segunda-feira, 24 de novembro de 2008

PORTUGAL E O 25 DE ABRIL

PORTUGAL E O 25 DE ABRIL

1. A data na história de Portugal
O dia 25 de abril de 1974, em Lisboa e em Portugal, amanheceu real e simbolicamente sob uma nova ordem. A Revolução dos Cravos estava nas ruas de todas as cidades e nos caminhos todos de Portugal. Soldados desfilavam com seus carros de guerra ao passo que iam recebendo as homenagens da população que enfeitava seus fuzis com cravo vermelho, o símbolo de Portugal. Essa flor empunhada pelos participantes do MFA - Movimento das Forças Armadas passou a ser também a referência da Revolução que derrubava, naquele momento, as últimas resistências de um Salazarismo já ultrapassado no tempo e na vontade dos portugueses.
A Revolução dos Cravos trouxe raios de esperança ao sofrido povo português daqueles tempos. O terror da ditadura, embora bem mais branda, ainda assustava. Eram prisões, eram exílios, eram separações. Tudo contribuía para um sofrimento que agora parecia haver sido extinto.

2. Os festejos do 25 de abril
Naquele ano de 1974 e nos que se seguiram, o povo saiu e continuava a sair para festejar o acontecimento. A data passou a ser oficial. Muitos edifícios, construções, escolas que ostentavam o nome pomposo de Salazar, passaram a denominar-se 25 de Abril.
Em 1981, tive a oportunidade de assistir aos festejos alusivos à data. O povo festejava nas ruas, nas praças, nos bosques. A alegria era incontida. O vermelho dominava a paisagem. As bandeiras desfraldadas enfeitavam a festa. Era tudo alegria, comemoração.



3. A literatura “pós-25 de abril”
O grande entusiasmo popular chegou aos escritores. Surgiu, então, uma literatura que chegou a ser chamada “Literatura Pós-25 de Abril”. Esta denominação, que alguns críticos a rejeitam, mas que não podem negar que, de qualquer modo, produziu numerosas grandes obras. Com ela, surgiram novos escritores, como Lídia Jorge, e outros, já autores conhecidos, como Almeida Faria, e outros ainda surgidos em épocas bem anteriores, como Fernando Namora, passaram a produzir novas obras.
Dentre as principais e mais conhecidas obras com o rótulo de “pós-25 de abril”, publicaram-se: Levantado do Chão, de José Saramago, romance influenciado pelo Neo-Realismo; Os romances inovadores O Triunfo da Morte, de Augusto Abelaira e Lusitânia, de Almeida Faria, e O Dia dos Prodígios, da iniciante Lídia Jorge; A narrativa meio realista, meio surrealista Os Cus de Judas, de Lobo Antunes; os policiais Balada da Praia dos Cães, de José Cardoso Pires, e O Rio Triste, de Fernando Namora; além de outros, como O Mosteiro, de Agustina Bessa Luís, e O Silêncio, de Teolinda Gersão.

4. Três textos de obras representativas do “pós-25 de abril”
Para ilustrar a “literatura pós-25 de abril”, selecionamos três textos de diferentes obras. O primeiro
é um fragmento de Lusitânia, de Almeida Faria; o segundo pertence à obra O Rio Triste, de Fernando Namora; e o terceiro é de O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge:

ALMEIDA FARIA – Lusitânia, p. 43.

RESPOSTA DE ARMINDA A JC EM MEMORÁVEL DATA:

Montemínimo, 25 de abril

Querido João Carlos,

quando a minha missiva aí chegar já estarás bem informado do que aqui se passa. Acho que, em vez de ser eu a partir como me aconselhas, deves ser tu a fazê-lo, não só por causa da morte do Pai, também porque a ditadura já não dura. Se anda­mos a lutar pelo fim dela, não tanto quanto Samuel mas o bastante para te zangares com o Pai, não faz sentido ficares num exílio voluntário agora que os exilados vão voltar, segundo parece mais provável. Ainda se não sabe até onde irão estes militares, nem se soará a hora das massas populares. Pelo menos porém fala-se em demo­cracia, quase novidade neste país.

