeu o poder. Passemos por cima deste item, portanto.
Agora, se o senhor quer saber se tenho procuração para falar em nome da minha turma, aviso que não, mas tenho um abaixo-assinado que vale muito mais. E eu não precisa­ria nem deste abaixo-assinado porque vivemos num país democrático, onde está assegurado o direito de questionar qualquer abuso de poder. A ditadura acabou há dois anos, senhor diretor. Sinto muito ter que ser o anunciador desta triste novidade.
Ah, mas existem ainda algumas regiões dominadas por Portugal. Quem sabe o senhor não encontre nelas ó ambi­ente propício para exercer a opressão?
Cordialmente,
Miguel Sanches Neto
(NETO, Miguel Sanches. Chove sobre a minha infância. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 194-5.)


segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

TRÊS SONETOS DE FLORBELA ESPANCA

Florbela nasceu no dia 8 de dezembro de 1894, em Vila Viçosa, distrito de Évora, na região do Alentejo, em Portugal. Foi batizada como Florbela Lobo, sobrenome de sua mãe, pois seu pai, de sobrenome Espanca, ironicamente não a perfilhou. Na sua certidão de nascimento consta: "filha de pai incógnito". Ela, porém, talvez pela imagem de um pai boêmio e complexo no modo de viver, preferiu seguir, no nome e no modo de viver, o pai que a não reconhecera.
Aos 8 anos de idade escreveu um soneto, A Vida e a Morte. Em 1919, publicou o primeiro livro de poemas, com edição às suas custas, numa tiragem de apenas 200 exemplares. Quatro anos depois, surgiu o segundo.
Florbela não alcançou reconhecimento na sua época. Poucos foram os críticos que souberam valorizar a sua poesia. Um desses poucos foi o idealizador e grande líder da revista Presença, o grande poeta, José Régio. Disse ele: “A sua poesia é dos nossos mais flagrantes exemplos de poesia viva”. Poesia viva, para Régio, é aquela que nasce, vibra e se alimenta do próprio autor; no caso, da vivência da própria Florbela Espanca.
Com o passar do tempo, porém, o nome e a obra de Florbela foram ganhando cada vez maior reconhecimento, principalmente dos leitores. É considerada hoje, pela força de sua poesia, a maior poeta feminina de Portugal. É também consenso em Portugal que Florbela é um dos quatro grandes sonetistas da literatura portuguesa: o clássico, apaixonado e filosófico Camões; o árcade e lírico intimista Bocage; o metafísico poeta realista Antero e ela, Florbela, a jovem que viveu um dos dramas mais intensos como mulher e como poetisa.


AMIGA
Deixa-me ser a tua amiga, Amor,
A tua amiga só, já que não queres
Que pelo teu amor seja a melhor,
A mais triste de todas as mulheres.

Que só, de ti, me venha mágoa e dor
O que me importa a mim?! O que quiseres
É sempre um sonho bom! Seja o que for,
Bendito sejas tu por mo dizeres!

Beija-me as mãos, Amor, devagarinho...
como se os dois nascêssemos irmãos,
Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho...

Beija-mas bem!...Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos,
Os beijos que sonhei prá minha boca!...

OS VERSOS QUE TE FIZ

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!

SE TU VIESSES VER-ME HOJE À TARDINHA
Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,

A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
]O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

LANÇAMENTO DE OS INVÓLUCROS DA MEMÓRIA NA FICÇÃO DE CARLOS HEITOR CONY


Dia 10 passado (10/12/2008), a professora Raquel Illescas Bueno lançou o livro de ensaio sobre a obra de Carlos Heitor Cony, Os Invólucros da Memória na Ficção de Carlos Heitor Cony, obra publicada pela Academia Brasileira de Letras nas comemorações do cinqüentenário de O Ventre, o primeiro romance de Cony. O lançamento aconteceu na Livraria e Editora Arte e Letra no espaço cultural Lucca Cafés Especiais do Batel, em Curitiba. Pelo que me pareceu foi tudo bem. A autora se encontrava calma e conseguiu atender a familiares, amigos, visitas ilustres, enfim a todos os participantes em momento muito especial para ela e de muita satisfação que estava vivendo naquela noite.
Segundo o jornalista Luís Celso Jr, que postou em seu blog o texto Conversa com um Imortal:
http://www.bardocelso.com.br/2008/12/conversa-com-um-imortal.html:
“Nesta quarta-feira (10), durante o lançamento do livro de minha professora Raquel Illescas Bueno na livraria Arte e Letra, aqui em Curitiba, conversei com o imortal que ocupa a cadeira de número 3 da
Academia Brasileira de Letras, Carlos Heitor Cony. Ele esteve no lançamento para prestigiar. (...)
Cony está com 82 anos e não tem nada de sisudo, como muitos pensam principalmente ao ver suas fotos por aí. Claro, não perdi a oportunidade: peguei a dedicatória da autora, uma das responsáveis por eu estar no mundo das letras hoje, e um autógrafo do escritor.
Gostei muito de ter conhecido Cony pessoalmente. (...) Pensei em estender o papo, mas (...). Despedi-me e deixei a cena.O mesmo com a Raquel. Na correria do lançamento, não quis levar o papo muito adiante. Eu no lugar dela estaria estressadíssimo com tudo aquilo. Quero deixar registrado aqui os parabéns pela conquista e desejar tudo de bom para ela. Seu sucesso é inspirador, Raquel.”
Como pai, estou orgulhoso com o êxito que a Raquel vem alcançando em sua carreira profissional e como autora de textos ensaísticos e também de alguns literários que produz eventualmente.
De todos nós seus familiares ela merece e recebe os parabéns e o nosso carinho.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

LANÇAMENTO DO LIVRO OS INVÓLUCROS DA MEMÓRIA NA FICÇÃO DE CARLOS HEITOR CONY

Será lançado no dia 10 de dezembro de 2008, a partir das 18h30min, na Arte e Letras Livraria - na rua Presidente Taunay, 40 (no interior do Lucca Cafés Especiais), em Curitiba, o livro Os Invólucros da Memória na Ficcção de Carlos Heitor Cony, de autoria de Raquel Illescas Bueno.
A autora é professora de Teoria da Literatura e de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Paraná. Doutorou-se na Universidade de São Paulo com tese elaborada sobre alguns romances de Cony.
O livro é uma publicação da Academia Brasileira de Letras, em homenagem ao cinqüentenário da estréia do acadêmico Carlos Heitor, que se lançou no romance com o livro O Ventre. Referindo-se a esse romance, Antonio Carlos Secchin, diretor da Comissão de Publicações, escreve: "Apesar de imediatamente reconhecido e aclamado pela crítica, este extraordinário romance ainda não havia sido objeto de uma análise do porte da que Raquel Illescas Bueno desenvolveu...".
A Raquel aguarda todos os amigos, colegas e interessados em literatura e em crítica literária. Eu estarei lá.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

PORTUGAL E O 25 DE ABRIL

PORTUGAL E O 25 DE ABRIL

1. A data na história de Portugal
O dia 25 de abril de 1974, em Lisboa e em Portugal, amanheceu real e simbolicamente sob uma nova ordem. A Revolução dos Cravos estava nas ruas de todas as cidades e nos caminhos todos de Portugal. Soldados desfilavam com seus carros de guerra ao passo que iam recebendo as homenagens da população que enfeitava seus fuzis com cravo vermelho, o símbolo de Portugal. Essa flor empunhada pelos participantes do MFA - Movimento das Forças Armadas passou a ser também a referência da Revolução que derrubava, naquele momento, as últimas resistências de um Salazarismo já ultrapassado no tempo e na vontade dos portugueses.
A Revolução dos Cravos trouxe raios de esperança ao sofrido povo português daqueles tempos. O terror da ditadura, embora bem mais branda, ainda assustava. Eram prisões, eram exílios, eram separações. Tudo contribuía para um sofrimento que agora parecia haver sido extinto.

2. Os festejos do 25 de abril
Naquele ano de 1974 e nos que se seguiram, o povo saiu e continuava a sair para festejar o acontecimento. A data passou a ser oficial. Muitos edifícios, construções, escolas que ostentavam o nome pomposo de Salazar, passaram a denominar-se 25 de Abril.
Em 1981, tive a oportunidade de assistir aos festejos alusivos à data. O povo festejava nas ruas, nas praças, nos bosques. A alegria era incontida. O vermelho dominava a paisagem. As bandeiras desfraldadas enfeitavam a festa. Era tudo alegria, comemoração.



