domingo, 2 de novembro de 2008

FERNANDO PESSOA E A POESIA DOS HETERÔNIMOS: RICARDO REIS

Fernando Pessoa é o grande poeta do Modernismo português e um dos maiores da língua portuguesa. Os críticos costumam dizer que um ciclo da poesia portuguesa se abre com Camões e se fecha com Fernando Pessoa. Camões teve de esperar 500 anos para surgir outro como ele. Na não-modéstia de Fernando Pessoa, com ele próprio surgira um supra-Camões.
O fenômeno dos Heterônimos, outros poetas que habitam a alma poética de Fernando Pessoa, colaborou para dar a ele merecido destaque. Assim, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos (deixando de lado Bernardo Soares, o Heterônimo da prosa poética do Livro do Desassossego), representam a tríade dessa incrível capacidade criadora de Fernando Pessoa de transmudar-se em novos poetas.
Cada um desses Heterônimos tem seus admiradores particulares. Por mim, ficaria com os três, mas ao optar por um deles, teria dúvida entre Caeiro e Reis. Para eliminar o problema de qual deles inserir primeiro no Blog, seguirei a ordem cronológica do estilo de época (se se pode falar em estilo de época nos Heterônimos!) de cada um deles.
Portanto, será postado inicialmente Ricardo Reis, o clássico e epicurista poeta das Odes, que, ao estilo dos poetas gregos e latinos, poetiza o viver pouco humano e meio divino, em que o homem, prisioneiro do Destino, move-se entre o não gozar e o não sofrer as coisas do mundo. Sofrê-las causaria dor, e o homem deve fugir a qualquer sensação extrema de sofrimento; gozá-las faria os deuses sentirem inveja e poderiam, assim, castigá-los. Os homens devem viver em uma espécie de áurea mediocritas. Por isso, eles têm de viver como se vivessem no limbo. Assim, não podem ter grandes alegria, nem grandes desgostos. Essa é a essência da filosofia herdada dos filósofos e dos poetas seguidores de Epicuro.

Como cidadão, na biografia escrita por Fernando Pessoa, Ricardo Reis é médico e vive numa espécie de exílio voluntário no Brasil. Porém, voltou-se para a leitura dos clássicos e embebe-se na cultura greco-latina.
Seguem três poemas de Ricardo Reis:

ODE 315

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

ODE 359

Prazer, mas devagar,
Lídia, que a sorte àqueles não é grata
Que lhe das mãos arrancam.
Furtivos retiremos do horto mundo
Os depredandos pomos.
Não despertemos, onde dorme, a Erínis
Que cada gozo trava.
Como um regato, mudos passageiros,
Gozemos escondidos.
A sorte inveja, Lídia. Emudeçamos

ODE 394

Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo,Seja eu jovem por erro.
Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante.
Que mais quero?

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