sexta-feira, 26 de setembro de 2008

UT PICTURA POESIS - A PINTURA COMO POESIA

Os latinos usavam uma expressão para afirmarem que a pintura é também poesia. Vindo de Horácio, que, na sua Arte Poética (c. 20 a. C.), escreveu a expressão referida e que foi traduzida “como a pintura, é a poesia”. Apesar de não possuir um significado estrutural, a expressão veio a ser interpretada como um princípio de similaridade entre a pintura e poesia. Plutarco já esclarecia que tal comparação tem fundamento no fato de pintura e poesia serem, supostamente, imitações da natureza. Como se sabe Aristóteles baseou a sua Poética no princípio da imitação, a mimese.
No Renascimento, como uma grande volta ao classicismo grego-latino, o preceito horaciano retomou sua importância, que continuou a ter uma grande divulgação entre os humanistas e contribuiu para igualar em as duas artes, pintura e poesia. No período do Neoclassicismo, no séc. XVIII, foi retomada a valorização do conceito de Horácio. Havia uma corrente a favor da poesia e outra da pintura. Assim, surgiram poemas descritivos que se pareciam com painéis pintados, principalmente as paisagens bucólicas dos árcades.
O princípio de similaridade entre poesia e pintura volta a ser reafirmado na época do Realismo, principalmente no Parnasianismo. Dessa forma, na literatura portuguesa, Cesário Verde com seus poemas exatos, geométricos, quer os urbanos, quer campesinos, são eles excelentes exemplos da relação entre pintura e poesia.
No Modernismo com suas Vanguardas, as relações entre ambas as artes estreitam-se a ponto de obras ou poemas pretenderem retratar quadros ou situações próprias da pintura, como é o caso dos caligramas, de Apollinaire. Assim outras obras apareceram tentando expor o que seria a fusão da expressão literária com a plástica.
Essa tentativa ressurge ainda com mais força na segunda metade do século XX, com o movimento da Poesia Concreta, iniciada no Brasil em 1950, com o lançamento da revista Noigrandes. Em livro surge com a publicação dos textos críticos e manifestos produzidos por um grupo de poetas entre 1950 e 1960. A obra que os publicou foi Teoria da Poesia Concreta, de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo Campos. Além deles, o movimento contou com inúmeros outros poetas, que foram paulatinamente agregando-se. Mais tarde, na continuidade do Concretismo aparece o paranaense Paulo Leminski, que publicou em 1964, na revista Invenção, dirigida por
Décio Pignatari, em São Paulo, que então se tornara o porta-voz da poesia concreta de São Paulo.
Com o surgimento da crítica fenomenológica por volta dos anos 60, surge uma obra marcante, O Poético, de Mikel Dufrenne. Nesse livro, o autor expõe: “pode-se dizer que uma tela ou um monumento introduzem em nós um estado poético”. Portanto, um quadro pintado ou um monumento erigido em praça pública podem nos levar a usufruir a poesia, porque ela pode estar contida na natureza, nas coisas e nas pessoas. Adiante Dufrenne afirma que, na natureza, a poesia pode estar em uma bela paisagem, num belo pôr do sol; nas coisas, reafirmando, em telas e monumentos; e em pessoas, no olhar da pessoa amada.
Para concluir e afastando-me das teorias, posso afirmar que tudo o que foi indicado por Dufrenne causa-me poesia, em especial a pintura, que foi a base desta explanação. Para exemplificar serão postados na seqüência telas de três pintores consagrados e com quem tive oportunidade de conviver em situação de elevada amizade.


1. EURO BRANDÃO
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Euro Brandão, o professor, o homem público, Ministro da Educação, é autor de inúmeras obras sobre universidade, educação e cultura. Na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, foi Reitor por três mandatos. O seu reitorado constituiu um dos períodos em que a PUCPR mais se destacou como grande Universidade. Na função o Reitor Euro Brandão demonstrou capacidade de administrar e de conduzir e de formar pessoas.
Como artista plástico, retratou em quadros e em gravuras a dor e a morte, mas também a esperança e a ressurreição, como exemplo eloqüente de transcendência. Em suas pinturas religiosas, é autor de uma Via Sacra que se encontra na Capela Jesus Mestre da PUCPR.
Euro Brandão era um o profissional altamente especializado e responsável. Como homem religioso, mostrava-se profundamente católico e assim agia em todos os seus atos. Ele pensava a ciência sempre em diálogo com a fé e, assim, também um meio para se atingir um bem supremo, a felicidade do ser humano.
Para iniciar, esta série de três pintores reconhecidos, apresenta-se uma tela de Euro Brandão acompanhada de um texto por ela inspirado:


Euro Brandão



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Terra lavrada
por velhos arados
da minha infância

Depois tantas terras lavradas
por modernas máquinas

Arados e máquinas sulcam a terra
e a terra assim revolta se fecunda

Por que as feridas abertas
em mim
não me tornaram fértil?