3. A literatura “pós-25 de abril”
O grande entusiasmo popular chegou aos escritores. Surgiu, então, uma literatura que chegou a ser chamada “Literatura Pós-25 de Abril”. Esta denominação, que alguns críticos a rejeitam, mas que não podem negar que, de qualquer modo, produziu numerosas grandes obras. Com ela, surgiram novos escritores, como Lídia Jorge, e outros, já autores conhecidos, como Almeida Faria, e outros ainda surgidos em épocas bem anteriores, como Fernando Namora, passaram a produzir novas obras.
Dentre as principais e mais conhecidas obras com o rótulo de “pós-25 de abril”, publicaram-se: Levantado do Chão, de José Saramago, romance influenciado pelo Neo-Realismo; Os romances inovadores O Triunfo da Morte, de Augusto Abelaira e Lusitânia, de Almeida Faria, e O Dia dos Prodígios, da iniciante Lídia Jorge; A narrativa meio realista, meio surrealista Os Cus de Judas, de Lobo Antunes; os policiais Balada da Praia dos Cães, de José Cardoso Pires, e O Rio Triste, de Fernando Namora; além de outros, como O Mosteiro, de Agustina Bessa Luís, e O Silêncio, de Teolinda Gersão.

4. Três textos de obras representativas do “pós-25 de abril”
Para ilustrar a “literatura pós-25 de abril”, selecionamos três textos de diferentes obras. O primeiro
é um fragmento de Lusitânia, de Almeida Faria; o segundo pertence à obra O Rio Triste, de Fernando Namora; e o terceiro é de O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge:

ALMEIDA FARIA – Lusitânia, p. 43.

RESPOSTA DE ARMINDA A JC EM MEMORÁVEL DATA:

Montemínimo, 25 de abril

Querido João Carlos,

quando a minha missiva aí chegar já estarás bem informado do que aqui se passa. Acho que, em vez de ser eu a partir como me aconselhas, deves ser tu a fazê-lo, não só por causa da morte do Pai, também porque a ditadura já não dura. Se anda­mos a lutar pelo fim dela, não tanto quanto Samuel mas o bastante para te zangares com o Pai, não faz sentido ficares num exílio voluntário agora que os exilados vão voltar, segundo parece mais provável. Ainda se não sabe até onde irão estes militares, nem se soará a hora das massas populares. Pelo menos porém fala-se em demo­cracia, quase novidade neste país.

FERNANDO NAMORA – O Rio Triste, p. 97.

Dessa vez, fora a própria polícia a contactar os jornais. Havia um caso bicudo, era preciso dar-lhe relevo. Um ho­mem desaparecido, telefonemas misteriosos, uma gabardina deixada num cacilheiro. O homem que a vestia (ou que, nesse dia, não chegara a vesti-la) fora visto num dos barcos que fazem a travessia do Tejo, encostado ao gradeamento da amurada, sozinho, num modo de quem não se sentia muito bem. Mesmo pondo em dúvida o rigor destas minúcias, a verdade é que o homem chamara as atenções da pessoa que ocasionalmente o observara e que, no fim da viagem, ao re­parar que o enigmático passageiro deixara a gabardina es­quecida no banco, fora sobre ele para o advertir, porém sem resultado, pois sumira-se entre a massa de gente que se dirigia para o ancoradouro. Então, a pessoa, depois de ter hesitado se deveria incomodar-se tanto com um desconheci­do desmazelado ou distraído, decidira-se a entregar a gabar­dina ao mestre do barco. Por último, a gabardina fora parar aos achados e perdidos da polícia, um agente, por mero pal­pite, recambiara-a para a secção de pessoas desaparecidas, talvez porque nessa tarde lera uma pequena notícia acerca de um tal Rodrigo Abrantes.

LÍDIA JORGE – O Dia dos Prodígios, p. 152-3.

Vamos. Vamos ser visitados por seres saídos do céu, e vindos de outras esferas. Onde os séculos têm outra idade. Afastem-se, vizinhos, que esta visão costuma fulminar. As crianças correram estrada fora, comandadas pela coragem. Sentiam que o mar ia chegar atrás dum barco de velas alvadias e soltas, desfraldadas à levíssima brisa da tarde. E também começaram a esbra­cejar, esboçando gestos de natação. Mas Macário. Tendo sido o último a enxergar, teve a visão exacta. No momento da surpresa ainda tinha os olhos fechados de repetir pela última vez. À espera de ocasião. À espera de ocasião.
- Isto é um carro de combate. Oh vizinhos.
Na verdade, a pleno meio da estrada avançava um carro singular, porque vinha pejado de soldados garbosos e épi­cos, penetrando já pelo centro de Vilamaninhos com ban­deiras e flores. E cantavam por um altifalante como se viessem munidos de uma poderosa orquestra. Agora já o espectáculo era tão real e tão bonito que todos. Esquecidos desses primeiros segundos de pasmo e confusão. Sentiram estar suspenso o toque, o canto e a audição desde há muito. Para só ouvirem e verem aquilo que chegava em cima duro carro aberto e blindado. Todos tinham a certeza que desde o tempo dos reis nunca mais se vira de igual. Ah mara­vilha. Então o carro: parou em frente do grupo, e fez-se um momento de silêncio tão solene que as pessoas 'Pensaram ir morrer. Mas um soldado. Particularmente bem feito, tendo sem dúvida nascido numa terra muito diferente; Começou a falar de cima do carro, agora, parado no largo. Dizia coisas. Que tinha - feito uma re vo lu ção, e que era pre­ciso animar os espíritos. porque tudo. Tudo. E abria uns braços de salvador. Tudo iria ser modificado. Falava tão bem, que todos se encontravam encantados no timbre daquela voz. E nas maneiras másculas, sendo contudo deli­cadas, como se não sentisse o soldado o peso do corpo. Na farda, no cabelo levemente encaracolado. E ninguém era capaz de dizer fosse o que fosse, presos, todos da surpresa e da maravilha. Nem Macário. Nem Manuel Ger­trudes. Os outros soldados sentindo sem dúvida a per­turbação que invadia os naturais de Vilamaninhos, le­vantaram então os braços e disseram o que os ouvintes por­ventura queriam dizer. Mas falaram os soldados em con­junto. Tão alto e tão vibrante. Que os vilamaninhenses só compreenderam que uma grande coisa eles haviam dito, e maiores a:inda teriam a dizer no futuro. Quando acabaram o largo estava cheio de gente que escutava. Nem se sentia o vazio dos ausentes. E Macário, receando que os habitan­tes de Vilamaninhos estivessem a desempenhar o papel de bêbados na perfeição, e animado, porque antes da chegada, acabara de ouvir da boca do seu vizinho, que o seu lugar não deveria ser ali. Sentindo-se patrício desses forasteiros. Disse.
- Nós aqui soubemos logo, dois dias depois, que vocês tinham feito a re vo lu ção. Mas nunca pensa­mos que chegássemos a ver os heróis.
O soldado que havia falado agradeceu com a mão. Todos os outros tinham um ar solene e marcial, não duvidando ninguém que tais homens venceriam as maiores batalhas. Disse também o soldado formosíssimo, com flores a desfo­lharem-se nas abotoadeiras. Que era preciso que aquela terra se capacitasse que o tempo da li ber da de tinha che­gado.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

POEMA DE GABRIEL BUENO

Gabriel de Carvalho Bueno é brasileiro de nascimento, mas espanhol de alma. Segundo quem o conhece: "Tiene sangre española en la medula". Mesmo atarefado com diversos vestibulares para a área das Engenharias, encontra tempo e disposição para contribuir com o Blog do seu avô.
Aqui se inclui um poema de sua autoria:

¡OLÉ!

Clarines suenan retumbantes
El torero en la arena
¡Qué venga el toro bravejante!
Pues la plaza ya está llena

Un niñato juega por la Calle del Agua
Gitanas bailan
Gitanas cantan
Por las calles de Granada

Giralda es la gran torre
Quién ya ha visto Sevilla
Por ella se muere

A las cinco en punto de la tarde
Federico miraba a la corrida
A las cinco en punto de la tarde
¡Qué recuerdo, qué penita!