FERNANDO NAMORA – O Rio Triste, p. 97.

Dessa vez, fora a própria polícia a contactar os jornais. Havia um caso bicudo, era preciso dar-lhe relevo. Um ho­mem desaparecido, telefonemas misteriosos, uma gabardina deixada num cacilheiro. O homem que a vestia (ou que, nesse dia, não chegara a vesti-la) fora visto num dos barcos que fazem a travessia do Tejo, encostado ao gradeamento da amurada, sozinho, num modo de quem não se sentia muito bem. Mesmo pondo em dúvida o rigor destas minúcias, a verdade é que o homem chamara as atenções da pessoa que ocasionalmente o observara e que, no fim da viagem, ao re­parar que o enigmático passageiro deixara a gabardina es­quecida no banco, fora sobre ele para o advertir, porém sem resultado, pois sumira-se entre a massa de gente que se dirigia para o ancoradouro. Então, a pessoa, depois de ter hesitado se deveria incomodar-se tanto com um desconheci­do desmazelado ou distraído, decidira-se a entregar a gabar­dina ao mestre do barco. Por último, a gabardina fora parar aos achados e perdidos da polícia, um agente, por mero pal­pite, recambiara-a para a secção de pessoas desaparecidas, talvez porque nessa tarde lera uma pequena notícia acerca de um tal Rodrigo Abrantes.

LÍDIA JORGE – O Dia dos Prodígios, p. 152-3.

Vamos. Vamos ser visitados por seres saídos do céu, e vindos de outras esferas. Onde os séculos têm outra idade. Afastem-se, vizinhos, que esta visão costuma fulminar. As crianças correram estrada fora, comandadas pela coragem. Sentiam que o mar ia chegar atrás dum barco de velas alvadias e soltas, desfraldadas à levíssima brisa da tarde. E também começaram a esbra­cejar, esboçando gestos de natação. Mas Macário. Tendo sido o último a enxergar, teve a visão exacta. No momento da surpresa ainda tinha os olhos fechados de repetir pela última vez. À espera de ocasião. À espera de ocasião.
- Isto é um carro de combate. Oh vizinhos.
Na verdade, a pleno meio da estrada avançava um carro singular, porque vinha pejado de soldados garbosos e épi­cos, penetrando já pelo centro de Vilamaninhos com ban­deiras e flores. E cantavam por um altifalante como se viessem munidos de uma poderosa orquestra. Agora já o espectáculo era tão real e tão bonito que todos. Esquecidos desses primeiros segundos de pasmo e confusão. Sentiram estar suspenso o toque, o canto e a audição desde há muito. Para só ouvirem e verem aquilo que chegava em cima duro carro aberto e blindado. Todos tinham a certeza que desde o tempo dos reis nunca mais se vira de igual. Ah mara­vilha. Então o carro: parou em frente do grupo, e fez-se um momento de silêncio tão solene que as pessoas 'Pensaram ir morrer. Mas um soldado. Particularmente bem feito, tendo sem dúvida nascido numa terra muito diferente; Começou a falar de cima do carro, agora, parado no largo. Dizia coisas. Que tinha - feito uma re vo lu ção, e que era pre­ciso animar os espíritos. porque tudo. Tudo. E abria uns braços de salvador. Tudo iria ser modificado. Falava tão bem, que todos se encontravam encantados no timbre daquela voz. E nas maneiras másculas, sendo contudo deli­cadas, como se não sentisse o soldado o peso do corpo. Na farda, no cabelo levemente encaracolado. E ninguém era capaz de dizer fosse o que fosse, presos, todos da surpresa e da maravilha. Nem Macário. Nem Manuel Ger­trudes. Os outros soldados sentindo sem dúvida a per­turbação que invadia os naturais de Vilamaninhos, le­vantaram então os braços e disseram o que os ouvintes por­ventura queriam dizer. Mas falaram os soldados em con­junto. Tão alto e tão vibrante. Que os vilamaninhenses só compreenderam que uma grande coisa eles haviam dito, e maiores a:inda teriam a dizer no futuro. Quando acabaram o largo estava cheio de gente que escutava. Nem se sentia o vazio dos ausentes. E Macário, receando que os habitan­tes de Vilamaninhos estivessem a desempenhar o papel de bêbados na perfeição, e animado, porque antes da chegada, acabara de ouvir da boca do seu vizinho, que o seu lugar não deveria ser ali. Sentindo-se patrício desses forasteiros. Disse.
- Nós aqui soubemos logo, dois dias depois, que vocês tinham feito a re vo lu ção. Mas nunca pensa­mos que chegássemos a ver os heróis.
O soldado que havia falado agradeceu com a mão. Todos os outros tinham um ar solene e marcial, não duvidando ninguém que tais homens venceriam as maiores batalhas. Disse também o soldado formosíssimo, com flores a desfo­lharem-se nas abotoadeiras. Que era preciso que aquela terra se capacitasse que o tempo da li ber da de tinha che­gado.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