2. ESMERALDA



Francisca López Illescas, la pintora española Esmeralda, nació en la Provincia de Granada, en la Lancha de Cenes, hoy Lancha del Genil. Viviendo al pie de Sierra Nevada, su vida giraba en vuelta de aquel paisaje, como lugar de paseos y de ejercitar sus dotes de pintora de la Naturaleza. Siempre muy sola al lado de sus papás, Esmeralda, por temperamento aislada y tímida, le gustaba pasar el tiempo con su arte. En él soñaba y vivía. Así, el poeta la pudo comparar a un río: “Lágrima dulce vertida / sobre la piel de la tierra”.
Concentrada en su quehacer artístico, desde muy jovencita expone en los principales salones de arte, inicialmente en Granada y después en toda España. En Noviembre de 1968, con sus dieciocho años aproximadamente participaba con sus óleos en los Salones del Centro Artístico de Granada, conforme convite del Presidente del Centro, en que se ha hecho un homenaje a ella con la inclusión de un poema de M. R. del Castillo.
Para ejemplificar el arte de Esmeralda se incluye aquí uno de sus cuadros de mi propiedad y con él un pequeño texto inspirado por su pintura y muy en especial por este cuadro:

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SIERRA NEVADA
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España hace recordar
El frío de la Sierra
El calor de la familia unida

Refrigera y calienta
Suspira y alienta

Ella nos cubre
Con su manto blanco
Y diáfano



3. MÍRIAM MARTINS




Maria Miriam Taques Martins é paranaense, nascida em Ponta Grossa. Para seus quadros emprega o nome abreviado Miriam Martins.Formada em Letras pela Universidade Federal do Paraná e em Direito pela mesma Universidade, exerceu o cargo de Procuradora do Estado. Agora dedica-se à pintura e à música.
Tem participado de inúmeras exposições, sempre com grande sucesso. Classificada, por alguns, de naïf e de impressionista, mas, segundo Maria Célia Martirani, Miriam define-se como: “miniaturista, mas não ingênua, nem naif, já que, em seus quadros, trabalha com o rigor da perspectiva, influenciada por Renoir e Utrillo”. De Miriam, conheço quadros que, pelo realismo primitivista e ingênuo, aproximam-se da arte naïf. Outros lembram o Impressionismo, ou sofreram influências desse estilo. Para mim, que conheço suas tendências estéticas - fomos colegas do curso de Letras e naquela época se iniciava na pintura – Miriam é de um realismo que a aproxima de certo verismo. Mesmo que se deixe levar por algumas experiências, é sempre fiel ao seu estilo, o que a leva a pintar, como diz, sem seguir modismos e seguindo sua vocação e a inspiração que um objeto ou cenário a inspira.
Assim, retrata aspectos da cidade, principalmente de uma Curitiba que tem permanecido no tempo com seus velhos casarões. Pinta também a paisagem natural e lugares como o Passeio Público, um de seus temas. Nesta capital, expôs em vários espaços: Galeria Acaiaca, Agência Feminina do Banco Nacional, Eucatexpo, Solar do Rosário e Salão de Exposições da PUCPR. No exterior, apresentou obras em Paris, em 2007, na exposição Folclore du Brésil, na Galerie Thuillier. Em Milão, em 2008, participou de Brasile Tropicale, na Galleria d'Arte The New Ars Italica, coletivas de artistas brasileiros.
Registrou o barroco mineiro e a arquitetura eclética curitibana, as árvores e os bancos de jardins e de praças, o que a levaram a ocupar páginas do livro O Brasil por seus artistas, do Itamarati e do antigo Ministério da Educação e Cultura. É verbete do Dicionário das Artes Plásticas do Paraná, organizado por Adalice Araújo.
Recentemente, Miriam apresentou quadros no Salão de Pinturas da PUCPR – acervo do Reitor Clemente Ivo Juliatto, grande entusiasta das artes. Como a temática era a própria PUCPR, expôs quadros que retratam a Universidade: edifícios da Instituição ou agregados a ela, como os prédios da sede de São José dos Pinhais e o edifício tradicional do Círculo de Estudos Bandeirantes.
Para representar sua pintura e seu estilo, insere-se o quadro Passeio Público e o texto por ele inspirado:


PASSEIO PÚBLICO



O velho Passeio, fixado em tela,
Assume novas dimensões.
O verde musgo escorre das árvores,
As águas paradas marcam o tempo
De antigas gerações.

E no jardim lá fora
Adolescentes corações
Batem forte na paisagem
Lembrando velhas emoções
Como enganosa miragem.

Passeio de tanta história!
Que guardo
Vivo na memória.