Al toque de un pasodoble
Es que vibra toda la gente
Cuando se ponen el toro y el torero
Los dos frente a frente

El torero con mucha pena se quedó
Y a cambio de claveles
Aquél toro negro no lo mató


.

sábado, 15 de novembro de 2008

GÊNERO EPISTOLAR

O gênero epistolar sempre teve seus cultores. Em Portugal, na época do Barroco, ficaram famosas as cartas de amor de Sóror Mariana Alcoforado e as cartas familiares de Dom Francisco Manuel de Melo, para citar apenas dois exemplos. Em vários outros estilos de época e em toda a literatura universal surgiram grandes autores de epístolas, tanto em prosa como em poesia.
Os séculos XVIII e XIX foram pródigos em autores de epístolas poéticas: Voltaire, Rousseau, Shelley, Byron, Filinto Elísio (Francisco Manuel do Nascimento), Castilho, Musset, Victor Hugo, Mallarmé e um grande número de outros.

O gênero epistolar inclui epístolas propriamente ditas, cartas, bilhetes e outras formas.
Aqui, incluem-se duas cartas e um denominado bilhete, cujo texto não deixa de ser uma carta poética.

Os poetas brasileiros selecionados foram os mineiros Carlos Drummond de Andrade e Adélia Prado, e o gaúcho Mário Quintana:

CARTA (Drummond)


Há muito tempo, sim, que não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo,
estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
"Deus te abençoe", e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.

BILHETE EM PAPEL ROSA (Adélia)

Ao meu amado secreto, Castro Alves.

Quantas loucuras fiz por teu amor, Antônio.

Vê estas olheiras dramáticas,
este poema roubado:
"o cinamomo floresceem frente do teu postigo.
Cada flor murcha que desce,morro de sonhar contigo.
"Ó bardo, eu estou tão fracae teu cabelo é tão negro,
eu vivo tão perturbada,
pensando com tanta força
meu pensamento de amor,
que já nem sinto mais fome,
o sono fugiu de mim. Me dão mingaus,
caldos quentes, me dão prudentes conselhos,
eu quero é a ponta sedosa do teu bigode atrevido,
a tua boca de brasa, Antônio, as nossas vidas ligadas.
Antônio lindo, meu bem,
ó meu amor adorado,
Antônio, Antônio.
Para sempre tua.

CARTA DESESPERADA (Quintana)

Como é difícil, como é difícil, Beatriz, escrever uma carta...
Antes escrever os Lusíadas! Com uma carta pode acontecer
Que qualquer mentira venha a ser verdade...
Olha! O melhor é te descrever, simplesmente,
A paisagem,
Descrever sem nenhuma imagem, nenhuma...
Cada coisa é ela própria a sua maravilhosa imagem! Agora mesmo parou de chover.
Não passa ninguém. Apenas
Um gato
Atravessa a rua
Como nos tempos quase imemoriais
Do cinema silencioso...
Sabes, Beatriz? Eu vou morrer!

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

FERNANDO PESSOA E A POESIA DOS HETERÔNIMOS: ÁLVARO DE CAMPOS

Fernando Pessoa é o grande poeta do Modernismo português e um dos maiores da língua portuguesa. Os críticos costumam dizer que um ciclo da poesia portuguesa se abre com Camões e se fecha com Fernando Pessoa. Camões teve de esperar 500 anos para surgir outro como ele. Na não-modéstia de Fernando Pessoa, com ele próprio surgira um supra-Camões.O fenômeno dos Heterônimos, outros poetas que habitam a alma poética de Fernando Pessoa, colaborou para dar a ele merecido destaque. Assim, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos (deixando de lado Bernardo Soares, o Heterônimo da prosa poética do Livro do Desassossego), representam a tríade dessa incrível capacidade criadora de Fernando Pessoa de transmudar-se em novos poetas.

Álvaro de Campos é o heterônimo que representa o lado modernista, ou mais propriamente, futurista de Fernando Pessoa. É o poeta das grandes odes, como a Ode Marítima e a Ode Triunfal. Como Marinetti, prefere a máquina às belas estátuas dos museus. Os avanços técnicos permitem à humanidade deslocar-se com a velocidade dos comboios, dos carros e dos aeroplanos.
Como cidadão, Álvaro de Campos é engenheiro naval, formado na Escócia. Adepto do Futurismo, poetiza a velocidade e as conquistas técnicas. Seus longos poemas próximos da prosa mostram um homem sempre angustiado e que busca fugir de tudo aquilo que o atormenta.
Seguem três poemas de Álvaro de Campos:

SONETO


Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei-de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente, reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

DOBRADA À MODA DO PORTO

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,

Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo. Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.

Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?

Eu não sei, e foi comigo...
(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,

Particular ou público, ou do vizinho.
Sei multo bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,

Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

POEMA

Todas as cartas de amor são

Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,

Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,

Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,

Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia

Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje

As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,

Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

FERNANDO PESSOA E A POESIA DOS HETERÔNIMOS: ALBERTO CAEIRO

Fernando Pessoa é o grande poeta do Modernismo português e um dos maiores da língua portuguesa. Os críticos costumam dizer que um ciclo da poesia portuguesa se abre com Camões e se fecha com Fernando Pessoa. Camões teve de esperar 500 anos para surgir outro como ele. Na não-modéstia de Fernando Pessoa, com ele próprio surgira um supra-Camões.O fenômeno dos Heterônimos, outros poetas que habitam a alma poética de Fernando Pessoa, colaborou para dar a ele merecido destaque. Assim, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos (deixando de lado Bernardo Soares, o Heterônimo da prosa poética do Livro do Desassossego), representam a tríade dessa incrível capacidade criadora de Fernando Pessoa de transmudar-se em novos poetas.

Alberto Caeiro, o mais “simples” dos heterônimos é o poeta da Natureza por excelência. O adjetivo simples em Caeiro significa apenas a aparência de sua poesia, pois ele é tão complexo como é complexa toda a poesia de Fernando Pessoa. Ele mesmo quer se fazer passar por um poeta que não pensa, mas que é apenas sensorial. Ele, segundo ele próprio, não pensa a Natureza, vive a Natureza. Esse viver a Natureza o caracteriza como um poeta realista, um pouco impressionista e principalmente panteísta.
Alberto Caeiro, pela sua simplicidade, é adotado pelos outros heterônimos como o Mestre. Como cidadão, na biografia escrita para ele, é um pequeno agricultor que vive próximo de Lisboa e que raramente freqüenta a cidade. É fã dos poetas realistas e vive a ler Cesário Verde.
Seguem três poemas de Alberto Caeiro:


POEMA 208

Ao entardecer, debruçado pela janela,

E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês

Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...

Por isso ele tinha aquela grande tristeza

Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...

POEMA 233


Li hoje quase duas páginas

Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.

Os poetas místicos são filósofos doentes,

E os filósofos são homens doidos.

Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem

E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.

Mas flores, se sentissem, não eram flores,

Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.

É preciso não saber o que são flores e pedras e rios

Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.

Por mim, escrevo a prosa dos meus versos

E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza.

POEMA 225

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios

E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha

E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.

Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.

Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

domingo, 2 de novembro de 2008

FERNANDO PESSOA E A POESIA DOS HETERÔNIMOS: RICARDO REIS

Fernando Pessoa é o grande poeta do Modernismo português e um dos maiores da língua portuguesa. Os críticos costumam dizer que um ciclo da poesia portuguesa se abre com Camões e se fecha com Fernando Pessoa. Camões teve de esperar 500 anos para surgir outro como ele. Na não-modéstia de Fernando Pessoa, com ele próprio surgira um supra-Camões.
O fenômeno dos Heterônimos, outros poetas que habitam a alma poética de Fernando Pessoa, colaborou para dar a ele merecido destaque. Assim, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos (deixando de lado Bernardo Soares, o Heterônimo da prosa poética do Livro do Desassossego), representam a tríade dessa incrível capacidade criadora de Fernando Pessoa de transmudar-se em novos poetas.
Cada um desses Heterônimos tem seus admiradores particulares. Por mim, ficaria com os três, mas ao optar por um deles, teria dúvida entre Caeiro e Reis. Para eliminar o problema de qual deles inserir primeiro no Blog, seguirei a ordem cronológica do estilo de época (se se pode falar em estilo de época nos Heterônimos!) de cada um deles.
Portanto, será postado inicialmente Ricardo Reis, o clássico e epicurista poeta das Odes, que, ao estilo dos poetas gregos e latinos, poetiza o viver pouco humano e meio divino, em que o homem, prisioneiro do Destino, move-se entre o não gozar e o não sofrer as coisas do mundo. Sofrê-las causaria dor, e o homem deve fugir a qualquer sensação extrema de sofrimento; gozá-las faria os deuses sentirem inveja e poderiam, assim, castigá-los. Os homens devem viver em uma espécie de áurea mediocritas. Por isso, eles têm de viver como se vivessem no limbo. Assim, não podem ter grandes alegria, nem grandes desgostos. Essa é a essência da filosofia herdada dos filósofos e dos poetas seguidores de Epicuro.