POEMA DE GABRIEL BUENO

Gabriel de Carvalho Bueno é brasileiro de nascimento, mas espanhol de alma. Segundo quem o conhece: "Tiene sangre española en la medula". Mesmo atarefado com diversos vestibulares para a área das Engenharias, encontra tempo e disposição para contribuir com o Blog do seu avô.
Aqui se inclui um poema de sua autoria:

¡OLÉ!

Clarines suenan retumbantes
El torero en la arena
¡Qué venga el toro bravejante!
Pues la plaza ya está llena

Un niñato juega por la Calle del Agua
Gitanas bailan
Gitanas cantan
Por las calles de Granada

Giralda es la gran torre
Quién ya ha visto Sevilla
Por ella se muere

A las cinco en punto de la tarde
Federico miraba a la corrida
A las cinco en punto de la tarde
¡Qué recuerdo, qué penita!

Al toque de un pasodoble
Es que vibra toda la gente
Cuando se ponen el toro y el torero
Los dos frente a frente

El torero con mucha pena se quedó
Y a cambio de claveles
Aquél toro negro no lo mató


.

sábado, 15 de novembro de 2008

GÊNERO EPISTOLAR

O gênero epistolar sempre teve seus cultores. Em Portugal, na época do Barroco, ficaram famosas as cartas de amor de Sóror Mariana Alcoforado e as cartas familiares de Dom Francisco Manuel de Melo, para citar apenas dois exemplos. Em vários outros estilos de época e em toda a literatura universal surgiram grandes autores de epístolas, tanto em prosa como em poesia.
Os séculos XVIII e XIX foram pródigos em autores de epístolas poéticas: Voltaire, Rousseau, Shelley, Byron, Filinto Elísio (Francisco Manuel do Nascimento), Castilho, Musset, Victor Hugo, Mallarmé e um grande número de outros.

O gênero epistolar inclui epístolas propriamente ditas, cartas, bilhetes e outras formas.
Aqui, incluem-se duas cartas e um denominado bilhete, cujo texto não deixa de ser uma carta poética.

Os poetas brasileiros selecionados foram os mineiros Carlos Drummond de Andrade e Adélia Prado, e o gaúcho Mário Quintana:

CARTA (Drummond)


Há muito tempo, sim, que não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo,
estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
"Deus te abençoe", e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.

BILHETE EM PAPEL ROSA (Adélia)

Ao meu amado secreto, Castro Alves.

Quantas loucuras fiz por teu amor, Antônio.

Vê estas olheiras dramáticas,
este poema roubado:
"o cinamomo floresceem frente do teu postigo.
Cada flor murcha que desce,morro de sonhar contigo.
"Ó bardo, eu estou tão fracae teu cabelo é tão negro,
eu vivo tão perturbada,
pensando com tanta força
meu pensamento de amor,
que já nem sinto mais fome,
o sono fugiu de mim. Me dão mingaus,
caldos quentes, me dão prudentes conselhos,
eu quero é a ponta sedosa do teu bigode atrevido,
a tua boca de brasa, Antônio, as nossas vidas ligadas.
Antônio lindo, meu bem,
ó meu amor adorado,
Antônio, Antônio.
Para sempre tua.