CONCLUSÃO


Três pintores, três quadros, três poemas a indicarem que a pintura realmente se entrelaça com a poesia. Segundo os clássicos latinos, a pintura era poesia que falava. O conceito Ut pictura poesia, expressão usada por Horácio na sua Arte Poética (c. 20 a. C.) com o significado de “como a pintura, é a poesia”.
Apesar de não possuir um significado estrutural, o conceito veio a ser interpretado como um princípio de similaridade entre a pintura e poesia. Esse princípio de similaridade entre poesia e pintura volta a ser reafirmado com o Realismo e o Parnasiarismo, que pretendiam fazer literatura próxima da realidade e, portanto, apegados também ao conceito de mimese.
A poesia é concebida, assim, como a pintura e, vice-versa, a pintura é como a poesia. Na literatura, é principalmente a poesia que possui o privilégio de se ver comparada às artes. Sempre foram notadas aproximações da poesia com a música e, fundamentalmente, com a pintura.
Afinal, como diz Dufrenne, é poético um jardim em que crianças brincam, em que namorados se encontram, em que velhos passeiam. A poesia é, portanto, o fundamento de todas as expressões em que a natureza se exprime. Assim, passa a vigorar o conceito horaciano do
ut pictura poesis.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Cristóvão Tezza é Prêmio Jabuti de Literatura

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O Prêmio JABUTI, o mais tradicional e importante prêmio literário do Brasil, foi lançado em 1959. Hoje são premiados romances, livros didáticos, livros de ilustração e projeto gráficos.Entre os diversos vencedores do prêmio constam, dentre os principais, Moacyr Scliar, Rachel de Queiroz, Carlos Heitor Cony, Chico Buarque, Carlos Drummond de Andrade, Lygia Fagundes Telles e outros.

O primeiro ganhador do Jabuti na categoria Romance foi Jorge Amado, com Gabriela, Cravo e Canela, em 1959.

Prêmio Jabuti 2008 é a 50ª edição
Na edição de 50 anos do Prêmio, a comissão julgadora analisou 2.141 obras – 4% a mais que em 2007, quando participaram 2.052 publicações.
José Luiz Goldfarb, curador do Prêmio, destaca a multiplicidade de editores entre os finalistas: “O Jabuti nasceu com a missão de promover o mercado editorial no País e nada mais gratificante do que ver tantas editoras diferentes nas 20 categorias. Isso demonstra a diversidade do mercado e o fortalecimento do setor nesses 50 anos do Prêmio”.
Rosely Boschini, presidente da Câmara Brasileira do Livro, lembra que “nesses 50 anos o Jabuti transformou-se num instrumento democrático para promoção do melhor da cena literária brasileira, divulgando grandes escritores e lançando aqueles que ainda não são conhecidos do público”.
(http://www.cbl.org.br/. Acesso em 24.set.08)

CristóvãoTezza é o novo vencedor do Prêmio JABUTI, na categoria romance, com seu livro O Filho Eterno. O anúncio foi feito ontem à tarde pela Câmara Brasileira do Livro, responsável pelo Prêmio.
Tezza é radicado no Paraná e recentemente assumiu coluna no jornal Gazeta do Povo, em que escreve às terças-feiras.
Tezza, ao receber a notícia, falou sobre a boa acolhida do público ao romance, que marcou sua volta à editora Record no ano passado. "O livro pegou por conta da mistura de ficção com realidade”.(Adaptado de Gazeta do Povo. Curitiba)

RAQUEL ILLESCAS BUENO: Professora e autora de textos literários

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Raquel é uma jovem professora de Literatura na Universidade Federal do Paraná, trajetória que a levou para as Letras em troca de uma possível carreira jurídica, pois formou-se em Direito na UFPR. É mestre em Literatura na Universidade de São Paulo, com trabalho sobre Mário de Andrade, principalmente a análise de contos do grande literato e músico, um dos organizadores da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, em 1922. O seu doutorado, também na Universidade de São Paulo, deu-lhe a oportunidade de apresentar um importante estudo sobre o romance de Carlos Heitor Cony. Disse importante, porque é um trabalho bastante citado, inclusive pelo próprio Cony, que freqüentemente remete seus estudiosos ou entrevistadores a esse trabalho. A entrevista que ela fez com o autor e anexou à sua Tese é um documento que deveria estar publicado. É pena que esse trabalho e a Tese não estejam ainda ao dispor do público leitor e estudioso de Literatura. Além de suas muitas publicações na área da Literatura Brasileira e da Teoria da Literatura até mesmo para cumprir suas tarefas e seus compromissos com a Universidade e com seus alunos da graduação e da pós-graduação, Raquel tem produzido algum texto literário. Muito criativa, é pena que ainda não tenha publicado obra literária, aquela que dá alegria a seu autor e o completa como intelectual. Do que se conhece por estar na sua página do Lattes, a ode ao e-mail se destaca pela atualidade da temática e pela linguagem perfeitamente adequada ao tema e à modernidade do texto. É aguardar para ver quando teremos outros como esse, para satisfazer a nossa vontade de ler bons textos.

ode ao e-mail

(Raquel Illescas Bueno)

e-mail é carta de quem brinca de esconder

quer ver o escaninho vazio, mas tem o coração cheio

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às vezes se manda pra longe, às vezes pra muito perto

serve pra mandar embora

pra desejar boa viagem e pra trazer boas-vindas

e-mail mata saudades mais rápido que outro correio

existe pra quem tem pressa de saber se o outro é

ou queria sê-lo; se o outro veio

ou viria vê-lo,

sentir, falar, ouvir logo uma resposta

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às vezes - inevitável ? - e-mail é posta-restante,

só acontece quando a gente se esquece de abrir a caixa

quando a gente não se liga em se corresponder

quando a gente não se liga em se abrir

quando a gente não se liga

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e-mail não tem carteiro nem latido de cachorro nem campainha

pra avisar sua chegada

e-mail é discreto

tanto que nunca sabemos de segredos violados ou de senhas reveladas

tantos e tantas...

instruções de uso:

"a discrição do e-mail não garante o sigilo da mensagem"

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e-mail não garante nada

não quer ser fidúcia nem hipoteca de comunicação continuada

e-mail não quer ser contrato nem gerar direitos

e-mail é apenas mais um meio, "media"

(mass?)