Como cidadão, na biografia escrita por Fernando Pessoa, Ricardo Reis é médico e vive numa espécie de exílio voluntário no Brasil. Porém, voltou-se para a leitura dos clássicos e embebe-se na cultura greco-latina.
Seguem três poemas de Ricardo Reis:

ODE 315

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

ODE 359

Prazer, mas devagar,
Lídia, que a sorte àqueles não é grata
Que lhe das mãos arrancam.
Furtivos retiremos do horto mundo
Os depredandos pomos.
Não despertemos, onde dorme, a Erínis
Que cada gozo trava.
Como um regato, mudos passageiros,
Gozemos escondidos.
A sorte inveja, Lídia. Emudeçamos

ODE 394

Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo,Seja eu jovem por erro.
Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante.
Que mais quero?

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

FEDERICO GARCÍA LORCA - 3 POEMAS TRADUZIDOS

DESEO

Sólo tu corazón caliente,

Y nada más.

Mi paraíso, un campo
Sin ruiseñor
Ni liras,
Con un río discreto
Y una fuentecilla.

Sin la espuela del viento
Sobre la fronda,
Ni la estrella que quiere
Ser hoja.

Una enorme luz
Que fuera
Luciérnaga
De otra,
En un campo de
Miradas rotas.

Un reposo claro
Y allí nuestros besos,
Lunares sonoros
Del eco,
Se abrirían muy lejos.

Y tu corazón caliente,
Nada más.

DESEJO

Só, só, o teu coração ardente
E nada mais.


Meu paraíso, um campo
Sem beija-flor
Nem liras,
Com um rio discreto
E uma fontezinha.

Sem a espora do vento
Sobre a face
Nem a estrela que quer
Ser folha.


Uma enorme luz
Que foi
Vaga-lume
De outra,
Em um campo de
Olhadas rotas.


Um repouso claro
De beijos passados
Enfeites sonoros
Do eco
Abrem-se afastados


E o teu coração ardente
E nada mais.

BAILE

La Carmen está bailando

por las calles de Sevilla.
Tiene blancos los cabellos
y brillantes las pupilas.

¡Niñas,
corred las cortinas!

En su cabeza se enrosca
una serpiente amarilla,
y va soñando en el baile
con galanes de otros días.

¡Niñas,
corred las cortinas!

Las calles están desiertas
y en los fondos se adivinan,
corazones andaluces
buscando viejas espinas.

¡Niñas,
corred las cortinas!

BAILE

A Carmen está dançando
Pelas ruas de Sevilla.
Tem brancos os seus cabelos
E brilhantes as pupilas.

Meninas
Correi as cortinas!

Em sua cabeça enrosca
Uma serpente amarela,
E vai sonhando no baile
Com galãs de outras eras.

Meninas
Correi as cortinas!

As ruas estão desertas
E nos fundos se descobre
Corações andaluzes
Buscando dores enormes

Meninas
Correi as cortinas!

CANCIÓN DE JINETE

Córdoba.
Lejana e sola.

Jaca negra, luna grande,
y aceitunas en mi alforja.
Aunque sepa los caminos
yo nunca llegaré a Córdoba

Por el llano, por el viento,
jaca negra, luna roja,
la muerte me está mirando
desde las torres de Córdoba.

¡ Ay qué camino tan largo !
¡ Ay mi jaca valerosa!
¡ Ay que la muerte me espera!
antes de llegar a Córdoba!

Córdoba.
Lejana y sola.

CANÇÃO DO GINETE

Córdoba.
Longínqua e só.

Mula negra
E azeitonas em meu alforge
Ainda que eu saiba os caminhos
Eu nunca chegarei a Córdoba.

Pelo plano, pelo vento,
Mula negra, lua rosa.
A morte me está olhando
Desde as torres de Córdoba.

Ai que caminho tão longo!
Ai minha mula valorosa!
Ai, que a morte me espera
Antes de chegar a Córdoba!

Córdoba.
Longínqua e só.



domingo, 26 de outubro de 2008

CATULO - 3 POEMAS TRADUZIDOS

CATULO, poeta latino nascido em Verona no ano 87 a. C. deixou 116 poemas líricos, principalmente aqueles consagrados ao amor de sua musa Lésbia.
Seguem três poemas que traduzi:

CARME 3

Lugete, o Veneres Cupidinesque,

et quantum est hominum venustiorum:
passer mortuus est meae puellae,
passer deliciae meae puellae,
quem plus illa oculis suis amabat.
Nam mellitus erat, suamque norat.
Ipsam tam bene quam puella matrem:
nec sese a gremio illius movebat,
sed circumsiliens modo huc modo illuc,
ad solam dominam usque pipiabat.
Qui nunc it per iter tenebricosum
illuc, unde negant redire quemquam.
At vobis male sit malae tenebrae
Orci quae omnia bella devoratis:
tam bellum mihi passerem abstulistis!
O factum male! o miselle passer!

tua nunc opera meae puellae
flendo turgiduli rubent ocelli.

POEMA 3


Vertei lágrimas, Vênus e Cupido,
E mais aqueles homens que na vida
Por haverem amado têm sofrido:
Pois morreu o pardal da minha amada.
O pardal que, por ela protegido,
Era a delícia mais cara e que sempre,
Fora mais do que seus olhos querido.
Cantava docemente, e a minha amada
O conhecia tão bem, como a filha
Conhece a sua própria mãe querida.
Ele do colo dela não saía,
Pois minha amada a ele protegera.
E ele que, alegre, sempre ao lado dela,
Só a ela cantando agradecia.
Agora, ele morreu. Ó que tristeza!
Foi por esse caminho tenebroso
Do qual nunca jamais alguém voltou.
Malditas sois vós, ó escuras trevas,
Hades, que a tudo tendes devorado,
Aquelas coisas todas e tão belas.
Belo, também, era o pardal amado!
Por você, ó pardal, que agora morto,
Seus inchados olhinhos têm chorado!


CARME 5

Vivamus, mea Lesbia, atque amemus,
Rumoresque senum severiorum
Omnes occidere aestimemus assis.
Soles occidere et redire possunt:
nobis cum semel occidit brevis lux,
nox est perpetua una dormienda.
da mi basia mille, deinde centum,
dein mille altera, dein secunda centum,
deinde usque altera mille, deinde centum.
dein, cum milia multa fecerimus,
conturbabimus illa, ne sciamus,
aut ne quis malus invidere possit,
cum tantum sciat esse basiorum.

POEMA 5

Vivamos, minha Lésbia, e nos amemos.
E aos conselhos dos velhos mais severos
Nem ouvidos a eles nós daremos.
Porque o sol todo dia nasce e morre:
E a nossa luz brevíssima será,
Pois nós apenas uma vez morremos.
Portanto, dá-me mil e mais mil beijos,
Depois, dar-me-hás cem e mais cem mil.
Pois, quantos beijos mais viermos a dar,
Perderemos a conta dos desejos.
Todos, assim, iremos confundir,
Para que ninguém nos possa invejar,
De quantos foram nossos longos beijos.