CARTA DESESPERADA (Quintana)

Como é difícil, como é difícil, Beatriz, escrever uma carta...
Antes escrever os Lusíadas! Com uma carta pode acontecer
Que qualquer mentira venha a ser verdade...
Olha! O melhor é te descrever, simplesmente,
A paisagem,
Descrever sem nenhuma imagem, nenhuma...
Cada coisa é ela própria a sua maravilhosa imagem! Agora mesmo parou de chover.
Não passa ninguém. Apenas
Um gato
Atravessa a rua
Como nos tempos quase imemoriais
Do cinema silencioso...
Sabes, Beatriz? Eu vou morrer!

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

FERNANDO PESSOA E A POESIA DOS HETERÔNIMOS: ÁLVARO DE CAMPOS

Fernando Pessoa é o grande poeta do Modernismo português e um dos maiores da língua portuguesa. Os críticos costumam dizer que um ciclo da poesia portuguesa se abre com Camões e se fecha com Fernando Pessoa. Camões teve de esperar 500 anos para surgir outro como ele. Na não-modéstia de Fernando Pessoa, com ele próprio surgira um supra-Camões.O fenômeno dos Heterônimos, outros poetas que habitam a alma poética de Fernando Pessoa, colaborou para dar a ele merecido destaque. Assim, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos (deixando de lado Bernardo Soares, o Heterônimo da prosa poética do Livro do Desassossego), representam a tríade dessa incrível capacidade criadora de Fernando Pessoa de transmudar-se em novos poetas.

Álvaro de Campos é o heterônimo que representa o lado modernista, ou mais propriamente, futurista de Fernando Pessoa. É o poeta das grandes odes, como a Ode Marítima e a Ode Triunfal. Como Marinetti, prefere a máquina às belas estátuas dos museus. Os avanços técnicos permitem à humanidade deslocar-se com a velocidade dos comboios, dos carros e dos aeroplanos.
Como cidadão, Álvaro de Campos é engenheiro naval, formado na Escócia. Adepto do Futurismo, poetiza a velocidade e as conquistas técnicas. Seus longos poemas próximos da prosa mostram um homem sempre angustiado e que busca fugir de tudo aquilo que o atormenta.
Seguem três poemas de Álvaro de Campos:

SONETO


Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei-de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente, reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

DOBRADA À MODA DO PORTO

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,

Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo. Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.

Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?

Eu não sei, e foi comigo...
(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,

Particular ou público, ou do vizinho.
Sei multo bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,

Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

POEMA

Todas as cartas de amor são

Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,

Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,

Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,

Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia

Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje

As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,

Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

FERNANDO PESSOA E A POESIA DOS HETERÔNIMOS: ALBERTO CAEIRO

Fernando Pessoa é o grande poeta do Modernismo português e um dos maiores da língua portuguesa. Os críticos costumam dizer que um ciclo da poesia portuguesa se abre com Camões e se fecha com Fernando Pessoa. Camões teve de esperar 500 anos para surgir outro como ele. Na não-modéstia de Fernando Pessoa, com ele próprio surgira um supra-Camões.O fenômeno dos Heterônimos, outros poetas que habitam a alma poética de Fernando Pessoa, colaborou para dar a ele merecido destaque. Assim, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos (deixando de lado Bernardo Soares, o Heterônimo da prosa poética do Livro do Desassossego), representam a tríade dessa incrível capacidade criadora de Fernando Pessoa de transmudar-se em novos poetas.