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pra que seja coletivo, basta clicar mais destinos

é como espalhar filipetas por todo o bairro

anunciando o sabor novo

da pizza - delícia - que queremos compartir

"delivery!", o entregador já na porta

nas noites frias de inverno

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(lê-se acompanhado de um bom vinho

como merecem os encontros e reencontros prazerosos)

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nessas noites a gente fala e fala sem ter nada pra dizer

igualzinho quando a gente escreve e-mail

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porque e-mail é como beijo: não precisa de assunto

ele é meio vagabundo: erra, erra, e chega junto

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(Raquel Illescas Bueno é professora de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura na Universidade Federal do Paraná. - e-mail: raquel@coruja.humanas.ufpr.br).

terça-feira, 23 de setembro de 2008

MARIA CÉLIA: sua narrativa

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MARIA CÉLIA MARTIRANI é um jovem talento da literatura brasileira e italiana, porque seu livro para que as árvores não tombem de pé foi publicado em edição bilíngüe. É jovem como escritora por ter surgido recentemente, mas é jovem também como pessoa. É escritora que surgiu madura na técnica de narrar textos.Suas narrativas curtas, quer sob o formato de contos, ou de poemas em prosa, ou de outros gêneros, preenchem o vazio que eu sentia no atual panorama da nossa cidade. Eles tanto podem ser dramáticos, líricos, ou sob outras vestimentas, todas elas inovadoras, realizam-se plenos de uma intensidade narrativa alucinante que arrebata o leitor ou o estudioso de boa literatura. Isso a autora consegue pela estrutura, pelo estilo, enfim pela linguagem, que é a sua matéria prima. Assim, Maria Célia Martirani completa-se ao narrar e completa o leitor ao ler os seus textos. Sua literatura cumpre a função de comunicar, a de instruir e a de deleitar e enlevar. São textos de uma grande literatura e de uma grande autora. Para exemplificar a narrativa curta de Maria Célia Martirani, selecionei por critério estritamente pessoal, o texto dessacralização. Mesmo sabendo que o critério pessoal nem sempre seja o melhor pela subjetividade que encerra, penso, porém, que no caso de para que as árvores não tombem de pé todo texto selecionado seria uma ótima escolha.

dessacralização

Despreocupados e livres, caminhavam, matutinos, as calçadas de qualquer domingo. Uma alegria bêbada, não de quem bebeu muito, mas se embriagou demais com a simples presença de um na vida do outro. Que não era simples, mas era o bastante, eles que só assim se bastavam, puros de ar, água e sol... Falavam e riam, em risos falados mansos, fadados que estavam apenas àquela miúda felicidade... Os passos dele largos, os dela curtos, ela que tentava a todo custo o acompanhar... Daí, a igreja... Entraram pela lateral... Entraram só por entrar... Não, não que quisessem assistir missa, melhor a igreja assim vazia, só os dois, só um pouquinho, só agradecer... Que será que agradeciam? A mão dele envolvendo toda a frágil mãozinha dela, ela que de tão pequena, quase nem batia na altura do ombro dele ... Ele, que de tão alto, baixava generoso olhar pra encontrar o dela... Ajoelharam e apenas se deixaram ver por alguma imagem, algum santo, algum anjo voando solto no redondo da alta cúpula-vitral de luz. E foi com essa espécie de sabe-se lá que luz, que de lá logo saíram agora enlaçados, nos novos laços de fita de alguma esperança... Daí, virou o tempo... E eles estavam desprevenidos, desprevenidos que eram. E a garoa fina os apanhou de leve, no início, engrossando aos poucos, as gotas plenas, prenhes de águas de tanto céu... Molharam-se, mas mesmo assim, ele se lembrou de não deixá-la molhar. Tirou o casaco e o colocou na cabeça dela, com um beijo, com a ternura de quem cobre uma criança, um passarinho, uma pétala, um coração... E ela virou, de repente, quase santinha, com aquela espécie de manto-casaco, como se alguma das santas de verdade lá da igreja, cansadas da mesma imóvel e triste pose de sempre, resolvesse num rompante, descer do altar e, de braços dados com um gentil namorado, viesse dançar, na garoa da cidade, uma molhada e humana valsa...