CARME 8

Miser Catulle desinas ineptire
et quod vides perisse perditum ducas
fulsere quondam candidi tibi soles
cum ventitabas quo puella ducebat
amata nobis quantum amabitur nulla
ibi illa multa cum iocosa fiebant
quae tu volebas nec puella nolebat
fulsere vere candidi tibi soles
nunc iam illa non vult tu quoque impotens noli
nec quae fugit sectare nec miser vive
sed obstinata mente perfer obdura
vale puella iam Catullus obdurat
nec te requiret nec rogabit invitam
at tu dolebis cum rogaberis nulla
scelesta vae te quae tibi manet vita
quis nunc te adibit cui videberis bella
quem nunc amabis cuius esse diceris
quem basiabis cui labella mordebis
at tu Catulle destinatus obdura

POEMA 8

Pobre Catulo, deixe essa loucura
E o sofrimento teu todo de lado.
Considera perdido o que hoje está.
Por que antes o teu tempo não perdera
À procura de um corpo desejado.
Ela por teu amor a mais amada,
Somente desejava o que pedias
E se alegrava com o teu desejo.
Então, teus dias eram bem felizes!
Agora ela te esquece. Ó mulher!
Esquece-a, pois, também. Não te merece,
Se ela assim abandona quem a quer!
Dá-lhe também adeus, e essa mulher
Seja de ti a mais bem esquecida.
E que sempre infeliz, e sem amor,
Leve a vida que é dela merecida.
Não mais a procurar, não mais querê-la.
Ela então chorará, abandonada
Sem ninguém que a deseje em sua vida.
A quem irá amar? Ninguém a quer.
Agora sem alguém para enganar,
(A Catulo tentara algumas vezes),
A que boca e a quem irás beijar?
E que lábios molhados morderás?
Mas tu, Catulo, firme ficarás.



quarta-feira, 22 de outubro de 2008

A CONTRIBUIÇÃO FEMININA BRASILEIRA EM TÁVOLA REDONDA

Recentemente, postei texto sobre a contribuição feminina em Távola Redonda. No texto, ative-me a poetisas portuguesas. Em comentário dos leitores, fui perguntado sobre que poemas de Cecília Meireles haviam sido publicados na Revista. É que, ao fazer menção aos colaboradores, fiz referência a que poetas e poetisas do Brasil haviam também publicado em Távola Redonda.
Hoje, para complementar o texto sobre a contribuição feminina, escreverei sobre as duas poetisas do Brasil. Uma delas é a celebrada Cecília Meireles; a outra, a pouco conhecida Terezinha Éboli.
Cecília Meirelles, embora considerada por alguns críticos portugueses como uma poetisa mais portuguesa do que brasileira, foi publicada somente no Fascículo 12 da Revista, em março de 1952. Terezinha Éboli, também bastante prestigiada em Portugal, principalmente na revista Távola Redonda, apareceu com bastante freqüência e teve, além de poemas, uma nota breve sobre sua trajetória como poetisa. Publicou poemas em três Fascículos: 9, 10 e 12.
Sobre Cecília Meireles, o grande historiador, crítico e teórico português da literatura, Hernâni Cidade, com várias obras e ensaios sobre autores portugueses e brasileiros, afirma no mesmo Fascículo 12: “No concerto de Poetas brasileiros, seus contemporâneos a voz de Cecília Meireles é uma voz solitária. Em Portugal, sempre a sua obra obteve uma maior audiência não porque ela seja mais portuguesa que brasileira, como insinuaram alguns críticos...”. E continua o crítico a explicar o motivo de sua maior audiência e maior reconhecimento em Portugal do que no Brasil: “A extraordinária categoria poética de Cecília Meireles foi mais cedo reconhecida entre nós, principal­mente porque uma geração literária - a geração da Presença - havia criado, em Portugal, um ambiente propício à aceitação de mensagens líricas como a sua...”.

De Cecília Meireles os poemas publicados em Távola Redonda foram quatro:

IMPROVISO

Já não tenho lágrimas.
Estão caídas
longe, em vagas margens
qual mornas ovelhas
recém-nascidas.

Longe estão caídas,
entre esses montes
de saudades vivas,
de figuras frias,
ai! De que horizontes...

Suspirosos montes!
Porém agora
Talvez não me encontrem.
A alma se me esconde
- nada mais chora.


SORTE

Como os passivos afogados
Esperando o tempo da areia,
Pelo mar de inúmeros lados
Veio tão venturosa e alheia
Que para mim a noite é o dia
Vê o mesmo sol sem ocaso,
E o que eu queria e não queria
Aceitaram seu justo prazo.

E nem me encontra, quem me espera,
Nem o que esperei foi havido,
Tanto me ausento desta esfera.

- Ó liberdade sem tormento!
ó fitas soltas, ó cortinas
levadas por um amplo vento
além de campos e colinas!
vencendo sucessivos planos,
abrindo mundos encobertos,
chegando aos reinos sobrehumanos
onde há jardins sobre os desertos!

A alma do sonho fez-se ouvido
tão vertiginoso e profundo
que aceita o recado perdido
dos ocultos donos do mundo.

14.ª CANÇÃO


Venturosa de sonhar-te,

à minha sombra me deito.
(Teu rosto, por toda parte,
mas, amor, só no meu peito!)

–Barqueiro, que céu tão leve!
Barqueiro, que mar parado!
Barqueiro, que enigma breve,
o sonho de ter amado!

Em barca de nuvem sigo:
e o que vou pagando ao vento
para levar-te comigo
é suspiro e pensamento.

–Barqueiro, que doce instante!
Barqueiro, que instante imenso,
não do amado nem do amante:
mas de amar o amor que penso!

15.ª CANÇÃO

Respiro teu nome.

Que brisa tão pura
súbito circula
meu coração.

Respiro teu nome.
Repentinamente,
de mim se desprende
a voz da canção.

Respiro teu nome.
Que nome? Procuro...
- Ah teu nome é tudo.
E é tudo ilusão.

Respiro teu nome.
Sorte. Vida. Tempo.
Meu contentamento
é límpido e vão.

Respiro teu nome.
Mas teu nome passa.
Alto é o sonho. Rasa,
minha breve mão.

Com referência a Terezinha Éboli, Távola Redonda, a Revista publica uma nota em que apresenta a poetisa: “Terezinha Éboli pertenceu ao grupo de Orfeu – a revista que, em 1942, veio impor uma nova geração e uma nova estética”. Informa também a nota que desse grupo saíram os poetas Pedro Ivo, Fernando Ferreira de Loanda, Afonso Félix de Sousa e Fred Pinheiro. Na época em que saiu o Fascículo 9, a poetisa pertencia à direção da revista Cronos. O poema MOTIVO INFANTIL BRASILEIRO, editado no Fascículo 12, vem com a indicação de que pertence ao livro Andante Tranqüilo.
De Terezinha Éboli, Távola Redonda publicou seis poemas, que são:

TE J O
Ao Tejo cheguei
ouvindo coisas de acalentar.
Era cedo ainda.

Mulheres de cesto bravos...
- Quanto vale teu peixe, rapariga!
- Não mais que a vida, senhora,
um sorriso vale mais.

Mulheres de cestos bravos
de ciranda a cirandar
só de filhos já vão dez
e uma varina miúda
que fome não há-de passar.

Era cedo ainda.
e o Tejo a me contar...

PESCA PARTIDA

De que noite vieram
teus olhos em concha
pejados de mar?

De que cenas frias
de vagas quebrando
a fímbria dos olhos
a sublinhar caminhos?

Oh! Belos que se vão
outros que se quedam
feridos na areia
nem gestos têm
que os regressem ao mar!

NEGRINHOS DE S. VICENTE

Vêm vindo os negrinhos de S. Vicente
Remando pra cá
De mãos estendidas vendendo colar.

E os que ficam de longe
Calçados de pedras pontudas
Estão paralisados de mãos estendidas no ar.

Esperam moedas
e estão fixados
nos dias de Portugal.

S. Vicente do Cabo Verde é santo?
Que contas nos dás das olheiras profundas
que assim mesmo sobre o negro se vê
nos negrinhos de tua ilha?

CICLO DELIRANTE

Dormir nas escarpas das montanhas
- ao mesmo tempo terra e sonho - ,

Rolar pelas esferas do tempo
antes de ser sonolenta
e voltar, um século, ou dois,
na condição de um peixe-poema.

Dos lábios dos meninos coloridos
Fazer dois olhos.
Das mãos fiandeiras
barbatanas caladas.
Peixe que dança
peixe que pensa do mundo
um segredo profundo.

Eleito guardião das conchas vazias
rápido deslisar
para enchê-las de corpos brancos e negros
dos suicídios deste século.

(A terra não dá mais)

E quando estiver cansado
dos movimentos iguais
desprender-se das ondas
e voltar, talvez muito mais tarde
como um pássaro molhado.