Alberto Caeiro, o mais “simples” dos heterônimos é o poeta da Natureza por excelência. O adjetivo simples em Caeiro significa apenas a aparência de sua poesia, pois ele é tão complexo como é complexa toda a poesia de Fernando Pessoa. Ele mesmo quer se fazer passar por um poeta que não pensa, mas que é apenas sensorial. Ele, segundo ele próprio, não pensa a Natureza, vive a Natureza. Esse viver a Natureza o caracteriza como um poeta realista, um pouco impressionista e principalmente panteísta.
Alberto Caeiro, pela sua simplicidade, é adotado pelos outros heterônimos como o Mestre. Como cidadão, na biografia escrita para ele, é um pequeno agricultor que vive próximo de Lisboa e que raramente freqüenta a cidade. É fã dos poetas realistas e vive a ler Cesário Verde.
Seguem três poemas de Alberto Caeiro:


POEMA 208

Ao entardecer, debruçado pela janela,

E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês

Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...

Por isso ele tinha aquela grande tristeza

Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...

POEMA 233


Li hoje quase duas páginas

Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.

Os poetas místicos são filósofos doentes,

E os filósofos são homens doidos.

Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem

E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.

Mas flores, se sentissem, não eram flores,

Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.

É preciso não saber o que são flores e pedras e rios

Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.

Por mim, escrevo a prosa dos meus versos

E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza.

POEMA 225

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios

E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha

E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.

Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.

Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

domingo, 2 de novembro de 2008

FERNANDO PESSOA E A POESIA DOS HETERÔNIMOS: RICARDO REIS

Fernando Pessoa é o grande poeta do Modernismo português e um dos maiores da língua portuguesa. Os críticos costumam dizer que um ciclo da poesia portuguesa se abre com Camões e se fecha com Fernando Pessoa. Camões teve de esperar 500 anos para surgir outro como ele. Na não-modéstia de Fernando Pessoa, com ele próprio surgira um supra-Camões.
O fenômeno dos Heterônimos, outros poetas que habitam a alma poética de Fernando Pessoa, colaborou para dar a ele merecido destaque. Assim, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos (deixando de lado Bernardo Soares, o Heterônimo da prosa poética do Livro do Desassossego), representam a tríade dessa incrível capacidade criadora de Fernando Pessoa de transmudar-se em novos poetas.
Cada um desses Heterônimos tem seus admiradores particulares. Por mim, ficaria com os três, mas ao optar por um deles, teria dúvida entre Caeiro e Reis. Para eliminar o problema de qual deles inserir primeiro no Blog, seguirei a ordem cronológica do estilo de época (se se pode falar em estilo de época nos Heterônimos!) de cada um deles.
Portanto, será postado inicialmente Ricardo Reis, o clássico e epicurista poeta das Odes, que, ao estilo dos poetas gregos e latinos, poetiza o viver pouco humano e meio divino, em que o homem, prisioneiro do Destino, move-se entre o não gozar e o não sofrer as coisas do mundo. Sofrê-las causaria dor, e o homem deve fugir a qualquer sensação extrema de sofrimento; gozá-las faria os deuses sentirem inveja e poderiam, assim, castigá-los. Os homens devem viver em uma espécie de áurea mediocritas. Por isso, eles têm de viver como se vivessem no limbo. Assim, não podem ter grandes alegria, nem grandes desgostos. Essa é a essência da filosofia herdada dos filósofos e dos poetas seguidores de Epicuro.

Como cidadão, na biografia escrita por Fernando Pessoa, Ricardo Reis é médico e vive numa espécie de exílio voluntário no Brasil. Porém, voltou-se para a leitura dos clássicos e embebe-se na cultura greco-latina.
Seguem três poemas de Ricardo Reis:

ODE 315

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

ODE 359

Prazer, mas devagar,
Lídia, que a sorte àqueles não é grata
Que lhe das mãos arrancam.
Furtivos retiremos do horto mundo
Os depredandos pomos.
Não despertemos, onde dorme, a Erínis
Que cada gozo trava.
Como um regato, mudos passageiros,
Gozemos escondidos.
A sorte inveja, Lídia. Emudeçamos

ODE 394

Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo,Seja eu jovem por erro.
Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante.
Que mais quero?