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

LIVROS VESTIBULAR PUCPR - 2009

PRIMEIRA NOTÍCIA SOBRE OS LIVROS DO VESTIBULAR / 2009 - PUCPR

No site da Instituição: www.pucpr.br sobre o Vestibular / 2009 da PUCPR constam oito obras literárias sobre as quais serão elaboradas questões. Como o programa da Instituição prevê a cobrança de Literatura Brasileira do período do Romantismo à Atualidade, os livros exigidos teriam de se adequar a essa periodização.
É o que acontece, como se constata na relação apresentada:

1. Senhora, de José de Alencar
2. Dom Casmurro, de Machado de Assis
3. Poemas de Cruz e Sousa
4. Meus poemas preferidos, de Manuel Bandeira
5. São Bernardo, de Graciliano Ramos
6. Felicidade clandestina, de Clarice Lispector
7. Auto do Frade, de João Cabral de Melo Neto
8. Poemas de Paulo Leminski

I - A primeira, Senhora, de José de Alencar, é obra clássica em vestibulares e distingue-se pela temática discutida. É um romance social que pertence ao denominado estilo de época – Romantismo, aquele que predominou, na literatura brasileira, na primeira metade do séc. XIX, embora Senhora tenha sido publicado em 1875. José de Alencar faleceu em 1877 e, em 1893, postumamente, saiu Encarnação.
Como romance, embora classificado como social, Senhora segue a estética romântica em seus pormenores. A temática é que talvez seja inovadora, por tratar da compra de um marido. A linguagem, porém, é a mesma do Romantismo, lírica, poética, como se observa neste fecho do livro: “As cortinas cerraram-se, e as auras da noite, acariciando o seio das flores, cantavam o hino misterioso do santo amor conjugal”.
Sobre os personagens, principalmente Aurélia e Fernando, discutiremos em outra oportunidade.

II - Dom Casmurro, de Machado de Assis, é também obra que seguidamente
consta das relações de Concursos Vestibulares. Pertence à época do Realismo, que predominou na segunda metade do séc. XIX. Foi publicado já ao final do século, em 1899. Muitos estudiosos, infelizmente se alongam na discussão estéril se houve ou não adultério na relação entre Bentinho e Capitu, mas não percebem eles que exatamente é aí que reside o foco central do enredo, a essência da obra, que é a ambigüidade.
Os personagens centrais, Bentinho e Capitu, serão vistos proximamente, quando se enfocar a tensa relação matrimonial de ambos.

III – Os Poemas de Cruz e Sousa são obra revolucionária na literatura brasileira. Talvez tenha sido Cruz e Sousa o único poeta a assimilar por completo a estética simbolista no Brasil. Suas principais obras são: Broquéis, de 1893, e Missal desse mesmo ano. Postumamente saíram, em 1898, ano de sua morte, Evocações e, em 1890, Faróis. Estas duas obras constituem-se de poemas em prosa.
Seus poemas são verdadeiras profissões de fé simbolistas e encontram-se impregnados de símbolos ligados à brancura e a uma mística, que dão um colorido transcendental, o que confere à sua poesia o mistério, o sonho, a musicalidade.
Alguns poemas específicos serão analisados e discutidos em outra data.

IV - Meus poemas preferidos, de Manuel Bandeira, poeta nascido em Recife, mas que viveu no Rio de Janeiro. Os poemas listados pela PUCPR estão contidos em uma antologia, talvez o único defeito da lista apresentada. Por consistir em uma amostra da poesia que fez esse grande poeta lírico brasileiro, a apreciação não privilegia o todo de determinada obra, como seria de esperar. Por outro lado, há a possibilidade de se conhecer um pouco de cada obra. Foi uma escolha que fez a Instituição.
O próprio Manuel Bandeira se considerava “poeta menor”, porque há uma falsa idéia na crítica de se considerar “menor” a poesia lírica e “maior”, a épica. A sua poesia, porém, alcançou o mais alto na escala dos grandes poetas, principalmente daqueles do início do Modernismo. Ele, como muitos outros dessa fase, recebe forte influência do Simbolismo em suas primeiras obras.
Alguns de seus poemas serão enfocados numa próxima data, para se aprofundar um pouco o estudo da produção desse grande poeta.
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Para que não se prolongue o texto para a postagem, ficamos aqui pelo meio da lista, com o compromisso de voltarmos logo ao assunto.