HERANÇA

Mais que a coragem do mar
ficou em mim:
folhas caídas
em ermos jardins
e a fuga dos remos
no dorso de um rio.

(Cabelos brancos são de agora)

De tanto mar sou feita! Tenho tanto sa1 nas veias
e sargaços em minhas mãos
que já não sei se sou eu
ou se é alguém do outro lado.

O que ficou do ser humano
muito pouco, quase nada...
Por isso agora
sou muito mais solidão.

MOTIVO INFANTIL BRASILEIRO

A chuva toda por sobre a serra
é um corpo mole, branco e sereno.
e a faixa loura da longa estrada .
é um grito vivo que diz, gritando:

“Menino tonto, de pés no chão,
que vendes frutas aos trens que passam,
vai para casa, Luís, José, Pedro e João!”

Adiante, gritando mais:
“Saia do rio, menina nua,
A chuva é forte, a água é fria!”

E ao moleque, todo pretinho,

Rindo e bebendo água do céu:
“Olha as palmadas! E as tuas frutas, se apanhas febre?”

E a chuva sempre por sobre a serra...
(- Aqui, moça, banana ouro...)
Vai despencando
E vai banhando a estrada longa que vai calando:
“vai para casa menino tonto...”

- Quê que adianta, moça?
A chuva chove também lá dentro...

terça-feira, 21 de outubro de 2008

A CONTRIBUIÇÃO FEMININA PARA A POESIA DE TÁVOLA REDONDA

A Revista Távola Redonda, publicada em Lisboa, de 1950 a 1954, incluiu um número grande de poetas. Aproximadamente oitenta colaboradores passaram pelos vinte Fascículos editados. É marcante também o número de colaboradoras. Foram doze poetisas que, em conjunto, deram mais de cinqüenta contribuições poéticas e algumas delas com artigos críticos também.
Para citar as mais influentes na Revista, selecionamos três, as que aparecem com maior freqüência nas páginas de Távola Redonda. O nome da colaboradora vem seguido dos números da Revista em que elas contribuíram: 1. Fernanda Botelho (1, 2, 4, 6, 7, 8, 10, 12, 14, 19 e 20); 2. Maria Manuela Couto Viana (2, 6, 7, 12, 19 e 20); e 3. Terezinha Éboli (9, 10 e 12), poetisa brasileira.
Outra característica importante de Távola Redonda foi abrigar poetas e poetisas de inúmeros outros países da Europa e da América. Do Brasil, participaram Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Jorge de Lima, além da poetisa Terezinha Éboli. Apareceram poetas de língua latina, Catulo; inglesa, Elliot e Ezra Pound; francesa; italiana e outras.

FERNANDA BOTELHO
A poetisa que mais colaborou em Távola Redonda, em número e qualidade, foi, sem dúvida, Fernanda Botelho. Participou, inclusive, do primeiro grupo, aquele que idealizou e fundou a Revista e que incluía David Mourão-Ferreira, António Manuel do Couto Viana e Luiz de Macedo.
Fernanda Botelho nasceu de família de literatos. É sobrinha-neta do romancista naturalista Abel Botelho e aparentada do prosador do Romantismo, Camilo Castelo Branco. Iniciou seus estudos de Filologia Clássica na Universidade de Coimbra curso que concluiu na Universidade de Lisboa.
Ela é a poetisa que no grupo de Távola Re­donda pode ser classificada de original. A originalidade da sua poesia resulta de um conjunto de fatores que incluem aspectos de construção aliados a uma temática que amiúde surpreende o leitor. O geometrismo de suas imagens (As Coordenadas Líricas, fasc. 10, p. 1; Habitat, fasc. 1, p. 6); o reaproveitamento de formas tradicionais (Cantar de amigo, fasc. 1, p. 6), a ironia com que versa assuntos do quotidiano (Matrimónio, fasc. 1, p. 6); a expressão lírica do amor impossível (Al­tura; fasc. 1, p. 6) são elementos que tomam a sua poesia revitalizada. Destas características, a mais notada e referida pela crítica foi o geometrismo. A ela assim se refere David Mourão-Ferreira: "Em Femanda Botelho, tudo se converte em linhas, figuras, sombras e volumes, num desejo inconseiente de geometrização..." Sobre a ironia, o mesmo crítico e colega de revista afirma: "A sua poesia encerra uma grande ironia". Mais tarde a própria poetisa se manifesta sobre a ironia: em entrevista dada ao jornal português Público, de 16 de agosto de 2003, afirma: “Nem na morte vou perder a ironia”.
Fernanda Botelho, depois da fase poética de Távola Redonda, passou-se para o romance. O conjunto de sua obra registra o primeiro livro, que foi de poesia, exatamente na éppoca de Távola Redonda: Coordenadas Líricas (1951).Depois vieram os romances: O Enigma das Sete Alíneas (1956), O Ângulo Raso (1957), A Gata e a Fábula (1960), Xerazade e os Outros (1964), Lourenço é nome de Jogral (1971), Esta Noite Sonhei com Brueghel (1987), para citar os mais reconhecidos pela crítica. A última obra que se registra é As Contadoras de Histórias (1998). Eu, particularmente, considero as três grandes obras de Fernanda Botelho, no romance, A Gata e a Fábula (1960), Xerazade e os Outros (1964) e Esta Noite Sonhei com Brueghel (1987).
A poetisa e escritora nascida no Porto, faleceu em 11 de dezembro de 2007. O Blog Nothingandall assim noticiou: "Morreu hoje a escritora e poetisa portuguesa e portuense Fernanda Botelho" e afirma: "Lembrar os poetas (com os poemas que fizeram e marcaram e marcam as nossas vidas) nas datas que marcaram as vidas deles". Essa afirmação coincide com a António Manuel Couto Viana, um dos colegas da escritora na redação de Távola Redonda: - "A homenagem a um Poeta que morreu / É decorar-lhe os versos".
Para homenageá-la e para ilustrar a sua poesia, aquela publicada em Távola Redonda, seguem três poemas:

AS COORDENADA LÍRICAS

Desviou-se o paralelo um quase nada
e tudo escureceu:
era luz disfarçada em madrugada
a luz que me envolveu

A geométrica forma de meus passos
procura um mar redondo.
Levo comigo, dentro dos meus braços,
oculto, todo o mundo.

Sozinha já não vou. Apenas fujo
às negras emboscadas.
Em cada esfera desenho o meu refúgio
— as minhas coordenadas.

MOTIVO

Jardineira rosada no sol quente
(esperança renovada em cada ano),
o lenço encarnado e o dom profano
de vigorar o esforço da semente.

Curvada como um lírio em tarde amena,
árvore criadora e aquecida,
ela aí está, solene, dando vida
às batatas, às flores e ao meu poema.

CANTAR DE AMIGO

Bailada, bailia
que eu jás sei bailar.
E agora só queria
aprender a amar.

Ao entrar na roda,
soltou-se-me a liga.
E agora há quem diga
que não foi na roda.

Bailada, bailia
que eu já sei bailar.
E agora só queria,
mas não posso, amar.


CONCLUSÃO
Távola Redonda filiou-se à poesia lírica portuguesa tradicional. Assim, preferiu uma atitude de não-participação ativa no momento histórico, a não ser por uma espécie de ceticismo, que foi característica de grande parte da poesia da década de cinqüenta. Esse sentimento em relação aos destinos políticos do mundo, e em especial de Portugal, aliado a um ideário de índole subjetiva, levou a revista a uma retomada do lirismo.
A posição que Revista assumiu de um aparente não-compromisso com o social levou a sua produção a se voltar para um neo-esteticismo, a ponto de fazer da temá­tica da própria poesia uma de suas preocupações fundamentais. Como decorrência dessa retomada do lirismo e da preocupação estética, Távola Redonda fez renascer em Portugal a atmosfera poética, ausente em grande parte da poesia da década anterior.


quarta-feira, 15 de outubro de 2008

HOMENAGEM A MEUS PROFESSORES

HOMENAGEM A MEUS PROFESSORES

Neste 15 de outubro de 2008, Dia do Professor, se alguém lembrou de mim, e houve quem lembrasse, eu não poderia deixar de lembrar-me daqueles que foram meus mestres. De fato, muitos passaram pela minha memória, Professor Mansur Guérios, da graduação de Letras, o Professor Eurico Back, do Mestrado, o Professor MASSAUD Moisés, do doutorado e muitos mais. Irei, porém, homenagear três deles, em nome de todos.

1. PROFESSOR SALVADOR ALVES SOBRINHO
O primeiro professor foi meu mestre-escola. Ensinava até onde sabia, mas era o suficiente para encaminhar aquela meninada do pequeno lugarejo perdido no interior do município de Castro. A escola era o meio social que eu freqüentava. O velho professor me apoiava em tudo, inclusive mais tarde passei a ajudar-lhe em algumas tarefas com os mais iniciantes, porque iniciantes éramos todos. As brincadeiras antes de o professor chegar no seu manso cavalo era uma festa.
As lições de língua portuguesa consistiam nas primeiras letras, leitura soletrada, cópia das letras em caderno de caligrafia. Em aritmética se faziam as quatro operações na pequena lousa que cada um levava consigo a tiracolo. A aprendizagem da tabuada era decorada, meio declamada, meio cantada. Geografia e história eram motivo para se decorar algum assunto trazido de cadernos de professores mais especializados de escolas de bairros vizinhos ou de algum livro que aparecia por lá.
Dia de grande preocupação era quando ia, geralmente ao final do ano, uma comissão da prefeitura municipal, para repassar os pontos e verificar como andava a aprendizagem naquela escola. Foi a primeira experiência de avaliação de curso e de avaliação institucional que vi e que experimentei. Saí-me bem, cheguei a ser recomendado para ir fazer o curso ginasial na cidade.
Com todo o primitivismo dos tempos, dos processos e das metodologias, confesso que aprendi muito nessa escola. Aprendia-se com o amor. O amor era ao estudo, à escola, ao professor. Era a escola e sua circunstância.

2. PROFESSOR BERNARDO LETZINGER
Bernardo Letzinger era o diretor do Colégio Diocesano de Santa Cruz, em Castro. Como descendente de alemães, mantinha seu estilo germânico, uma espécie de Aristarco de O Ateneu. No curso ginasial e no científico, ele foi meu professor de Matemática. Ao final do ano de 1953 terminou o curso ginasial terminou para mim.
O curso científico iniciou-se com um pouco de atraso. Como fiquei indeciso sobre que carreira seguir após o ginásio, pensei em me dedicar no que estaria mais a minha mão, que seria ser um funcionário de alguma loja comercial. Assim, matriculei-me em uma escola de comércio, que funcionava na praça da Igreja Matriz. Assisti a algumas aulas durante mais ou menos uma semana, quando fui avisado por alguém que deveria comparecer ao Colégio Diocesano de Santa Cruz, a pedido da direção.
Quando cheguei ao Colégio, fui recebido pelo diretor, professor Bernardo Letzinger, que, em tom severo, mas amigável, exigiu que eu deixasse o curso que iniciara e me matriculasse no científico. Assim fiz em obediência a um mestre que eu admirava e animado por suas palavras de incentivo. Segundo ele, eu deveria enfrentar as dificuldades e sonhar mais alto. Deveria procurar formar-me em Curitiba.
O científico não me proporcionava uma profissão. Teria de cursar uma faculdade, seguir para Curitiba. Que curso? Direito, que seria uma possibilidade, talvez influenciado por um dos professores? Engenharia, como queria meu querido diretor e professor Bernardo? Mas como seguir um desses cursos em uma universidade, longe, em Curitiba? Segui o curso de Letras.

3. PROFESSOR OSVALDO ARNS
Em 1957, ao ingressar no curso de Letras da Universidade do Paraná, entrei em contato com professores representantes notáveis da cultura paranaense. O curso selecionado fora o de Letras Clássicas e nele se estudava línguas: portuguesa, latina e grega.
Osvaldo Arns é um desses ilustres representantes do magistério, cativante pela sua maneira de dar aulas. Nós, alunos, ficávamos enlevados com as histórias fantásticas dos heróis da civilização grega retratados principalmente por autores como Homero, Hesíodo e Xenofonte, além dos líricos das odes, como Safo e Alceu. Foram três anos intensos de estudos da língua, da literatura e da cultura grega.
No quarto ano do curso, quando se cumpriam as disciplinas pedagógicas da licenciatura continuei o contato pedagógico com o Professor Arns. Fiz o estágio no Colégio Estadual acompanhando-o em suas aulas de Latim.
Além de um grande helenista, era também conhecedor profundo da língua, literatura e cultura latina. Falava fluentemente várias línguas, o alemão, o francês e o inglês.
A admiração que se iniciou na Universidade Federal do Paraná estendeu-se por outras épocas, em outras atividades da vida acadêmica e da vida social, quando Osvaldo Arns assumiu a reitoria da então Universidade Católica do Paraná - UCP. Como chefe do Departamento de Letras, tive a oportunidade de trabalhar a seu lado na organização do curso que eu dirigia.
Foi um homem profundamente culto, humanista, católico, grande mestre de várias gerações. Ensinou alunos, ensinou professores e foi exemplo para a sociedade. Sua memória como professor, reitor e cidadão permanece em nós que tivemos a felicidade de conhecê-lo e com ele conviver.

domingo, 5 de outubro de 2008

POETAS PARANANESES QUE EU CONHECI

Aqui se incluirão poetas paranaenses que conheci em Curitiba. São apresentados três. A poetisa Graciette Salmon é a primeira a aparecer. Depois virá o poeta Heitor Stockler de França. Finalizará a série o poeta Colombo de Souza.


1.GRACIETTE SALMON

Graciette Salmon, poetisa autenticamente paranaense, é nascida em Curitiba. Recebeu várias homenagens e, inclusive, é nome de rua da cidade. Infelizmente, longe de lugares freqüentados pelos literatos curitibanos, Graciette não recebeu a devida atenção e é pouco conhecida do público leitor.
Suas obras poéticas são em grande número e grandes em sua qualidade: O que ficou do sonho, 1947; Caminhos de ontem, 1953; A vida por dentro, 1956; À beira do tempo, 1958, uma separata de Um Século de Poesia, edição do Centro Paranaense Feminino de Cultura; Enquanto houver caminho, 1958, obra premiada pelo Centro de Letras do Paraná; Dona vida, 1964; Pássaro perdido, 1967; Estrela sozinha, 1969; Vitral Iluminado, 1971; Ciranda, 1982.
Escreveu ainda crônicas, que publicou sob o título Cantinho de poesia, 1964. É autora de Vão clamor, ensaio crítico sobre a poesia de outro poeta paranaense, Leôncio Correia.
Como autora, mereceu a atenção de alguns críticos que escreveram sobre elas obras como o ensaio:
Graciette Salmon: A Ciranda da Estrela Sozinha, de Adélia Maria Woellner, publicado pela Editora Torre de Papel, em 2003. Foi biografada por Eliane de A. Krueger na obra Graciette Salmon, que saiu em Curitiba em 1992 e é uma publicação da Secretaria de Estado da Cultura.
Eu tive a oportunidade e uma felicidade rara de conhecê-la. Foi ao início de 1957, quando cheguei a Curitiba. Como estudante de Letras, freqüentava uma Banca de Revistas, próxima à Praça Tiradentes, para ver as novidades literárias e principalmente para comprar o Jornal de Letras, à época muito procurado e lido. Foi em uma de suas páginas, provavelmente a manchete da capa, não estou lembrado, que fiquei sabendo do lançamento de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, que acabara de ser lançado ao final de 1956. Alguns intelectuais curitibanos freqüentavam esse espaço. Dentre eles, a poetisa Graciette Salmon. Certo dia, fui apresentado a ela pelo dono da Banca e ali começou uma amizade natural e muito interessante, porque havia encontrado alguém para falar de literatura e, muito especial, de poesia. Dela recebi, autografado, o livro Caminhos de Ontem, que lançara há pouco tempo. É uma obra que conservo com muito carinho.
Graciette Salmon, sempre em busca de um amor puro e ideal, escreveu poemas de intenso lirismo. A sua poesia demonstra certo fatalismo, como se retratasse um constante fracasso amoroso. Esse negativismo é uma das marcas da sua poesia.
Aqui se reproduz o início, versos do meio e, finalmente, os últimos versos do poema Carta a Papai Noel, do livro O que Ficou do Sonho:

CARTA A PAPAI NOEL

Papai Noel

Eu não fiquei zangada.
Fiquei triste
porque tu não me ouviste
ou compreendeste mal o meu pedido.
Talvez estivesses
demais atarefado
com os rogos e preces
que te fazia tanta gente,
e por isso, sem mesmo ter notado,
tu me deste um presente
a outra destinado.