V - São Bernardo, ao lado de Vidas Secas, são dois grandes romances no conjunto da obra do grande prosador alagoano, Graciliano Ramos. Os primeiros capítulos do livro foram escritos em Palmeira dos Índios, em 1934. Nessa cidade, no interior de Alagoas, Graciliano foi eleito prefeito em 1920, mas renunciou ao cargo em 1930. A sua carreira como romancista havia iniciado em 1925, quando publicou Caetés. Ele que tivera pequena experiência no jornalismo, em 1915, no Rio de Janeiro, como revisor do jornal Correio da Manhã, volta agora, em 1933, como redator do Jornal de Alagoas. É preso em 1936 e passa por várias cadeias, período em que escreve Angústia, publicado nesse mesmo ano de sua prisão. Em 1938, publica Vidas Secas, obra que assumiu a liderança em termos de leitura e de divulgação. São Bernardo, a história do ambicioso proprietário de terras, Paulo Honório, que por seu temperamento difícil afasta de si Madalena, a professora e a mulher que escolhera para sua companheira. Estrutural e literariamente é obra mais bem acabada que Vidas Secas. Esta, por outro lado, salienta-se pela originalidade de ser estruturada em partes, como verdadeiros quadros que pareciam independentes entre si, como se construídos para serem publicados separadamente, como realmente aconteceu com a publicação de alguns contos no jornal argentino La Prensa. Entre os textos publicados encontrava-se Baleia, que viria fazer parte de Vidas Secas, publicado em 1938. Graciliano foi autor que sempre esteve preocupado com o lado metapoético de suas obras. Retoricamente, procura mostrar como se faz um romance. Ele escreve um texto em que compara o fazer poético com o trabalho das lavadeiras que lavam a roupa: uma primeira lavada, molham a roupa, torcem o pano, molham novamente, voltam a torcer. “Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar”. E conclui: “Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."

VI - Felicidade Clandestina é um dos livros de contos de Clarice Lispector. Famosa desde seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem, de 1944, a autora tornou-se ao longo dos anos referência como escritora. Ao lado de Lygia Fagundes Telles são as duas escritoras mais conhecidas atualmente na literatura brasileira. Outro romance de bastante renome de Clarice Lispector é A Paixão segundo G. H., publicado em 1968. A autora com a técnica, a linguagem e a temática do Existencialismo constrói seus romances e seus contos com inigualável perfeição. Nos vinte e cinco contos de Felicidade Clandestina, e de modo geral em suas obras, no dizer do crítico: “a leitura abre as portas para uma vivência única, que retira da sua aura de clandestinidadeo encanto impossível de ser compartilhado com outras pessoas”. No conto que abre o livro e que é exatamente o que dá nome ao livro: Felicidade Clandestina, no final do texto, após narrar a alegra de conseguir emprestado um determinado livro, há uma explicação para o título: “Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, .adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim”. Para concluir, pode-se dizer que em seus contos, Clarice Lispector expõe o que há em volta das coisas, a natureza com sua força inexplicada, fantasias e sonhos, além de situações íntimas e de afeto, tudo como que transmudado em delicadeza e vai ao nosso encontro para nos extasiar com a beleza do texto.

VII - Auto do Frade é o texto que representa o gênero dramático na lista da PUCPR. Escrito em versos, é obra de grande importância no conjunto da poesia de João Cabral de Melo Neto, o grande poeta pernambucano, surgido com a Geração de 45, mas que seguiu caminho próprio na poesia. A peça é baseada em um fato histórico, a execução de Frei Caneca, que era como ficou conhecido o frade Joaquim do Amor Divino Rabelo. Ele havia chefiado a Revolução de 1817 e também fora chefe da Confederação do Equador. A execução deveria, conforme o juiz sentenciou, por enforcamento, mas como nenhum dos carrascos convocados aceitou a função, mesmo com promessas de serem liberados de todos os crimes e de outras vantagens jurídicas e de outra natureza. Como havia de ser executado, acabou-se por definir que seria a sentença cumprida de outro modo. Ele seria fuzilado, como realmente o foi em janeiro de 1825, na cidade do Recife. O texto é denso e também é um texto tenso, pela dramaticidade da situação poetizada por João Cabral. Mesmo tratando-se de um texto histórico, o poeta não vai para o meramente documental e dá-lhe força com a criação sobre o tema, que se poderia entender como a luta pela liberdade. Na peça, o autor dá grande ênfase para a voz do povo, aquele que no texto assistia às cenas da próxima execução. Aparece, portanto, como no antigo teatro grego, como um coro, que prenunciava e explicava ao longo da interpretação, aqui sob a forma de A GENTE NAS CALÇADAS, A GENTE NO ADRO, A GENTE NO LARGO, etc. O desfile de Frei Caneca pelas ruas do Recife, rumo à prisão onde seria executado constitui cena forte e que impressionava a gente do povo. O Frei seguia resoluto, confiante, com ar impoluto. Era exemplo de coragem e demonstrava no semblante a certeza de encontrar-se consciente de que praticara atos em nome da liberdade e dos ideais que acalentava. Para ilustrar a calma de Frei Caneca, uma fala de A GENTE NAS CALÇADAS, que é logo do início da peça: “- Ei-lo chega como se nada / como se não fosse o condenado. / - Ei-lo que vem lavado e leve / Como ia ao Convento do Carmo.” A peça termina quando o Frei já executado seu corpo é levado à Basílica do Carmo. Aqui se exemplifica coma frase inicial do texto final, que é em prosa: “Quatro calcetas com duas tábuas ao ombro, nas quais se pode distinguir o corpo de um homem deitado, dirigem-se à porta principal da Basílica do Carmo, e deixam cair no chão, grosseiramente, o corpo que traziam.”

VIII – Os poemas de Paulo Leminski, poeta curitibano, nascido em 1945, são obra de uma atualidade paranaense, que pouco tem produzido grandes poetas. Leminski apareceu na época do Concretismo, quando publicou, em 1964, na revista Invenção, dirigida por Décio Pignatari, em São Paulo, que então se tornara o porta-voz do movimento da Poesia Concreta de São Paulo. Nessa época Leminski era bastante jovem, com apenas 19 anos. Em 1976, publicou uma obra experimental em prosa: Catatau. Embora bastante inovadora e pretensiosa, a obra não recebeu acolhida por parte do público leitor, tendo ficado mais entre os intelectuais que cultuavam o experimentalismo nesses anos de 1970. Leminski participou de inúmeros momentos da poesia surgida nos anos 70 e 80, como, por exemplo, a Poesia Marginal, aquela que se fazia e se divulgava à margem das grandes editoras. Grande admirador e conhecedor da arte oriental, Paulo Leminski publicou, em 1983, obra de fundo pedagógico: Matsuó Bashô, sobre a poesia e a influência do grande poeta japonês, criador e divulgador na literatura do Haicai, que Leminski sempre fez questão de grafar como Haikai. Ainda como admirador da cultura oriental e japonesa em especial, Leminski foi praticante de artes marciais, faixa preta e professor de judô. Grande boêmio, transitou por vários ambientes de Curitiba, quer como professor, poeta, colaborador da Folha de S. Paulo, com resenhas sobre obras literárias, mas sempre sem apegar-se muito a nenhuma dessas atividades. Em 1980, publicou uma série de poemas que incluía a obra Não fosse isso e era menos, não fosse tanto e era quase nada, e outra com o título de Polonaises. Lembre-se que o poeta era mestiço de polaco com negro. Em 1983, saiu o livro de poemas Caprichos e relaxos. Viveu em companhia da poetisa Alice Ruiz, quem foi para ele uma grande colaboradora na organização de livros e de sua obra poética. Alice Ruiz narra essa sua colaboração para a organização da obra La vie en close, c’est une autre chose, quando diz: “Em setembro de 88, espalhamos a maior parte destes poemas no chão de um apartamento em São Paulo, e, pela última vez, selecionamos juntos os poemas de um livro.” Paulo Leminski, um trabalhador consciente do fazer poético, escreve uma espécie de profissão de fé e, falando da própria poesia, escreve: “um bom poema leva anos / cinco jogando bola, mais cinco estudando sânscrito, / seis carregando pedra ,/ nove namorando a vizinha , / sete levando porrada, / quatro andando sozinho, / três mudando de cidade, / dez trocando de assunto, / uma eternidade, eu e você, caminhando junto.” Para encerrar , apresenta-se um poema em que, ironicamente, o poeta se auto-define: “o pauloleminski é um cachorro louco/ que deve ser morto /a pau a pedra / a fogo a pique / senão é bem capaz / o filhodaputa / de fazer chover / em nosso piquenique.”


domingo, 21 de setembro de 2008

ANTÓNIO GEDEÃO - Poeta Português


ANTÓNIO GEDEÃO - UM POETA DA DÉCADA DE 50

1. APRESENTAÇÃO

António Gedeão é pseudônimo de Rómulo de Carvalho, nascido em Lisboa, em 1906. Surgiu na literatura portuguesa somente na década de 50 - mais precisamente em 1956, quando publicou o livro de poemas Movimento Perpétuo. Portanto, já aos 50 anos de idade e após as diversas tendências do Modernismo português, considerando-se o período literário que vai do aparecimento da revista Orpheu (1915) até as tentativas surrealistas, no final da década de 40.

Assim, são anteriores à publicação de seu primeiro livro os diferentes sensacionismos originários de Orpheu, a poesia metafísica e esteticista da Presença (1927-1940) e a poesia humanitarista e socializante de um primeiro Neo-Realismo, o da coleção Novo Cancioneiro (1941), como o são, também, a Novíssima Poesia 2, aquela surgida por volta de 1950 e que inclui em si o movimento surrealista e a poesia de Távola Redonda (1950­1954) e de Árvore (1951-1953). A poesia de Antón io Gedeão é contemporânea das tendên­cias experimentalistas e de vanguarda propugnadas por Poesia 61 (1961), por Poesia Experi­mental-1 (1964) e Poesia Experimental-2 (1965), dentre as mais importantes manifes­tações da atual poesia portuguesa.

É neste contexto de atualidade histórica, que a obra poética de António Ge­deão vem sendo publicada com uma regularidade e uma freqüência que não ultrapassa o limite de três anos entre uma e outra publicação. Em 1956 publicou Movimento Perpétuo, logo seguido de Teatro do Mundo (1958) e Máquina de Fogo (1961), livros que reunidos constituíram o volume Poesias Completas (1964). Ainda em 1964 publicou-se Poema para Galileo, que, em 1967, foi incluídono livro Linhas de Força. Este passou a integrar a segunda edição de Poesias Completas (1968).