°°°
Papai Noel:
não te condeno e não te recrimino.
°°°
Eu queria
- e isso o que pedi com muito ardor -
o ouro precioso e fino,
o ouro genuíno
de um grande e puro amor,
mas trouxeste um amor de fantasia,
um amor de latão,
que andou rolando,
passando
de um a outro coração.
Assim, portanto, o teu presente
aqui te mando em devolução.
Há-de querê-lo, certo, muita gente,
mas eu, Papai Noel velhinho e amigo,
- não te zangues comigo –

não quero nada de segunda mão.

Do livro Caminhos de Ontem, apresenta-se este poema em estilo meio parnasiano, meio simbolista. Nele, com a forma sintética do soneto e com o sincretismo poético, a autora, como se pintasse um quadro, mostra-nos um sentimento profundo, a saudade da pessoa amada. amada

É ASSIM...

Lembra suave toque no marfim
de um piano solitário, em gesto breve;
lantejoilas caindo no cetim,
folhas mortas rolando sobre a neve.

Lembra a nuvem silente no sem fim
do céu azul fugindo, branca e leve;
eco apagado, débil som, enfim,
que se erguer em suspiro não se atreve.

Sutil, despercebida como passa,
lembra o traço ligeiro de fumaça
que à paisagem se funde e ninguém vê.

É assim - imperceptível, mas cravada
dentro do coração, como uma espada –
a Saudade que eu tenho de Você.


2. HEITOR STOCKLER DE FRANÇA

Heitor Stockler de França nasceu no dia 5 de novembro de 1888, na cidade de Palmeira, interior do Paraná. Completou o curso ginasial em Curitiba, em 1936. Terminou o curso superior na Faculdade de Direito da Universidade do Paraná em dezembro de 1941.
Como escritor, Heitor Stockler de França destacou-se na poesia, com vários livros publicados e como membro ativo da Academia Paranaense de Letras, em que ocupou a Cadeira n.º 36.. Em 1974, distribuiu uma mensagem original de final de ano: o livro com sua produção poética de 1948 a 1973, editado com o título Poemas de Natal. Convivera com os principais intelectuais do Paraná: os poetas Emiliano Perneta, Emílio de Menezes, Sharffenberg de Quadros e do historiador Rocha Pombo.
Foi poeta lírico de alta sensibilidade e de grande carga emotiva que apareciam em seus poemas que surgiam de sua fértil inspiração. Sua obra poética é bastante grande e aparece como exemplo de otimismo e de alegria de viver. Assim era o poeta que sempre estava ao lado de seus amigos.
Heitor Stockler de França faleceu no início de 1975, em 11 de janeiro. Assim o Paraná perdia aquele que foi considerado o maior poeta paranaense e que recebera o título de “Príncipe dos Poetas do Paraná” em pesquisa de opinião promovida pelo jornal O Estado do Paraná, em 1950.
Como depoimento pessoal, relato que conheci Heitor Stockler de França em 1958, época em que morava em uma pensão para estudantes e funcionários de firmas de Curitiba. Ali, como amigo da família proprietária da pensão, tive a oportunidade de conhecer e conversar com o poeta. Ele era padrinho da filha da dona da pensão. Sempre se mostrou ser um senhor comedido e culto, grande incentivador de jovens que se iniciavam nas letras, ou que tinham vontade de algum dia vir a escrever. Eu, principalmente, conversava com ele sobre poesia. Ele chegou a corrigir uns versos meus dos não gostara. Em 1960, tendo me mudado para outra moradia, perdi o contato com Heitor Stockler de França. Assim foi o nosso breve, mas denso, convívio cultural.
Como demonstração do seu modo de fazer poesia, incluo dois poemas, uma homenagem a seu amigo Emílio de Menezes e um poema sobre o fim de um amor:

EMÍLIO DE MENEZES

Habita, finalmente, o primoroso esteta
A região da tristeza, e da eterna saudade...
Que vácuo por aqui e que mágua secreta.
A amigos corações, acerbamente, invade.

Punge-me recordar que falta faz o poeta
Ideal do trocadilho e de jovialidade...
Era um prazer fruir, na roda predileta
Onde Emílio estivesse, a boêmia alacridade.

E creio sempre mais, Emílio era um somente,
Do artístico soneto ao jocoso candente,
Ele bem conhecia os íntimos arcanos.

Glória! Glória perpétua ao fulgurante artista,
Ao príncipe imortal da sátira imprevista,
A Emílio - o grande Rei dos poetas parnasianos!

FINIS

Talvez não seja o meu amor extinto.
Quem sabe? Penso e fico menos triste.
E algum prazer só de pensar eu sinto...
Só de pensar que o meu amor existe.

- E existe, disse ao coração, - existe!

Mas, me enganei, fora ilusão fugace,
Quanta perfídia ela guardava em si.
E se calou, ao menos se falasse...
Se me falasse eu via que menti.

- Menti, diria ao coração, - menti!

Porém, agora, é tudo descoberto...
Se perguntar-me o desespero seu:
- Que é desse amor, que eu já contava certo?...
- Que é desse amor? Existe ou já morreu?

- Morreu! Direi ao coração, - morreu!

3. COLOMBO DE SOUZA

O poeta Colombo de Souza nasceu em 1920, em Colombo, cidade próxima de Curitiba. Ficou órfão muito cedo, o que o levou a trabalhar em vários lugares. Foi funcionário da Universidade do Rio de Janeiro e formou-se primeiramente em História e mais tarde em Direito.
Autor de vários livros de poesia e inclusive um de teatro, Colombo de Souza, em A Árvore do Sonho se volta ao imaginário infantil. Essa peça teatral saiu em edição que abrigava também a obra poética Poemas Quase Místicos, de 1987. Além desses, publicou treze livros, entre obras individuais e antologias. Iniciou com a publicação de Painéis, em 1945 e como obras importantes, todas em poesia, podem citar-se: Desencanto, 1946; Fuga, 1948; O Hóspede e a Ilha, 1953; Oráculo, 1957; O Antípoda, 1959; Estágio, 1960; O Anúncio do Acontecido, 1968.
Colombo de Souza, como se informa em nota por ocasião do lançamento do livro Fuga foi demitido de uma academia de letras por converter-se à poesia moderna . Sobre Fuga, afirmava-se que era obra hesitante como toda a poesia moderna.
Tive a oportunidade de conhecer Colombo de Souza no início dos anos 60. Ele era grande amigo do Professor Azaury Marés de Souza, meu colega de magistério no Ginásio Professor João Cândido. Grande contador de anedotas fazia com que passássemos longo tempo ouvindo suas histórias e também algumas piadas. Com o passar do tempo, perdi o contato com o poeta, mas ficou em mim uma forte impressão de Colombo de Souza como poeta e como homem bom vivant, e boêmio, Colombo de Souza, como o era também o meu amigo Azaury.
Hoje, em sua homenagem e em homenagem à poesia paranaense, ficam dois poemas para os leitores entrarem em contato com a sua poesia. O primeiro, um soneto, evoca o passado parnasiano/simbolista do poeta; o segundo, versa um tema também muito grato, principalmente aos neo-simbolistas, que é a aproximação da poesia à música:

ALEGORIA DA BAILARINA NOTURNA

Ei-la esculpida em seus mistérios, nua
no camarim azul da imensidade;
muros sem fim encarceram a sua
virgem alma no tempo sem idade.

Ei-la a bailar - a música insinua
a transparência do bailado que há de
vestir de espelho seu perfil de lua,
no encantado mural da Eternidade.

Quem não amar a Bela Adormecida
não cantará com ela o hino da vida,
rosas de amor plantando pelo mundo.

Seus gestos musicais nadam contornos
de almas, sonham jardins, descem ao fundo
do seu cenário de violinos mornos.

ÁRIA PARA FLAUTA

Entre o luar e a praia
Na medida exata

E em meu céu desmaia
Outra ilusão de prata;

Sempre o amor me atraia
No azul da serenata:

- Serás a antiga praia,
Serei o luar de prata.