António Gedeão é também autor de uma peça de teatro: R T X 78/24 (1963) e de um ensaio, O Sentimento Científico em Bocage (1965), de um livro de contos A Poltrona e Outras Novelas (1973) e ainda tem publicações esparsas de poemas e de traba­lhos sobre literatura em revistas portuguesas de cultura ou especificamente literárias.

A poesia de António Gedeão trouxe para a literatura portuguesa uma novidade, que foi o aproveitamento poético de termos específicos da linguagem científica. Os próprios títulos de sua obra demonstram essa tendência, que é explicável pela atuação de Rômulo de Carvalho como professor de Ciências Físicas e Naturais em Liceus de Portugal. Essa marca ele levou consigo em sua vida profissional e na sua trajetória como poeta.

O primeiro livro, Movimento Perpétuo, ou o moto-contínuo é o grande sonho irrealizável da Ciência; Teatro do Mundo, consagrado sob a forma latina theatrum mundi, prende-se à noção do mundo como um grande espetáculo e que mostra o homem frente ao seu destino; Máquina de Fogo, na obra metáfora do coração, interliga-se à idéia de teatro do mundo; Linhas de Força, expressão também de origem técnico-científica, que remete ao conceito de linhas de força introduzido pelo físico inglês Faraday, e, portanto prende-se à idéia da Física.

A maneira singular de António Gedeão atribuir títulos às suas obras é também inovadora. Como constam os títulos, além de serem compostos com vocábulos do domínio técnico-científico, são formados por um substantivo acompanhado de um adjetivo, como em Movimento Perpétuo e Poesias Completas, ou de uma expressão adjetiva, como em Teatro do Mundo, Máquina de Fogo e Linhas de Força.

Para exemplificar a poesia feita por António Gedeão, segue um poema de cada livro:

2. EXEMPLIFICAÇÃO

MOVIMENTO PERPÉTUO

VIDRO CÔNCAVO (MP, p. 29):

Tenho sofrido poesia

como quem anda no mar.

Um enjoa.

Uma agonia.

Sabor a sal.

Maresia.

Vidro côncavo a boiar.

TEATRO DO MUNDO

FALA DO HOMEM NASCIDO (T.M., p. 67)

(Chega à boca da cena, e diz:)

Venho da terra assombrada,

do ventre da minha mãe;

não pretendo roubar nada

nem fazer mal a ninguém.

Só quero o que me é devido

por me trazerem aqui,

que eu nem sequer fui ouvido

no acto de que nasci.

MÁQUINA DE FOGO

A UM TI QUE EU INVENTEI (M. F., p. 181)

Pensar em ti é coisa delicada.

É um diluir de tinta espessa e farta

e o passá-la em finíssima aguada

com um pincel de marta.

Um pesar grãos de nada em mínima balança,

um armar de arames cauteloso e atento,

um proteger a chama contra o vento,

pentear cabelinhos de criança.

Um desembaraçar de linhas de costura,

um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça,

um planar de gaivota como um lábio a sorrir.

Penso em ti com tamanha ternura

como se fosses vidro ou película de loiça

que apenas com o pensar te pudesses partir.

LINHAS DE FORÇA

ONDE? (L. F, p. 259-260)

Na cidade do corpo onde é que mora·

a fonte da Poesia?

Em que lugar, neste momento, agora

anónimo colóide se decora

todo de espinhos e grinaldas feito,

no despertar insone, morno e plácido,

de algum aminoácido

insuspeito?

Num lodo como prata, gelatina

Gomosa, brandamente

se aglutina.

Tanta gente num ponto, tanta gente!

Aí tudo se esconde,

a voz que busca e a voz que não responde,

a voz de fios de seda, o novelo de linhas

com que se cose o céu e a terra,

rampa de lançamento,

armamento

de guerra.

Mas ela,

a fonte da Poesia?

A que nunca adormece

nem fenece.

Socorro!

S. O. S.!

Sentinela

do morro.

Favela

de mendigos estirados ao sol sobre restolhos

catando as estrelas do corpo como se fossem piolhos.

Onde?

ONDE?

COMENTÁRIO FINAL

Embora não pertencendo a nenhum movimento literário de sua época, António Gedeão é marcado por influências da poesia realista, principalmente daquela que provinha dos Cadernos de Poesia.

A sua poesia é de um realismo denominado em Portugal Realismo Crítico e, portanto, difere de muitos outros poetas de sua época.

sábado, 20 de setembro de 2008

PRIMEIRA PÁGINA

Sejam bem-vindos a este recém-criado blog, que tratará fundamentalmente de Literatura, em especial a Portuguesa.

Espero contar com a colaboração e intensa participação daqueles que gostarem desta temática, que incluirá obras em prosa e poesia.

Para iniciar, coloco uma foto e um poema de David Mourão-Ferreira, poeta lírico dos anos 50, em Portugal e organizador, orientador e o primeiro co-diretor da revista Távola Redonda, publicada de 1950 a 1954, em Lisboa.


David Mourão-Ferreira

E POR VEZES AS NOITES DURAM MESES

(David Mourão-Ferreira)

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos
E por vezes

.

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos.