sábado, 19 de dezembro de 2009

CRISTOVÃO TEZZA - UMA CRÔNICA: ZELIG À BRASILEIRA

1. Cristovão Tezza

Cristovão Tezza, o professor, o intelectual.
Tezza, o preocupado torcedor do Clube Atlético Paranaense

O paranense nascido em Santa Catarina, é, hoje, um dos grandes escritores brasileiros e inclusive reconhecido no mundo, principalmente depois de ter suas obras traduzidas e publicadas em vários países da Europa. Personalidade versátil e bastante jovem, já foi um pouco de tudo na vida: ator de teatro; aluno da Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante; relojoeiro; viajante meio clandestino pela Europa depois de não poder seguir o curso de Letras em Coimbra pelo acontecimento histórico português, a Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974; Professor de Língua Portuguesa na Unaiversidade Federal de Santa Catarina; depois, professor na Universidade Federal do Paraná.
Desta última, recentemente solicitou demissão como nos conta na crônica Adeus às Aulas:
"Se é verdade que um bom texto é aquele capaz de transformar a vida, acabo de escrever uma obra-prima. Quem me conhece sabe que não sou de alardear minhas poucas e ralas qualidades, mas dessa vez não resisto ao impulso cabotino. Pois as cinco linhas que redigi, enxutas e precisas, atentas à força da tradição e com um toque tranquilo de modernidade, têm (modéstia à parte) essa perfeição transformadora. Em suma: pedi demissão da Universidade em que dou aulas há 24 anos. O requerimento ganhará alguns carimbos, duas ou três rubricas, rolará pelos escaninhos e em breve estarei livre co­­mo um pássaro".
Como escritor, é ensaísta, co-autor de livros didáticos, poeta, contista, romancista. Depois dos quatro livros iniciais, começou a ser conhecido nacionalmente com o romance Trapo, de 1988. Desde então destaca-se como grande romancista, principalmente com O Filho Eterno, de 2007. Foi com este livro que Tezza alcançou dimensão verdadeiramente internacional. A obra foi publicada em Portugal, na França, Itália, Holanda e na Espanha, em língua catalã. Em breve, o romance sairá na Austrália e na Nova Zelândia.
É um grande colecionador de Prêmios: Prêmio Petrobrás de Literatura, 1989, com Aventuras Provisórias; Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (melhor romance do ano), 1998, com Breve Espaço entre a Cor e a Sombra; Prêmio da Academia Brasileira de Letras de melhor romance do ano e o Prêmio Bravo! de melhor obra, 2004, com O Fotógrafo. Com o último romance O Filho Eterno, recebeu: Prêmio da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de melhor obra de ficção do ano; em 2008, recebeu os prêmios Jabuti de melhor romance e o Prêmio Bravo! de melhor obra; Prêmio Portugal-Telecom de Literatura em Língua Portuguesa (1.º lugar) e Prêmio São Paulo de Literatura, melhor livro do ano; em 2009,recebeu o prêmio Zaffari & Bourbon, da Jornada Literária de Passo Fundo, como o melhor livro dos últimos dois anos.
É autor de textos, principalmente crônicas, para vários periódicos: revista Veja; jornal Folha de S.Paulo; Caderno Ilustrado, da mesma Folha de S. Paulo; e O Estado de São Paulo. Como um dos cronistas do jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, tem publicado semanalmente crônicas fundamentais para o jornalismo e para a literatura.
Concluindo esta breve notícia sobre o homem, o escritor e o ex - mas eterno professor - Cristovão Tezza, reproduzo o comentário da blogueira Camila Batista, também atleticana, como se confessa: "Io sono atleticana, insegnante d'inglese, correttore di bozze e persona normale nel mio tempo libero": "Quem foi aluno do Tezza, foi; quem não foi não será mais: - 15th Dec, 2009", o que será uma grande pena! Mas, com certeza, perde-se, formalmente, um professor do ensino superior, mas, com certeza, ganha-se um escritor ainda maior e, assim, eterno professor de literatura e de vida.

2. Uma crônica: Zelig à Brasileira
Lula me lembra Zelig, o hilariante personagem do filme homônimo de Woody Allen, que vai se transformando fisicamente diante dos outros, para ficar parecido com eles. Como no “documentário” sobre Zelig, o tempo todo vemos nosso herói sorrindo com Obama na Casa Branca, falando sério em Copenhague, altissonante no Mercosul, companheiro na Bolívia, nobre em Buckingham, comunista em Cuba, católico no Vaticano e por aí vai. Segundo a tradição miscigenante da cultura brasileira, Lula, como Zelig, transforma-se camaleônico no que for preciso de modo a ficar sempre no mesmo lugar – é uma “metamorfose ambulante”, como ele mesmo se definiu. Na lógica astuta do país, tudo se rege por um senso perpétuo de amortecimento de conflitos e adequação biológica ao meio ambiente.
Seu governo é a expressão de nada; o herói carismático vê-se carregado nos ombros da mais azeitada e obediente máquina partidária do Brasil moderno, que funde um projeto messiânico-revolucionário com a burocracia democrática colocada a seu serviço, a cada dia mais esvaziada politicamente. A única ideologia que resta é uma política externa esfarrapada que dá tapinhas nas costas de Ahmadinejad e ruge furioso contra a eleição de Honduras, que poderia, pela simples força do bom-senso, recolocá-la nos trilhos; que devolve em poucas horas à ditadura cubana dois atletas fugitivos e resiste tenazmente a extraditar para a Itália alguém condenado por crimes comuns num Estado de Direito. Fala em “pragmatismo” e perde todas as eleições em que se mete nos fóruns internacionais, enquanto ri na fotografia.
O imenso Brasil popular que veio à tona por força do Plano Real e do otimismo econômico dos anos 90 parece ter encontrado em Zelig o seu mantra político-religioso. O que fazer com o povo brasileiro que, súbito, está nas ruas, de celular na mão direita e tacape na esquerda? Nada a estranhar nos maços de dinheiro enfiados em cuecas e bolsos do DEM e do PT, abençoados por rezas compungidas de ladrões sinceros – como Lula se apressou a dizer, são cenas “que não falam por si”. Afinal, o país de maior mobilidade social do mundo é também o único em que um deputado fraudando um painel de um Congresso Nacional vai se tornar em pouco tempo, inocente, governador do Distrito Federal.
Nada melhorou em nenhuma área. A educação básica patina nos seus piores índices de sempre – enquanto abrem-se dezenas de universidades federais prontas a ocupar o rabagésimo lugar de relevância sob qualquer critério. A lógica que nos arrasta é a da mendicância e a do pátio dos milagres – empresários mendigos, políticos mendigos e povo mendigo, esperando de boca aberta e mão espalmada o sorriso de Silvio Santos a jogar dinheiro na plateia. Faltava um bom ator para o papel – o próprio Silvio Santos até que tentou, mas levou uma rasteira jurídica mais esperta ainda na alvorada de Collor. Agora, Lula é o cara.
(Gazeta do Povo, 15/12/09, p. 3 - contato@cristovaotezza.com.br)

3. Comentário
Comentar é totalmente desnecessário. Aí está um retrato vivo do que vivemos. Temos um líder mundial, "o cara"!... mas quem ganha o Prêmio Nobel da Paz é outro, "the man"!... temos um defensor do meio ambiente... que exige sejam as despesas pagas pelos outros países, como se mandasse no mundo! (chega a lembrar Carlitos, em O Grande Ditador, a dar piparotes em um grande balão com o mapa-mundi); antes, tínhamos exames - ENC, ENEM - exemplos para o mundo em termos de avaliação educacional, hoje esses exames são fraudados, anulados, desprezados por alunos e universidades, tudo por incompetência de técnicos elevados a altos cargos por força da Carteirinha do PT.
Diz-se popularmente que "não se deve dar o peixe, mas ensinar a pescar". O povo brasileiro jamais será pescador! Para quê? Recebe as mais estranhas bolsas para não ter que trabalhar, nem mandar seus filhos à escola. Estudar? Com que finalidade, se há outros critérios para ingressar em uma Universidade, que não é o da competência? E para vencer na vida?
O Silvio Santos com suas histrionices - histrionice, no sentido original do termo - é mais correto no proceder. Distribui dinheiro claramente à frente das câmeras da sua rede de TV criada e mantida pelo tino comercial do eterno camelô que foi e que deseja continuar a ser. Sorri satisfeito pela migalha que distribui a quem vai até a um auditório em procura do pequeno óbulo. E o que dizer do governante que só repete que "não sabe de nada"?
Parabéns, Tezza, por cumprir com sua arte a função social de formador de opinião! Abrir os olhos do povo é preciso! Viver nas trevas da ignorância não é preciso! (Homenagem a navegadores antigos e a Fernando Pessoa).

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

NEUZA APARECIDA RAMOS – Uma Enfermeira a Serviço da Educação


1. Neuza Aparecida Ramos: a trajetória de uma enfermeira

O convívio na Universidade Católica do Paraná, mais tarde Pontifícia Universidade
Ao longo do exercício do magistério superior, tive a oportunidade de conviver com educadores das mais diversas áreas do conhecimento. Uma educadora que sempre esteve presente na luta pelo ensino e pela formação de profissionais competentes e com consciência social foi a Enfermeira Neuza Aparecida Ramos.
Participamos juntos ou em paralelo de diversos projetos da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR por mais de três décadas. Trabalhamos na criação de cursos; em comissões da carreira docente; em bancas examinadoras de concursos de professores; em exames seletivos de estudantes; em análises de documentos dos Conselhos Superiores da Instituição; na Pró-Reitoria de Graduação, quando ela exerceu o cargo de Pró-Reitora; enfim em atividades acadêmicas e de assessoria à Reitoria da PUCPR.
Na Universidade Católica, ela exerceu a direção do curso de Enfermagem; a vice-direção do CCBS - Centro de Ciências Biológicas e da Saúde; Pró-Reitora; Diretora da Biblioteca, dentre outros elevados cargos universitários. Cursou o Mestrado em Educação, no qual a conheci como aluna dedicada e consciente daquela forma de aperfeiçoamento universitário e profissional. A professora Neuza sempre foi referência como pessoa, docente, profissional e gestora da Educação.
Por essas e outras qualidades, recentemente Neuza Aparecida Ramos recebeu honroso convite de uma sua ex-aluna, Juliana Rodrigues, doutoranda em Enfermagem pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo – USP, para depoimento sobre a trajetória como Enfermeira. Suas declarações passaram a fazer parte de um trabalho acadêmico para o curso de doutorado em Enfermagem, na Universidade de São Paulo. O texto foi publicado com o título A trajetória de uma enfermeira: Neuza Aparecida Ramos na Revista Brasileira de Enfermagem. Brasília: maio/jun. 2009, v. 62, p. 400-6.
2. A formação e o exercício da profissão
Após a parte introdutória que normalmente aparece nas dissertações e teses e na qual se colocam tema, objetivos, metodologia e outros dados relativos a o estudo, chega-se ao depoimento. Inicialmente, faz-se um relato sobre a formação e o início da carreira como Enfermeira, cursos de aperfeiçoamento e de pós-graduação, atividades em hospitais, dentre os quais o recém-inaugurado Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná. Segue-se uma vasta lista de trabalhos desenvolvidos e o seu ingresso no magistério, primeiramente na Escola de Enfermagem Madre Leonie, estabelecimento pioneiro da Enfermagem em Curitiba e que mais tarde passou a fazer parte da PUCPR. Com a incorporação do Hospital Cajuru pela Universidade Católica, Neuza assumiu o cargo de diretora do Serviço de Enfermagem. Com bolsa do Ministério de Educação, fez curso de Administração Hospitalar na França, na École Nationale de la Santé Publique, na cidade de Rennes, região da Bretanha.
No magistério superior na PUCPR, Neuza Aparecida Ramos trilhou toda uma trajetória de atividades e cargos, como já se expôs neste texto, sempre enfrentando e superando desafios próprios de uma carreira de sucesso.
3. O futuro da profissão
Falando sobre o futuro da profissão, Neuza Aparecida Ramos declara:
“Vejo um futuro promissor para a profissão. A demanda pelo curso vem aumentando, o que possibilita melhor seleção dos candidatos. E como toda profissão que cresce precisa se preocupar com a formação de seus profissionais. As escolas terão que preparar os jovens para viverem novas concepções de mundo, de sociedade, de ser humano e de humanidade. Seus currículos deverão contemplar não apenas o ensino dos fenômenos físicos, biológicos, químicos ou sociais, mas também, os políticos, filosóficos e os religiosos”.
O amor à profissão fica claro ao longo de todo o depoimento. Afirma: “Se eu tivesse que escolher hoje uma profissão, começaria com a Enfermagem de novo”.
Nas Considerações Finais do trabalho, a autora, Juliana Rodrigues, destaca a importância da publicação: “possibilitou-nos resgatar a história de vida de uma testemunha ocular de fatos importantes da História da Enfermagem Brasileira e do Paraná, assim como verificar a participação efetiva desta enfermeira na construção e desenvolvimento da enfermagem”.
4.
Para mim, que convivi e participei de muitas das atividades na PUCPR ao lado da Enfermeira Neuza Aparecida Ramos é uma satisfação este reencontro motivado por um trabalho acadêmico de uma sua ex-aluna, doutoranda na USP. Tenho a certeza que Juliana Rodrigues seguirá os passos de sucesso de sua mestra. A Enfermagem irá ganhar muito com a atuação da futura doutora em Enfermagem.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

OS CEM LIVROS ESSENCIAIS DA LITERATURA BRASILEIRA

1. Uma outra lista
Retornamos a uma outra lista. Antes, foi sobre os 100 gênios da literatura universal. Esta se refere aos cem livros da literatura brasileira considerados essenciais pela revista Bravo!, edição especial de 2009. Como os próprios organizadores comentam na Carta do Editor: “É evidente que este ranking das 100 obras obrigatórias da literatura não encontrará unanimidade entre os leitores. Alguns discordarão da ordem, outros eliminariam títulos ou acrescentariam outros”. Eu não farei nenhuma dessas alterações, inclusive por considerá-la uma boa lista.
2. Eis a lista
1. 200 Crônicas Escolhidas, Rubem Braga; 2. A Alma Encantada das Ruas, João do Rio; 3. A Coleira do Cão, Rubem Fonseca; 4. A Escrava Isaura, Bernardo Guimarães; 5. A Estrela Sobe, Marques Rebelo; 6. A Moreninha, Joaquim Manuel de Macedo; 7. A Obscena Senhora D, Hilda Hilst; 8. A Paixão Segundo G. H., Clarice Lispector; 9. A Rosa do Povo, Carlos Drummond de Andrade; 10. A Senhorita Simpson, Sérgio Sant'Anna; 11. A Vida como Ela É, Nelson Rodrigues; 12. As Meninas, Lygia Fagundes Telles; 13. As Metamorfoses, Murilo Mendes, Avalovara, Osman Lins; Bagagem, Adélia Prado; Baú de Ossos, Pedro Nava; Brás, Bexiga e Barra Funda, Antônio de Alcântara Machado; Broquéis, Cruz e Sousa; Canaã, Graça Aranha; Cartas Chilenas, Tomás Antônio Gonzaga; O Cortiço, Aluísio Azevedo; Catatau, Paulo Leminski; Claro Enigma, Carlos Drummond de Andrade; Contos Gauchescos, João Simões Lopes Neto; Crônica da Casa Assassinada, Lúcio Cardoso; Dom Casmurro, Machado de Assis; Espumas Flutuantes, Castro Alves; Estrela da Manhã, Manuel Bandeira; Eu, Augusto dos Anjos; Febeapá, Stanislaw Ponte Preta; Fogo Morto, José Lins do Rego; Gabriela, Cravo e Canela, Jorge Amado; Galáxias, Haroldo de Campos; Galvez, Imperador do Acre, Márcio Souza; Grande Serão: Veredas, Guimarães Rosa; Harmada, João Gilberto Noll; O Homem e sua Hora, Mário Faustino; I-Juca Pirama, Gonçalves Dias; Inocência, Visconde de Taunay; Invenção de Orfeu, Jorge de Lima; Juca Mulato, Menotti del Picchia; Laços de Família, Clarice Lispector; Lavoura Arcaica, Raduan Nassar; Libertinagem, Manuel Bandeira; Lira dos Vinte Anos, Álvares de Azevedo; Lucíola, José de Alencar; Macunaíma, Mário de Andrade; Malagueta, Perus e Bacanaço, João Antônio; Mar Absoluto, Cecília Meireles; Marília de Dirceu, Tomás Antônio Gonzaga; Memórias de um Sargento de Milícias, Manuel Antônio de Almeida; Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis; Memórias Sentimentais de João Miramar, Oswald de Andrade; Morangos Mofados, Caio Fernando Abreu; Morte e Vida Severina, João Cabral de Meio Neto; Navalha na Carne, Plínio Marcos; Noite na Taverna, Álvares de Azevedo; Nova Antologia Poética, Mário Quintana; Nova Antologia Poética, Vinicius de Moraes; O Analista de Bagé, Luis Fernando Veríssimo; O Ateneu, Raul Pompéia; O Braço Direito, Otto Lara Resende; O Coronel e o Lobisomem, José Cândido de Carvalho; O Encontro Marcado, Fernando Sabino; O Ex-Mágico, Murilo Rubião; O Guarani, José de Alencar; O Pagador de Promessas, Dias Gomes; O Que é Isso, Companheiro, Fernando Gabeira; O Quinze, Rachel de Queiroz; O Tempo e o Vento, Érico Veríssimo; O Tronco, Bernardo Elis: O Uraguai, Basílio da Gama; O Vampiro de Curitiba, Dalton Trevisan; Obra Poética, Gregório de Matos; Ópera dos Mortos, Autran Dourado; Os Cavalinhos de Platiplanto, José J. Veiga; Os Escravos, Castro Alves; Os Ratos, Dyonélio Machado; Os Sertões, Euclides da Cunha; Paulicéia Desvairada, Mário de Andrade; Poema Sujo, Ferreira Gullar; Poesias, Olavo Bilac; Quarup, Antonio Callado; Romance da Pedra do Reino, Ariano Suassuna; Romanceiro da Inconfidência, Cecília Meireles, Sagarana, Guimarães Rosa; São Bernardo, Graciliano Ramos; Seminário dos Ratos, Lygia Fagundes Telles; Serafim Ponte Grande, Oswald de Andrade; Sermões, Padre Vieira; Terras do Sem Fim, Jorge Amado; Tremor de Terra, Luiz Vilela; Triste Fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto; Um Copo de Cólera, Raduan Nassar; O Picapau Amarelo, Monteiro Lobato; Vestido de Noiva, Nelson Rodrigues; Vidas Secas, Graciliano Ramos; Viva o Povo Brasileiro, João Ubaldo Ribeiro; Viva Vaia, Augusto de Campos; Zero, Ignácio de Loyola Brandão.
3. Comentário
Como se pode observar, trata-se de uma lista bastante criteriosa. Percorre a literatura brasileira, desde o seu início, lá no Barroco, com Gregório de Matos; passa pelo Arcadismo com Tomás Antônio Gonzaga e Basílio da Gama; chega ao Romantismo, inclusive com o romance que inaugura esse estilo no Brasil, A Moreninha; segue pelo Realismo/Parnasianismo com Aluísio Azevedo e Olavo Bilac, além de outros; continua pelo Simbolismo com Cruz e Sousa; pela porta do Pré-Modernismo, com Canaã, Os Sertões, Juca Mulato, ingressa no Modernismo, inicialmente com as obras famosas da Semana de Arte Moderna e continua com inúmeros outros; finalmente, chega à atualidade, e aqui são inúmeros os poetas e escritores. Há autores de diferentes tendências e gêneros, inclusive humoristas, como Veríssimo, e de literatura infanto-juvenil, como Monteiro Lobato.
Assim, torna-se difícil não aceitar a lista como ela é. O que se pode fazer, e é isso que apresentarei a seguir, é um extrato dessa lista com aqueles autores de nossa preferência. Desse modo, aventuro-me a apresentar uma seleção segundo o meu gosto e com algum critério muito pessoal, como, por exemplo, o momento da leitura de determinada obra.
4. Um extrato da lista com as obras de minha preferência
Apenas, irei destacar 20 obras de que gosto. Não digo que goste mais das que selecionei, porque inclusive gosto de todas as que eu li. Inicialmente, pensei ressaltar somente 10 delas, mas não resisti a omitir tantas obras em lista tão restrita. Ficariam obras que me tocaram muito quando as li. Não quero com isso dizer que essas sejam melhores que outras, mas apenas que me vêem à lembrança sempre que penso em literatura brasileira. É lógico que muitas outras também me tocam a sensibilidade, mas, ou por não constarem da lista, ou por falta de espaço, fico com estas vinte.
4. Segue a minha lista com 20 obras
1. Bagagem, Adélia Prado; 2. Claro Enigma, Drummond; 3. Dom Casmurro, Machado de Assis; 4. Espumas Flutuantes, Castro Alves; 5. Estrela da Manhã, Manuel Bandeira; 6. I-Juca Pirama, Gonçalves Dias; 7. Juca Mulato, Menotti Del Picchia; 8. Lira dos Vinte Anos, Álvares de Azevedo; 9. Mar Absoluto, Cecília Meireles; 10. O Coronel e o Lobisomem, José Cândido de Carvalho; 11. O Quinze, Rachel de Queiroz; 12. O Uraguai, Basílio da Gama; 13. O Vampiro de Curitiba, Dalton Trevisan; 14. Obra Poética, Gregório de Matos; 15. Ópera dos Mortos, Autran Dourado; 16. Os Sertões, Euclides da Cunha; 17. Poesias, Olavo Bilac; 18. Sagarana, Guimarães Rosa; 19. São Bernardo, Graciliano Ramos; 20. Sermões, Padre Vieira.
5. Comentário à minha lista
Como disse, essa lista foi ditada pelo critério do meu próprio gosto e, portanto, trata-se de algo bastante subjetivo. É bom, porém, frisar que há uma “estética ou padrão do gosto”. O problema é que para isso se exige o denominado “bom gosto”, que nenhum teórico, até agora, foi capaz de definir ou estabelecer qual seja. Há, portanto, que confiar no nosso quantum de bom gosto. Para a estética medieval, era belo: “aquilo cuja apreensão agrada” (id cujus ipsa apprehensio placet). Harold Osborne, em Estética e Teoria da Arte, no capítulo Estética Inglesa do Século XVIII, ao tratar de O Padrão do Gosto, afirma: “Foi o conflito entre a crença num padrão universal de gosto e o reconhecimento de que o sentimento e a emoção são essenciais à apreciação estética que preparou o palco para o sistema lógico de Kant, a primeira filosofia sistemática dos problemas lógicos nela envolvidos” (p. 154).
Algumas observações sobre o motivo da escolha são necessárias:
1ª – Bagagem, uma obra poética que surpreendeu a nova literatura, ela e a sua autora, pela forma que retoma e reescreve determinados temas de poetas consagrados, como o próprio poema que dá título à obra;
2ª – Claro Enigma e seu autor se explicam por si sós, ambos consagrados pela crítica nacional e internacional;
3ª – De Machado poderia ser qualquer das duas, preferi, porém, Dom Casmurro pela criação do perfil de Capitu e pela eterna ambiguidade da obra;
4ª – O mesmo poderia se dizer de Castro Alves, tanto poderia constar com uma ou outra das obras listadas, mas Espumas Flutuantes se justifica pelo seu lirismo-amoroso e por ser menos discursiva de que Os Escravos;
5ª – Assim, pelo mesmo critério do puro lirismo, seguiria com Estrela da Manhã, de Bandeira;
6ª – I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, pelo que representa de um legítimo indianismo na literatura brasileira;
7ª – Juca Mulato, de Del Picchia, pela consagração do amor impossível de um simples subalterno por alguém de uma outra classe social e, inclusive, de outra raça;
8ª – Lira dos Vinte Anos é a representante legítima do byronismo no Romantismo brasileiro;
9ª – Mar Absoluto e Cecília não poderiam estar ausentes. É o nosso lirismo ao estilo de Portugal;
10ª – O Coronel e o Lobisomem, um livro hoje esquecido, espécie de romance picaresco, é marco de um tipo de estilo, jocoso e irônico na nova narrativa brasileira;
11ª – O Quinze, obra de estréia da grande Rachel de Queiroz, um dos romances inaugurados e talvez o melhor Regionalismo do Nordeste dos anos 30;
12ª – O Uraguai representa o espírito árcade nesta lista. Poderia ser também Marília de Dirceu, mas ficaria faltando um representante do épico;
13ª – Dalton, com O Vampiro de Curitiba ou com outra obra, não pode ficar fora de qualquer lista da literatura brasileira;
14ª – Gregório de Matos e sua Obra Poética também não podem ficar fora, pelo lirismo barroco do poeta baiano;
15ª – Ópera dos Mortos, como O coronel e o Lobisomem, é obra renovadora da narrativa brasileira;
16ª – Os Sertões representa aqui o Pré-Modernismo, um painel grandioso de uma terra inóspita e guerreira;
17ª – A poesia parnasiana não poderia ficar de fora e assim comparece com a Obra Poética, do visionário, mas engajado Bilac;
18ª – Por que Sagarana e não Grande Sertão: Veredas? Talvez por ser um grande livro mesmo com histórias curtas;
19ª – São Bernardo, para mim, é superior ao elogiadíssimo Vidas Secas, duas grandes obras de um grande prosador;
20ª – Os Sermões e o Padre Vieira serão eternos tanto na literatura brasileira como na portuguesa.
Dez ausências notáveis de autores também notáveis:
a) Andrade, Mario e Oswald, dois vultos da Semana de Arte, lídimos representantes do início do Modernismo brasileiro, acabaram cedendo espaço a outros autores dessa época, como Bandeira e Del Picchia;
b) Clarice Lispector: a obra de minha preferência é outra, Perto do Coração Selvagem, e não a listada;
c) Cruz e Sousa: preferir Os Últimos Sonetos não justifica a ausência do grande simbolista. Faltou espaço;
d) João Cabral de Melo Neto: prefiro a obra poética propriamente dita e não a mista poesia/teatro;
e) João Ubaldo Ribeiro: com certeza foi a ausência na lista principal do picaresco Sargento Getúlio, muito próxima de O Coronel e o Lobisomem;
f) Jorge Amado: grande contador de histórias, idolatrado em Portugal, ficou sem o seulugar nesta lista;

g) José de Alencar: no indianismo prefiro Iracema a O Guarani; e no romance social, Senhora a Lucíola;
h) Luiz Vilela: de longe que No Bar é superior a Tremor de Terra, a obra listada;
i) Lima Barreto: grande escritor, famoso por grandes obras, como Triste Fim de Policarpo Quaresma, O Homem que Sabia Javanês, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, e outros. Faltou espaço;
j) Veríssimo, pai e filho: é pena que nenhum participe da minha lista, nem o grande romancista regionalista do Sul, nem o filho, criador de um tipo de humor inteligente, sutil.
Para concluir, sei da limitação de qualquer lista, como já afirmei e reafirmei, mas sei que fiquei devendo. E muito!

Para reparar tanta injustiça, deixo aqui a simples transcrição de um texto de Veríssimo, e que o dedico aos leitores, em especial às leitoras:
MULHERES
Certo dia parei para observar as mulheres e só pude concluir uma coisa: elas não são humanas. São espiãs. Espiãs de Deus, disfarçadas entre nós. Pare para refletir sobre o sexto-sentido.

Alguém duvida de que ele exista?
E como explicar que ela saiba exatamente qual mulher, entre as presentes, em uma reunião, seja aquela que dá em cima de você?
E quando ela antecipa que alguém tem algo contra você, que alguém está ficando doente ou que você quer terminar o relacionamento?
E quando ela diz que vai fazer frio e manda você levar um casaco? Rio de Janeiro, 40 graus, você vai pegar um avião pra São Paulo. Só meia-hora de vôo. Ela fala pra você levar um casaco, porque "vai fazer frio". Você não leva. O que acontece?
O avião fica preso no tráfego, em terra, por quase duas horas, depois que você já entrou, antes de decolar. O ar condicionado chega a pingar gelo de tanto frio que faz lá dentro!
"Leve um sapato extra na mala, querido. Vai que você pisa numa poça...
"Se você não levar o "sapato extra", meu amigo, leve dinheiro extra para comprar outro. Pois o seu estará, sem dúvida, molhado... O sexto-sentido não faz sentido!
É a comunicação direta com Deus!
Assim é muito fácil... As mulheres são mães!
E preparam, literalmente, gente dentro de si. Será que Deus confiaria tamanha responsabilidade a um reles mortal?
E não satisfeitas em ensinar a vida elas insistem em ensinar a vivê-la, de forma íntegra, oferecendo amor incondicional e disponibilidade integral. Fala-se em "praga de mãe", "amor de mãe", "coração de mãe"...
Tudo isso é meio mágico...
Talvez Ele tenha instalado o dispositivo ‘coração de mãe’ nos "anjos da guarda" de Seus filhos (que, aliás, foram criados à Sua imagem e semelhança).
As mulheres choram. Ou vazam? Ou extravazam?
Homens também choram, mas é um choro diferente. As lágrimas das mulheres têm um não sei quê que não quer chorar, um não sei quê de fragilidade, um não sei quê de amor, um não sei quê de tempero divino, que tem um efeito devastador sobre os homens... É choro feminino. É choro de mulher... Já viram como as mulheres conversam com os olhos?
Elas conseguem pedir uma à outra para mudar de assunto com apenas um olhar.
Elas fazem um comentário sarcástico com outro olhar.
E apontam uma terceira pessoa com outro olhar.
Quantos tipos de olhar existem?
Elas conhecem todos... Parece que freqüentam escolas diferentes das que freqüentam os homens! E é com um desses milhões de olhares que elas enfeitiçam os homens.
EN-FEI-TI-ÇAM!
E tem mais! No tocante às profissões, por que se concentram nas áreas de Humanas?
Para estudar os homens, é claro!
Embora algumas disfarcem e estudem Exatas... Nem mesmo Freud se arriscou a adentrar nessa seara. Ele, que estudou, como poucos, o comportamento humano, disse que a mulher era "um continente obscuro".
Quer evidência maior do que essa?
Qualquer um que ama se aproxima de Deus. E com as mulheres também é assim. O amor as leva para perto dEle, já que Ele é o próprio amor. Por isso dizem “estar nas nuvens”, quando apaixonadas. É sabido que as mulheres confundem sexo e amor. E isso seria uma falha, se não obrigasse os homens a uma atitude mais sensível e respeitosa com a própria vida.
Pena que eles nunca verão as mulheres-anjos que têm ao lado.
Com todo esse amor de mãe, esposa e amiga, elas ainda são mulheres a maior parte do tempo.
Mas elas são anjos depois do sexo-amor.
É nessa hora que elas se sentem o próprio amor encarnado e voltam a ser anjos.
E levitam.
Algumas até voam.
Mas os homens não sabem disso.
E nem poderiam.
Porque são tomados por um encantamento que os faz dormir nessa hora.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

GÊNIO E GÊNIOS – UM ESTUDO MAGISTRAL DE HAROLD BLOOM

O gênio Harold Bloom, professor universitário, teórico e crítico literário (New York, 1930.)
I - A OBRA
Um livro decididamente de peso nos dois sentidos é Gênio: os 100 autores mais criativos da História da Literatura, de Harold Bloom, publicado em 2002, pela Objetiva. Em mais de 800 páginas o autor enumera, segundo ele, os mais importantes escritores e poetas da Literatura Universal. Seria difícil tentar transcrever apenas alguns nomes, porque realmente todos são bem conhecidos e merecidamente famosos. A única solução é listá-los todos por blocos de Lustros, como fez o autor.
(Observação, aqui, como explica Bloom, Lustro, não significa apenas espaço de cinco anos. Como na obra cada conjunto de dez se encontra regido por um sefirah, o Lustro, ou seja a metade desse espaço, também está regido por esse mesmo safirah). Portanto, são dez os safirat, mas vinte os Lustros. Para cada dois Lustros de um mesmo conjunto de dez há um mesmo safirah.
Um sefirah faz parte do conjunto dos sefirot. Estes, por sua vez, segundo Bloom “constituem o centro da Cabala, pois pretendem representar a interioridade de Deus, os segredos do caráter e da personalidade divina. São atributos do gênio de Deus, em todos os sentidos em que o termo “gênio” é empregado neste livro”.
O livro é todo ele cabalístico. Assim, o próprio autor define Lustro, que na Cabala possui um sentido especial: “Lustros, nesse sentido, refere-se ao brilho decorrente da luz refletida, o lustre, o esplendor de um gênio refletido em outro...
(p. 19).
Aqui seguem os 20 Lustros com seus correspondentes sefirah e os literatos neles incluídos (cinco por Lustro):
Lustro I: Keter - Shakespeare, Cervantes, Montaigne, Milton, Tolstói.
Lustro II: idem - Lucrécio, Virgílio, Santo Agostinho, Dante, Chaucer.
Lustro III: Hokmah - O Javista, Sócrates, Platão, São Paulo, Maomé.
Lustro IV: idem - Samuel Johnson, James Boswell, Goethe, Freud, Thomas Mann.
Lustro V: Binah -Nierzsche, Kierkegaard, Kafka, Proust, Samuel Beckett.
Lustro VI: idem - Molière, Ibsen, Tchekhov, Oscar Wilde, Pirandello.
Lustro VII: Hesed - John Donne, Pope, Jonathan Swift, Jane Austen, Lady Murasaki.
Lustro VIII: idem - Nathaniel Hawthorne, Melville, Charlotte Brame, Emily Jane Brame, Virginia Wolf.
Lustro IX: Din - Emerson, Emily Dickinson, Robert Frast, Wallace Stevens, T. S. Eliot.
Lustro X: idem - Wordsworth, Shelley, Keats, Leopardi, Tennyson.
Lustro XI: Tiferet - Swinburne, Gabriel Rossetti, Christina Rossetti, Walter Pater, Hofmannsthal.
Lustro XII: idem - Victor Hugo, Gérard de Nerval, Baudelaire, Rimbaud, Paul Valéry.
Lustro XIII: Nezat - Homero, Camões, James Joyce, Carpentier, Octavio Paz.
Lustro XIV: idem - Stendhal, Mark Twain, Faulkner, Hemingway, Flannery O'Connor.
Lustro XV: Hod - Walt Whitman, Fernando Pessoa, Hart Crane, García Lorca, Luis Cernuda.
Lustro XVI: idem - Eliot, Willa Cather, Edith Wharton, F. Scott Fitzgerald, Iris Murdoch.
Lustro XVII: Yesod - Flaubert, Eça de Queirós, Machado de Assis, Borges, Italo Calvino.
Lustro XVIII: idem - William Blake, D. H. Lawrence, Tennessee Williams, Rilke, Eugenio Montale.
Lustro XIX: Malkhut - Balzac, Lewis Carroll, Henry James, Robert Browl, Yeats.
Lustro XX: idem - Dickens, Dostoievski, Isaac Babei, Paul Celan; Ellison.
II - COMENTÁRIOS:
1. A listas e listas
Poder-se-ia perguntar por que esses e não outros os literatos listados? Porém, temos de reconhecer que nenhuma lista com o número que fosse de autores iria contentar a todos. Esta parece incluir uma boa e criteriosa seleção, própria do nome do livro e do próprio autor, que é também um gênio. Saudado pelos grandes periódicos, Harold Bloom é: “Um gigante entre os críticos... Seu entusiasmo pela literatura é contagiante” (New York Times Sunday Magazine); “Um mestre do entretenimento” (Newsweek); “Bloom é simplesmente um sacerdote da grandeza humana” (The Iris Time).
Felizmente, nesta seleção de autores, a Literatura Brasileira conta com um representante, e, merecidamente, ele é Machado de Assis. Não poderia aí estar também um poeta, como, por exemplo, Carlos Drummond de Andrade? A nossa coirmã Literatura Portuguesa foi um pouco mais bem aquinhoada (3 nomes): Camões, Fernando Pessoa, Eça de Queirós. E por onde andará Padre Vieira, que não aparece nem na Portuguesa, nem na Brasileira?
2. O grupo do nosso representante
Já que contamos com Machado de Assis incluído no Lustro XVII, regido pelo sefirah Yesod, vamos nos fixar neste grupo e especialmente no autor brasileiro. O nosso representante está ao lado do francês Flaubert, do português Eça de Queirós, do argentino descendente de portugueses e ingleses Borges, e do cubano-italiano Italo Calvino.
Os três primeiros são fundamentalmente romancistas e contistas; o quarto, é mais especificamente contista e filósofo; e o último, além de ficcionista, também é filósofo e crítico literário.
Por estilo de época, Flaubert foi o único verdadeiramente representante do Realismo. Eça de Queiros, embora também realista, é bastante influenciado inicialmente pelo Romantismo e depois pelo Impressionismo. Machado de Assis é um escritor que, embora classificado de realista, pouco tem desse movimento e está acima de qualquer classificação literária. Por isso, tem sido considerado um verdadeiro precursor de determinado tipo de Modernismo e mesmo de Pós-Modernismo, aqueles da introspecção, do psicologismo, do Existencialismo e, portanto, anunciador e muito próximo de autores muito recentes, como o português Virgílio Ferreira e a brasileira Clarice Lispector. Borges, por outro lado, pertence ao que se convencionou chamar de Realismo Mágico, Realismo Fantástico, ou, ainda, Realismo Maravilhoso, frequente em grande parte da literatura hispano-americana do séc. XX. Finalmente, temos Italo Calvino, fiel discípulo de Borges e de suas idéias, e também ele um seguidor do Realismo Fantástico e que segue rumo a uma literatura do absurdo.
3. O nosso representante Machado de Assis
Machado de Assis, como os outros do Lustro XVII, está sob o signo de Yesod, o safirah que, em tradução livre, segundo o autor, significa “fundação” e encerra dois significados afins: “o impulso sexual masculino e o mistério do equilíbrio entre o feminino e o masculino, nos processos naturais”. É também “a base da vida apaixonada”. De modo geral, neste Lustro XVII estão autores marcados pela ironia. Na outra metade, que corresponde ao Lustro XVIII, encontram-se autores que Bloom chama de visionários (William Blake, D. H. Lawrence, Tennessee Williams, Rilke e Eugenio Montale). Estes, porém, não serão tratados aqui.
Da obra de Machado de Assis, depois de transcrever textos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, disse Bloom: “O verdadeiro tema de Machado de Assis é a nossa mortalidade, o que não constitui assunto para descaso e gracejo; no caso de Memórias Póstumas de Brás Cubas, o tema enseja uma perspectiva, ao mesmo tempo, distanciada e hilária”.
Sobre o escritor Machado de Assis, assim se referiu o crítico Bloom: “O gênio da ironia propiciou-nos poucos exemplos à altura do escritor afro-brasileiro Machado de Assis, a meu ver o maior literato negro surgido até o presente”. E para concluir o seu parecer, brinca, como brincaria o próprio autor de Memórias Póstumas: “Machado de Assis teria desprezado a minha observação, como mais uma piada digna de Tristram Shandy”.
Tristram Shandy é a personagem principal da obra homônima, de autoria do irlandês Laurence Sterne (1713-1768). Uma das características da personagem Shandy e da própria obra é a transcrição de documentos. Com isso, busca que o seu texto se pareça mais verdadeiro do que ficcional. Essa técnica mais tarde foi bastante empregada na ficção. Esse forma de indicação de fontes às vezes é feita de modo sério e outras vezes como se fosse uma brincadeira.
Sterne, citado por Machado de Assis, emprega uma linguagem constantemente carregada de ironia. Influenciado pelo modo de narrar do escritor irlandês e de um outro, o autor sardo de Viagem à Roda do meu Quarto, Machado de Assis os cita no início de Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio”.
Paulo Sérgio Rouanet no estudo “Tempo e Espaço na Forma Shandiana: Sterne e Machado de Assis”, sobre “forma shandiana”, afirma: “Ela designa uma atitude entre libertina e sentimental, um sensualismo risonho, um humor afável e tolerante, capaz de perdoar transgressões próprias e alheias, mas também de zombar, sem excessiva malícia, dos grandes e pequenos ridículos do mundo”. Continua Rouanet: “É uma forma caracterizada 1. pela presença constante e caprichosa do narrador, ilustrada enfaticamente pelo pronome de primeira pessoa: "Eu, Brás Cubas ; 2. por uma técnica de composição difusa e livre, isto é, digressiva, fragmentária, não-discursiva; 3. pela interpenetração do riso e da melancolia; e 4. pela subjetivação radical do tempo (os paradoxos da cronologia) e do espaço (as viagens)”.
Foi assim que Machado de Assis no prólogo da 3.ª edição de Memórias Póstumas de Brás Cubas, acrescentou mais um “viajante”, o português Almeida Garrett, de Viagens na Minha Terra. Diz Machado que todos esses realizavam determinado tipo de viagem: “Xavier de Maistre à roda do quarto, Garrett na terra dele, Sterne na terra dos outros. De Brás Cubas se pode dizer que viajou à roda da vida”.

No fragmento, percebe-se a profundeza do velho Machado: o que pode ser mais profundo, difícil e irônico do que “viajar ao redor da vida”. Parafraseando Drummond - Entanto, viajamos “mal rompe a manhã”.
4. Final
Assim são os gênios. Assim é o gênio Machado de Assis. Em todos eles está representada “a interioridade de Deus”, e, portanto, em todos eles se encontra “o espírito de Deus”. E, por fim, deve-se lembrar de que "a arte aproxima o homem do seu Criador” (frase atribuída a vários pensadores do Renascimento e retomada recentemente pelo papa João Paulo II, na Carta aos Artistas): “A música, como todas as linguagens artísticas, aproxima o homem de Deus”.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

CLAUDE LÉVI-STRAUSS – PENSADOR FRANCÊS E AMIGO DO BRASIL

Claude Lévi-Strauss dans son bureau du Collège de France, en 2001 à Paris. (photo : AFP)

Infelizmente, os grandes homens também morrem. Jornais de todo o mundo noticiaram nesta quarta-feira, 4 de novembro, a morte de Lévi-Straus, na França, na madrugada de domingo, 1.º de novembro, mas só agora anunciada em comunicado conjunto da Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales e de de seu editor, Plon.
Aqui, em Curitiba, a manchete da Gazeta do Povo estampava: MORRE AOS 100 ANOS LÉVI-STRAUSS, PAI DA ANTROPOLOGIA MODERNA; No Le Figaro: CLAUDE LÉVI-STRAUS EST MORT, para ficar somente com dois períodicos, um local e outro da terra do falecido, o grande criador da Antropolgia Estrutural.
Recentemente, Lévi-Strauss recebeu importantes homenagens do mundo inteiro pela passagem do seu centésimo aniversário, comemorado no dia 28 de novembro do ano passado. Portanto, há pouco menos de um ano.
O grande pensador francês é considerado o fundador da antropologia estrutural, principalmente por seus estudos sobre a língua, costumes e lendas de povos indígenas do Brasil. Aqui, ele permaneceu de 1935 a 1939, quatro anos fundamentais para seus estudos e para a apresentação de uma nova teoria antropológica ao final dos anos 40 e iníco dos anos 50. Com suas obras, principalmente As Estruturas Elementares do Parentesco, de 1949, e Tristes Trópicos, de 1955, tornou-se reconhecido e admirado mundialmente como cientista e pensador.
Foi professor honorário do Collège de France, no qual regeu a Cátedra de Antropologia Social de 1959 a 1982. Foi membro da Academia Francesa, o primeiro a atingir 100 anos de idade. É considerado um dos mais importantes intelectuais dos nossos tempos.
No Brasil, Lévi-Strauss esteve inicialmente como membro de uma grande missão francesa, que veio para a consolidação da recém-criada Universidade de São Paulo, a USP, de janeiro de 1934. Permsaneceu como professor na Instituição até 1938, quando abandonou o magistério para dedicar-se exclusivamente às suas pesquisas junto aos povos indígenas de Goiás, Mato Grosso e Paraná. Segundo ele, foram essas viagens que despertaram o seu grande interesse pela antropologia e pela pesquisa. Como resultado desses estudos, escreveu uma obra fundamental, Tristes Trópicos.
Inicialmente, por conhecer somente os indígenas do Norte do Paraná, na região do rio Tibagi, os Kaingang, pensou tratar-se de um povo não totalmente índios e nem verdadeiros selvagens. Só mais tarde com a incursão por terras dos Kadiweu, na divisa com o Paraguai e conhecimento dos Bororo do Mato Grosso é que conseguiu reunir os dados necessários para uma nova teoria antropológica. Foi com esses estudos que conseguiu prestar provas na França para o ingresso no magistério, pois não era formado em Antropologia.
Graças a essas pesquisas de 1936 é que conseguiu dinheiro e reconhecimento necessários para fazer nova expedição, esta em 1938, para estudar os índios Nambiqwara, de Mato Grosso. A missão também visitou os últimos homens e mulheres Tupi- Kaguahib, na região do rio Machado, considerados já desaparecidos.
Além do casal francês, Lévi e Diana Strauss, participaram dessa última expedição, o médico e etnólogo francês Jean Vellard e o antropólogo brasileiro Luís de Castro Faria. Este último revela os problemas que a missão enfrentou com os órgãos públicos brasileiros, porque contava com o patrocínio de Paul Rivet, um político ligado ao Partido Socialista Francês.
Denis Bertholet, um de seus biógrafos, assim descreve Claude Lévi-Strauss: “Philosophe de formation, ce pionnier du structuralisme qui arpentait le monde pour en étudier les mythes, ce précurseur dans le domaine de l'écologie qui écrivait admirablement, a oeuvré à la réhabilitation de la pensée primitive, avec parfois le regard d'un moraliste. A cheval entre philosophie et science (…), son oeuvre est indissociable d'une réflexion sur notre société et son fonctionnement. Il a une approche écologique du monde et des individus, avant la lettre” (Filósofo por formação, este pioneiro do estruturalismo que avaliava o mundo pela ótica dos mitos, este precursor no domínio da ecologia que escreveu admiravelmente uma obra de reabilitação do pensamento primitivo, com o olhar às vezes de um moralista. Colocada entre a a filosofia e a ciência (...)sua obra é indissociável de uma reflexão sobre nossa sociedade e seu funcionamento. ela apresenta um enfoque ecológico do mundo e dos indivíduos, antes mesmo de tal acontecer). Vê-se, assim, a importância do pensamento de Lévi-Strauss, classificado inclusive como um ambientalista antes mesmo de existir tal conceito e tanta preocupação com a natureza, como há em nossos dias.
De volta à França em 1939, com o surgimento da Segunda Grande Guerra, muda-se para os Estados Unidos e passa a lecionar em Nova Yorque. Em 1959, com o retorno à França, torna-se professor no Collège de França e se torna o primeiro antropólogo eleito para a Academia Francesa.
O grande mérito científico de Lévi-Strauss e a base de sua teoria foi ter aplicado ao conjunto dos fatos humanos de natureza simbólica um método, o método estruturalista. Com isso, ele passa a tratar do “pensamento selvagem” e não mais do “pensamento do selvagem”. Aparentemente apenas um jogo de palavras, mas em verdade uma total mudança no enfoque das pesquisas antropológicas. Sua obra O Pensamento Selvagem, de 1962, é o marco histórico dessa mudança. Catherine Clément, autora de um ensaio sobre o etnólogo, explica: “Quand il nous explique que la ‘pensée sauvage’ est en chacun de nous, il n'y a plus de distinction de fonctionnement mental entre les primitifs et nous. C'est une révolution intellectuelle considérable”. (Quando ele nos explica que o “pensamento selvagem” se encontra em cada um de nós, ele deixa de fazer a distinção do funcionamento mental entre os povos primitivos e nós. Isso é uma revolução intelectual considerável).
Lévi-Strauss costumava se definir como um “viajante, arqueólogo do espaço, que procurava em vão reconstituir o exotismo com o auxílio de fragmentos e de destroços”. Segundo seus contemporâneos, era um homem elegante, gentil, de olhar claro e penetrante, dotado de grande presença e marcado pela grande capacidade de escutar os outros. Como cientista dedicado a pesquisas, é autor de uma frase que se tornou célebre, pela verdade que encerra. Encontra em O Cru e o Cozido: “O sábio não é o homem que fornece as verdadeiras respostas. É o que faz as verdadeiras perguntas.” Sabe-se, hoje, que um estudo científico surge com base em um problema, sempre proposto em forma de questionamento pelo próprio pesquisador. Lévi-Strauss antecipou-se a nossos tempos em que as pesquisas se expandiram de forma exponencial.
CLAUDE LÉVI-STRAUSS E O ESTRUTURALISMO
Um grande pensador, considerado um gigante do pensamento moderno, Claude Lévi-Strauss é um verdadeiro mago do Estruturalismo. Essa corrente do pensamento científico iniciou-se na Lingüística com os estudos de Saussure (filósofo e lingüista suíço – 1857-1913) já no início do século XX. Teve vários desdobramentos até eclodir nos anos 60 no que se convencionou chamar de “Estruturalismo Francês”. Segundo a teoria estruturalista, por trás de toda a atividade humana, estão as “estruturas universais”. São elas que dão forma a culturas e às criações de todo tipo do ser humano. Assim, a linguagem, os mitos, as religiões, a poesia, tudo é resultado dessas “estruturas” e são próprias do gênero humano. O homem passa a ser identificado como “homo symbolicum”, de que nos fala Ernst Cassirer, e não mais o “homo erectus” dos primeiros antropólogos, nem mesmo o “homo sapiens”, de algumas outras teorias.
Como bom estruturalista, ele baseou seus estudos nas oposições binárias (na Linguística de Saussure, como exemplos, os conceitos significante e significado; forma e conteúdo.). Estudou oposições como: o cru e o cozido; o quente e o frio, o animal e o humano. Distinguia-se dos demais antropólogos pelo fato de que os outros buscavam revelar as diferenças entre povos e culturas, e ele buscava as estruturas universais, também chamadas “estruturas profundas”. Os seus estudos colaboraram mais para a igualdade de povos e culturas do que para as diferenças entre eles. Essas semelhanças, porém, encontravam-se naquilo que era essencial e não apenas externo, como viam os demais antropólogos. Um dos fundamentos do Estruturalismo é exatamente a oposição essência / aparência.
Em o Cru e o Cozido, Lévi-Strauss declarou haver orientado suas pesquisas etnográficas na direção da psicologia, da lógica e da filosofia (a essência). Ele não estava interessado nos propósitos a que serviam as práticas rituais de uma determinada sociedade (a aparência).
CLAUDE LÉVI-STRAUSS ESCRITOR
Em suas obras, o autor estudou principalmente a correlação do processo formador de mitos com o pensamento ocidental.
As principais são:
· As Estruturas Elementares do Parentesco (1949) - Marco fundador da antropologia estrutural. Lévi-Strauss repensa o problema universal da proibição do incesto.
· Tristes Trópicos (1955) – ­Espécie de autobiografia intelectual, a obra relata a vinda de Lévi-Strauss ao Brasil nos anos 1930.
· Antropologia Estrutural (1958) – ­Nesta coletânea, o autor apresenta paralelos estruturais entre as figuras do xamã e do psicanalista e lança as bases teóricas da mitologia.
· Mitológicas (1964-71) - Análise de cerca de 800 mitos ameríndios inspirado nos moldes da música.
· Via das Máscaras (1975) – Strauss retoma a questões fundamentais da estética e da história da arte.
· História de Lince (1991) - O autor investiga as fontes filosóficas e éticas do dualismo ameríndio com base nas lendas.
· Saudades do Brasil (1994) - Álbum fotográfico que remonta às raízes da aventura antropológica de Lévi­-Strauss e que traz imagens de São Paulo e do Centro-Oeste.
(Fonte: Folhapress)
Segundo seus estudiosos, os livros do cientista apresentam argumentos complexos expressos em uma linguagem metafórica, simbólica. Seus textos em nada lembram os escritos antropológicos anteriores a ele.
TEXTO DO LIVRO O PENSAMENTO SELVAGEM
A idéia de que o universo dos primitivos (ou que se supõe que o sejam) consiste principalmente em mensagem não é nova. Mas, até uma época recente, atribuía-se um valor negativo ao que, erradamente, se tomava por um caráter distintivo, como se esta diferença entre o universo dos primitivos e o nosso con­tivesse a explicação de sua inferioridade mental e tecnológica, quando ela os põe antes em pé de igualdade com os modernos teóricos da documentação. Era preciso que a ciência física descobrisse que um universo semântico possui todos os carac­teres de um objeto absoluto, para que se reconhecesse que. a maneira pela qual os primitivos conceptualizam seu mundo é, não apenas coerente, mas a mesma que se impõe em presença de um objeto cuja estrutura elementar oferece a imagem de uma complexidade descontínua.
De uma só vez achava-se superada a falsa antinomia entre mentalidade lógica e mentalidade pré-lógica. O pensamento selvagem é lógico, no mesmo sentido e da mesma forma que o nosso, mas como o é apenas o nosso quando se aplica ao conhecimento de um universo a que reconhece, simultaneamen­te, propriedades físicas e propriedades semânticas. Uma vez dissipado este mal-entendido, não é menos verdade que, con­trariamente à opinião de Lévy-Bruhl, este pensamento progri­de pelas vias do entendimento, não da afetividade; com o au­xílio de distinções e de oposições, não por confusão e parti­cipação. Se bem que o termo não tivesse ainda entrado em uso, numerosos textos de Durkheim e Mauss mostram que eles haviam compreendido que o pensamento dito primitivo era um pensamento quantificado
.

(p. 304-305).
LÉVI-STRAUSS NO BRASIL
No Brasil, além de professor e pesquisador da USP, Lévi-Strauss tornou-se Doutor Honoris Causa pela Universidade que muito aprendeu com ele. Como Acadêmico, desprezava a elite e valorizava os índios.
Ao mesmo tempo em que enaltecia um Brasil de que os próprios brasileiros se envergo­nhavam, Lévi-Strauss pode ser descrito como "carinhoso" ao falar de povos como os nambiquaras e os bororos. Foi duro, porém, e mesmo implacável às vezes, ao tratar da sociedade brasileira urbana, que considerava sempre à procura de status.
Lévi-Strauss se utilizava das lições aprendidas com grupos indígenas do cerrado (Goiás) e da floresta (Mato Grosso) - principalmente como relacio­nar natureza e cultura -, para a criação de um dos pensamentos mais in­fluentes da segunda metade do século 20. Enquanto isso, muitos brasileiros ainda olhavam esses mesmo índios co­mo um sinal de atraso a ser superado ou esquecido.
As suas lições só foram realmente aprendidas pelos antropólogos brasi­leiros entre os anos de 1950 e 1980. Portanto, depois de 10 e mais anos após o seu regresso à França. De certo modo, é compreensível, pois foi por essa época que seus livros saíram publicados.
Assim como Claude Lévi-Strauss aprendeu bastante com o Brasil, o Brasil também aprendeu muito com Claude Lévi-Straus. Resta, porém, muito ainda a aprender com esse sábio ligado ao nosso país.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA 2009 - HERTA MÜLLER



Herta Müller - Prêmio Nobel de Literatura 2009

1. O Prêmio Nobel
O Prêmio Nobel foi instituído em 1895 pelo industrial sueco Alfred Nobel (1833-1896). A fortuna adquirida com a patente da dinamite foi destinada à criação de uma fundação e de um prêmio. Os prêmios concedidos oficialmente desde 1901 são cinco: Medicina, Física, Química, Literatura e da Paz. O de Economia foi instituído em 1968 pelo Banco Central da Suécia com recursos próprios. Este prêmio, que começou a ser atribuído em 1969, só como homenagem pode ser chamado de Prêmio Nobel.
O Nobel, segundo alguns críticos, tem assumido um caráter político. É o caso do Prêmio de Economia. A Fundação Humboldt, incumbida de distribuí-lo, tem concedido o Prêmio sistematicamente a economistas humboldtianos. O presidente do Comitê de Outorga procura abrandar a situação: “as tendências políticas dos ganhadores do prêmio são muito variadas. Alguns são claramente conservadores ou de direita, enquanto que outros são obviamente de esquerda, ou pelo menos do centro do espectro político”.
No caso específico da concessão do Prêmio de Literatura deste ano de 2009 a Herta Müller, a Academia justificou com argumento literário e ao mesmo tempo político. A obra: “com a concentração da poesia e a franqueza da prosa, descreve a paisagem dos despos­suídos”.
Lya Luft, tradutora da versão portuguesa de Heute wär ich mir lieber nicht begegnet, declara: “Prêmios de literatura são em geral muito estranhos. Muitos autores premiados não são interessantes, nem muito bons, e a gente não sabe por que ganha”.
Herta Müller assumiu o número107 na lista dos ganhadores do Nobel de Literatura. Ela é a 12.ª mulher a receber o Prêmio.
2. Herta Müller, escritora romeno-alemã
Nasceu em 1953, em Nitzkydorf, vilarejo de Banat, na Romênia. Aí vivia um grande número de imigrantes alemães, os Donauschwaben, “suábios do Danúbio” (no Paraná se encontra importante colônia de imigrantes suábios, a de Entre Rios). Na época do Nazismo, romenos de ascendência alemã foram deportados para campos de trabalhos forçados na União Soviética, inclusive a mãe de Herta Muller. O livro Atemschaukel (“Ritmo da respiração”) retrata o exílio desses romenos sob o regime comunista da então URSS.
Entre os anos de 1972 e 1976, Herta Müller estudou filologia germânica e romanística na Universidade de Timisoara, capital de Banat. Nessa época, ingressou no Aktions-gruppeBanat, que reunia intelectuais contrários ao regime de Ceausescu e que lutavam pela liberdade de ex­pressão. Depois de 1976, passou a trabalhar em uma fábrica de máquinas. Foi despedida por não ter aceito colaborar com policia secreta do regime romeno. Assumiu o magistério, mas foi impedida de exercer a função. Essas experiências com o regime comunista da Romênia vão-se tornar tema de suas obras. Os livros de Herta Müller são como um ajuste de contas com esse passado de sofrimento.
O primeiro livro de Herta Müller, Niederung (Depressões - terras baixas) são contos que focalizam a vida em pequeno vilarejo com o cenário de repressão que aí se vivia. A obra foi censurada. Em 1984, o livro foi contrabandeado para a Alemanha, onde alcançou grande sucesso. Nesse ano de 1984, lançou na Romênia Drückender Tango (Tango opressivo). A obra também se tornou proibida, e a autora foi impedida de publicar em sua própria terra. Perseguida, Herta e seu marido emigraram para a Alemanha em 1987, dois anos antes da queda de Ceausescu.
Dentre suas obras principais, além das já referidas, destacam-se: os romances Der Fuchs war damals schon der Jäger,1992 (“A raposa era o próprio o caçador”), Herztier 1994 (“Animal do coração” – Coração selvagem) e Heute wär ich mir lieber nicht begegnet,1997 (“Hoje eu não gostaria de me encontrar”). Para o Comitê do Prêmio, essas obras: “apresentam, com detalhes primorosos, um retrato da vida sob a estagnação da ditadura”. Além desses, publicou: Der Mensch ist ein groβer Fasan auf der Welt, 1986 (“O homem é um grande faisão sobre a terra”); Barfüβiger Februar, 1987 (“Fevereiro descalço”); Reisende auf einem Bein, 1989 (“Viajante em uma só perna”); Der Teufel sitzt im Spiegel, 1991 (“O diabo está no espelho”); Eine warme Kartoffel ist ein warmes Bett, 1992 (“Uma batata quente é uma cama quente”); Der Wächter nimmt seinen Kamm, 1993 (“O vigia toma – rouba - o seu pente”); In der Falle, 1996 (“Na armadilha”); Im Haarknoten wohnt eine Dame, 2000 (“No nó do cabelo – coque - vive uma senhora”); Heimat ist das, was gesprochen wird, 2001 (“Pátria é o que é falado” – é o que se fala); Der König verneigt sich und tötet, 2003 (“O rei se inclina e mata”); e Die blassen Herren mit den Mokkatassen, 2005 (“Os pálidos homens com as xícaras de cafezinho”). Publicou ainda um livro de ensaios, Hunger und Seide,1995 (“Fome e seda”).
As suas obras estão traduzidas para o inglês, espanhol, francês e sueco. A única obra em português é a tradução brasileira de Heute wär ich mir lieber nicht begegnet feita por Lya Luft e publicada pela Editora Globo, em 2004. Aqui, recebeu o título O Compromisso contra a vontade da própria tradutora. A Editora o escolheu provavelmente influenciada pelo título da tradução americana, The Appointment. É interessante notar que em francês o livro recebeu o título La Convocation, coerente com a ideia que aparece já no início da narrativa: “Eu fui convocada. Quinta-feira, dez em ponto... e que se repete ao longo da narrativa.
Lya Luft, por qualquer motivo, não deu importância ao livro que traduziu. Ao receber a notícia que Herta Müller
havia vencido o Prêmio Nobel de Literatura, reagiu como muitos: “nunca ouvi falar”. No momento da notícia, disse: “Esqueci dele. Não foi um livro particular para mim, nem nunca mais tinha ouvido falar da autora”. Alegou que o esquecimento se deveu ao fato de o livro ter saído com título diferente do que havia proposto. Acrescenta: “Na minha opinião, não era um livro importante. Era só um dos muitos que já traduzi. Confesso que nunca pensei, ‘puxa, isso ainda vai dar o Prêmio Nobel’.” Lya Luft se declara não especialista em literatura alemã. Porém, já traduziu escritores alemães, como Hermann Hesse (também suábio); Thomas Mann (Prêmio Nobel de Literatura, 1929); e Günter Grass (Prêmio Nobel de Literatura, 1999). Para estes, ela não economiza elogios, mas sobre Herta Muller e seu livro, insiste: “não tenho coisas interessantes para dizer”.

Capa da edição original com o intrigante cavalo branco

3. O literário na obra de Herta Müller
A obra de Herta Müller na sua maioria versa o tema da vida sob uma ditadura socialista. A autora retrata em seus livros as dificuldades, humilhações e sofrimentos infligidos a imigrantes e também aos próprios romenos que se colocassem contra o governo.
Na obra traduzida para o português, um oficial da polícia secreta persegue, assedia e leva à demissão uma trabalhadora de uma fábrica de roupas (a autora, como a personagem, foi empregada em uma fábrica e sofreu os mesmos problemas). A personagem com frequencia é “convocada”, para ser interrogada em datas aleatórias e sobre acusações completamente sem sentido. Essa fixação na convocação torna-se um dos motivos condutores da obra. Vários outros de seus livros falam da vida da minoria alemã sob um regime opressivo, principalmente por falta de liberdade, intolerância racial e cultural, e opressão dos homens sobre as mulheres.
Ao ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, Herta Müller declarou:
1. “Estou surpresa e ainda não consigo acreditar; neste momento não consigo dizer mais nada”.
2. “Minha escrita sempre tratou de como uma ditadura surge, como uma situação pode ocorrer em que um punhado de pessoas poderosas dominam um país e o país desaparece, e só resta um Estado”.
3. “Acho que a literatura sempre emerge de coisas que fizeram dano a alguém, e há um tipo de literatura em que os autores não escolhem seu assunto, mas lidam com um que lhes foi lançado - não sou a única escritora assim”.
No caso da edição brasileira, a tradutora assim se refere à personagem da obra: “É uma personagem bastante kafkiana, com essa coisa persecutória da pessoa que se vê envolvida em uma situação a que não sabe como chegou, sempre muito fragilizada”.


Capa da tradução brasileira com o selo de Prêmio Nobel de Literatura 2009

A leitura de fragmentos de O Compromisso nos dará a oportunidade de tecer comentários sobre aspectos da estrutura da obra:
1.
Eu fui convocada. Quinta-feira, dez em ponto.
Sou convocada cada vez com maior freqüência: às dez em ponto na quinta, às dez em ponto no sábado, na quarta ou na segunda. Como se os anos fossem uma semana, fico imaginando que depois do fim de verão logo teremos outra vez inverno.
No trajeto até o bonde os arbustos voltam a emergir através das cercas, com suas frutinhas brancas. Como botões de madrepérola costurados embaixo, talvez até terra adentro, ou como migalhas de pão. Para cabecinhas de pássaros com bicos tortos, as frutinhas são pequenas demais, mesmo assim penso em cabeças de pássaros brancos. E isso dá vertigem. Prefiro pensar em flocos de neve no capim, mas aí a gente se perde, e pensar em giz nos dá sono.
O bonde não tem horários fixos.
Penso que é ele que chega rumorejando, se não forem os choupos com suas folhas duras. Está chegando, o bonde, e hoje me levará logo. Estou decidida a deixar o velho de chapéu de palha embarcar na minha frente. Quando cheguei ele já estava na parada, sabe lá fazia quanto tempo. Não parece frágil, mas é magro como sua sombra, meio corcunda, e abatido. Não tem bunda para encher os fundilhos, nem quadris, só os joelhos marcam a calça.
Mas se no exato momento em que a porta do bonde se abrir ele resolver escarrar no chão, eu embarco antes dele. Quase todos os assentos estão livres, ele os examina com o olhar e fica de pé.
Como é que gente tão velha não fica cansada e insiste em ficar de pé mesmo quando se pode sentar. Às vezes, ouvimos os velhos dizerem: Já vamos ficar deitados tempo suficiente no cemitério. Mas nem estão pensando em morrer, e têm razão. Não há uma ordem fixa, jovens também morrem. Sempre que não preciso ficar de pé, eu me sento. Viajar sentado é como caminhar sentado. O homem me examina, é fácil perceber isso no carro vazio. Hoje estou sem vontade de conversar, senão perguntaria o que é que ele vê em mim. Nem se apercebe que seu olhar me incomoda. Lá fora passa metade da cidade, alternando-se entre árvores e casas. Dizem que gente de idade sente mais do que pessoas jovens. Talvez ele até perceba que hoje tenho na bolsa uma toalhinha de rosto e pasta de dentes, além de uma escova. Mas nada de lenço, pois não pretendo chorar.
(Início da narrativa, p. 7)
2.
Desde as três desta manhã escuto o tique-taque do despertador: convocada, convocada, convocada ... Quando dorme, Paul encosta o pé em mim, em diagonal sobre a cama, e se afasta tão depressa que, sem acordar, ele próprio se sobressalta. É um hábito seu. Meu sono passou. Fico deitada, acordada, e sei que deveria fechar os olhos para adormecer de novo. Mas não os fecho. Várias vezes desaprendi o sono e tive de aprendê-lo de novo, do jeito que podia. É um processo bem simples, ou então não funciona. Tudo dorme na madrugada, até gatos e cachorros só rondam as latas de lixo metade da noite. Quando se sabe que não se pode mesmo dormir, é mais fácil pensar em algo claro no quarto escuro do que fechar os olhos com força, em vão. Pensar em neve, em troncos de árvore bran­cos, em aposentos brancos, em muita areia ­com isso eu passei o tempo muitas vezes até o dia clarear, quando me dava vontade. Esta manhã podia ter pensado em girassóis, e fiz isso, mas não consegui esquecer que estava convocada para as dez em ponto. Como o des­pertador tiquetaqueava convocada, convocada, convocada, tive de pensar no major Albu, antes mesmo de pensar em mim e em Paul. Hoje, quando Paul se sobressaltou, eu já estava acor­dada. Quando a janela ficou de cor cinza, eu já tinha visto no teto do quarto a boca de Albu, muito grande, a ponta da língua cor-de-rosa atrás dos dentes inferiores e sua voz zombeteira:
- Não precisa ficar nervosa, estamos apenas começando.
(p. 11)
3.
Prefiro espiar pela janela da cozinha. As andorinhas atravessam um grande pedaço de céu, girando em seu círculo particular. Esta manhã elas voavam baixo, eu mastigava minha noz e, vendo-as, per­cebi que lá fora era dia. Como fui convocada, será só um dia atra­vés da vidraça, ainda que ao lado da mesa do major eu enxergue metade de uma árvore. Desde que comecei a ser convocada, ela certamente cresceu pelo menos o comprimento de um braço. No inverno é a madeira que assinala o tempo, no verão é a folhagem. A folhagem balança ou sacode a cabeça, segundo o vento. Não posso me distrair com isso. Quando Albu faz uma pergunta breve, quer resposta imediata. Perguntas breves não são as mais simples.
Eu preciso refletir.
(p. 37)
4.
Eu pensava sobre as peças que a vida prega, e no caminho de casa, voltando do sapateiro, repassei todas as maneiras de se can­sar do mundo. Primeira e melhor: Nunca ser convocado e nunca enlouquecer, como a maioria. Nunca ser convocada mas enlouque­cer, como a mulher do sapateiro e a sra. Micu ao lado da entrada lá embaixo, é a segunda. Terceira: Ser convocada e enlouquecer, como as duas mulheres no hospício, que alguém fez enlouque­cer. Ser convocado e jamais enlouquecer como Paul e eu, é a quarta maneira. Não muito boa, mas em nosso caso é ainda a melhor pos­sibilidade. Na calçada havia uma ameixa esmagada, vespas matando a fome, recém-nascidas ou velhas. Se toda uma família se acomo­da na ameixa, como será isso. O sol preferiu trocar a cidade pelos campos. A um primeiro olhar, o sol estava maquilado em cores ber­rantes para a noite, a um segundo olhar via-se que levara um tiro - vermelho como todo um canteiro de papoula, dissera o oficial de Lili. Sim, essa é a quinta possibilidade: Ser muito jovem, bela a mais não poder, nada louca, mas morta. Para morrer não é preciso chamar-se Lili. (p. 117)
5.
Antes de comprar as batatas eu fora ver os doces na mercea­ria. Nos potes de vidro amontoados vi bombons vermelhos onde se grudavam vespas mortas, depois lâminas de barbear enferruja­das, depois biscoitos quebrados, depois caixas de fósforo, depois bombons verdes grudados, também com vespas. E na prateleira as garrafas alternavam suas cores, licor de ovos amarelo, suco de gro­selha rosado, uma aguardente esverdeada, removedor de unhas claro como água. O que estava ali realmente parecia achar que era outra coisa. O vendedor dava a impressão de ser uma pessoa feita de fósforos, lâminas, bombons grudentos e biscoitos, que logo iria se desmanchar.
Cem gramas daquelas lâminas de barbear doces, eu disse.
Trate de sumir daqui, ele gritou, compre alguma coisa na farmácia que lhe devolva o juízo.
Eu tinha mesmo perdido o juízo, todas as mercadorias se confundiam em minha cabeça. Fui até a quitanda e fiquei contente porque as batatas do caixote não se transformaram em sapatos ou pedras na balança. Levei na mão dois quilos de batatas e na cabeça a irrefutabilidade das coisas. Depois fui até a farmácia e comprei o olho de vidro. Quando pararem de me convocar, quero que Paul cole nele um pequeno aro, e eu o usarei como enfeite no pes­coço, pensei então. Quando se ouve, do patamar, o elevador descendo com o men­sageiro de Albu, a voz dele soa baixinho na minha cabeça: Terça, dez em ponto, sábado, dez em ponto, quinta, dez em ponto. Quantas vezes depois de fechar a porta eu disse a Paul:
Não vou mais lá.
Paul me pegava pelo braço:
Se você não for, eles virão te apanhar aqui, e não te soltam mais.
Eu balançava a cabeça concordando.
(p. 202-203)
6.
Quando alguém sai do elevador, a porta bate como pedras no andar acima ou abaixo. E aqui no andar como ferro. Quando escuto ferro, vou até o patamar. Hoje Albu virá. Quando fui convocada pela primeira vez, ele me mostrou sua identificação. Fiquei olhando boquiaberta a foto dele, em vez de ler como alguém que esmaga seus dedos ao beijar sua mão é cha­mado pela mãe, pela mulher. Devia haver dois, três nomes, tarde demais, a identificação já fora guardada. Se Albu disser que eu devo sumir, vou lhe dizer a verdade:
Meu avô pintou aquele cavalo na casa dele, e eu esperei você aqui diante da porta do apartamento.
E se Paul sair do elevador, também direi isso, então ele não terá de mentir até eu indagar:
Onde é que você esteve.
E como tantas vezes e!e dirá:
Na minha camisa e junto de você.
A Java vermelha recém-pintada brilha. Por tédio, por acaso, o velho olha para o arbusto e inclina-se junto do ouvido de Paul. Agora Paul se levanta e me enxerga. Por que está abotoando sua camisa.
Há, há, nada de enlouquecer.
(Trecho final da obra, p. 204)
4. Comentário sobre o texto

Os trechos, embora muito parcialmente, dão-nos uma idéia de aspectos da temática, da construção e da linguagem de O Compromisso, de Herta Müller. Aí se encontram a tortura das seguidas convocações da personagem (nunca nomeada no livro) pelo regime comunista (representada pelo major Albu), numa linguagem transparente (embora se trate de uma tradução) e sem grandes novidades no modo de narrar.
Mesmo tratando-se de uma obra com tendências realistas, a autora não se restringe a mostrar-nos uma realidade apenas mimeticamente. Ela o faz de modo variado, às vezes cruel, outras vezes poeticamente. Mescla a dura vida com alguns momentos de amor ou meramente de prazer.
A sua temática é a social, mas há também o aprofundamento psicológico das personagens. O espectro de observação da narradora percorre toda a vida que a rodeia naquela cidade escura e entristecida, em que nada acontece a não ser uma massacrante rotina e o contínuo medo que acompanha a todos.
Quanto às personagens, que não são muitas no livro, variam de velhos devassos a jovens sedutoras; de trabalhadores sofridos a agentes da polícia política; de velhinhas meio loucas a doentes, feridos, bêbados. Todas elas marcadas pelas contínuas perseguições, delações, traições, dificuldades de viver em um regime opressivo. Aos poucos vão se abeirando da loucura e outras enlouquecem de vez. Mas há também a luta para não se deixarem enlouquecer.
O tom que paira sobre as pessoas e a paisagem, geralmente sufocante, mostra-se às vezes poético: um fundo de paisagem deprimente de céu cinzento, espaços sombrios, ruas escuras, fábricas opressivas, bondes lotados, mas há também lugar para amores que percorrem o livro. A narrativa em algumas passagens desperta um certo suspense, como o segredo que reveste um instigante cavalo branco, que inclusive aparece na capa da edição original.
Quanto à linguagem, varia da dureza da prosa realista, a uma linguagem de pura poesia. É transparente, sem grandes invenções, um tanto conservadora e muito pouco experimental. Assim, o texto pode ser facilmente fluido pelo leitor.
Como ao lado da atmosfera de penumbra e medo, há também um sentido de esperança, a linguagem se adequa perfeitamente a cada uma dessas situações. Por exemplo, com a chegada da primavera e o renascer das plantas e flores, que sucede a um rigoroso inverno coberto de neve, nessas passagens, a linguagem se torna poética. Com passagens líricas, a narrativa nos apresenta ambiente de amor, alguns implícitos, como aquele entre a narradora e sua melhor amiga. Por outro lado, há cenas de sexo, alguns incestuosos. O amor muitas vezes se apresenta como uma forma de fuga daquela vida de rotina.
Concluindo, O Compromisso de Herta Müller é um painel de sofrimento e paixão, de amor e de ódio, de sentimentos humanos tão contraditórios, mas que têm de ser superados. Se não é uma obra-prima da literatura universal, possui o seu valor e não pode ser menosprezada pela crítica, como tem sido às vezes, apesar do sucesso que vem alcançando nos países em que foi traduzida e na própria Alemanha. É livro que merece ser lido como genuína literatura que realmente é.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

POESIA E LOUCURA



1. Alguns conceitos básicos
Erasmo de Rotterdam ao escrever O Elogio da Loucura tocou em um dos temas mais complexos da produção poética. De onde provém o processo criador?
Os Antigos, principalmente os gregos, consideravam que havia necessidade de um furor divino para o humano tornar-se um poeta, um demiurgo, um criador. O fenômeno que alguns denominavam inspiração poética, os gregos chamavam de entusiasmo (de en + theos = estar com deus em si). Assim, o poeta é um possesso, um possuído. O poeta produz quando abandona a sua própria consciência e se deixa invadir por uma divindade.
A palavra poesia (grego poésis) significa “uma ação para fazer algo”. O poeta (poietés) é “aquele que age, que faz”. Segundo Platão, é o entusiasmo que leva à ação.
Para Erasmo, o que move o ser humano à ação deixa de ser o entusiasmo, ou inspiração divina, e passa a ser a loucura. Segundo ele, a sobriedade inibe a ação. Só age quem está possuído pela loucura: “O louco, ao contrário, tomando a iniciativa de tudo, arrostando todos os perigos, parece-me alcançar a verdadeira prudência” (p. 47). Continua a afirmar: “Se a prudência consiste no uso comedido das coisas, eu desejaria saber qual dos dois merece mais ser honrado com o título de prudente: o sábio que, parte por modéstia, parte por medo, nada realiza, ou o louco, que nem o pudor (pois não o conhece) nem o perigo (porque não o vê) podem demover de qualquer empreendimento” (p. 47).
2. Poetas que enaltecem a loucura
Inúmeros poetas prestaram homenagem à loucura. Na literatura portuguesa, o exemplo a ser citado será um poema de Fernando Pessoa. O exemplo da poesia brasileira, neste espaço, será um texto de Mario Quintana:
GAZETILHA - Álvaro de campos, heterônimo de Fernando Pessoa:
Dos Lloyd Georges da Babilônia

Não reza a história nada.
Dos Briands da Assíria ou do Egito,
Dos Trotskys de qualquer colônia
Grega ou romana já passada,
O nome é morto, inda que escrito.

Só o parvo dum poeta, ou um louco
Que fazia filosofia,
Ou um geômetra maduro,
Sobrevive a esse tanto pouco
Que está lá para trás no escuro
E nem a história já historia.

Ó grandes homens do Momento!
Ó grandes glórias a ferver
De quem a obscuridade foge!
Aproveitem sem pensamento!
Tratem da fama e do comer,
Que amanhã é dos loucos de hoje!

O AUTO-RETRATO - Mário Quintana
No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...

às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Terminado por um louco!

. 2. Poetas tomados pela loucura
Em Portugal, o aparecimento do Modernismo, em 1915, deu-se com a revista Orpheu. A poesia que nela se publicou foi taxada de “poesia de loucos”. Os organizadores e editores da Revista, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, foram, então, à busca de poemas de alguém que realmente fosse doente mental. Como já conheciam a poesia de um interno de Hospício, a tarefa não foi difícil. O interno era o poeta Ângelo de Lima.

Ângelo de Lima (Porto, 1872 – Lisboa, 1921) - Por haver participado da revolução republicana de 1891 (Portugal foi monarquia até 1910), Ângelo de Lima foi enviado para a África. Na volta a Portugal, dois anos depois, começou a sentir os primeiros sintomas da doença. Esteve internado por quatro anos (1894-1898) no Hospital Psiquiátrico Conde Ferreira no Porto. Mais tarde, em 1901, foi novamente internado. Desta vez, em Lisboa, no Manicômio Rilhafoles. Aí permaneceu praticamente o resto de sua vida até a morte, em 1921.
A sua poesia foi adotada pelos primeiros modernistas e começou a ser difundida. O segundo número de Orpheu publicou um conjunto de poemas. O soneto seguinte, publicado na Revista, é um exemplo:
EDD´ORA ADDIO... – MIA SOAVE!...
— Mia Soave... — Ave?!... — Almeia?!...
— Mariposa Azual...— Transe!...
Que d’Alado Lidar, Canse...
— Dorta em Paz...— Transpasse Ideia!...

— Do Ocaso pela Epopeia...
Dorto...Stringe... o Corpo Elance...
Vai à Campa... — Il c’or descanse...
— Mia soave... — Ave!... — Almeia!...

— Não dói Por Ti Meu Peito...
— Não Choro no Orar Cicio...
— Em Profano... — Edd’ora...Eleito!...

— Balsame — a campa — o Rocio
Que Cai sobre o Ultimo Leito!...
— Mi’Soave!... Eddora Addio!...

Quanto à forma, os poemas de Ângelo de Lima sempre se mostrou perfeitamente bem estruturada. O mesmo, porém, não se pode dizer da sua linguagem, que se apresenta bastante desviada da linguagem considerada normal. A sua poesia foi altamente valorizada pelos simbolistas e depois pelos modernistas, principalmente pelo emprego de neologismos e pela sonoridade de seus versos. Há também, nessa poesia, sinais precursores do Surrealismo, que só iria aparecer na França, em 1924.

São notáveis alguns outros sonetos de Ângelo de Lima, como este:

Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz, do esquecimento...

Pára surpreso, escrutador, atento,

Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado...
Pára e fica e demora-se um momento.

Pára e fica na doida correria...

Pára à beira do abismo e se demora
E mergulha na noite escura e fria

Um olhar de aço que essa noite explora...

Mas a espora da dor seu flanco estria
E ele galga e prossegue sob a espora.


Neste poema, pode-se observar uma estrutura perfeitamente definida e uma linguagem de alguém que se encontra de posse de suas faculdades mentais. Acontecia com Ângelo de Lima, o que é normal em pessoas com tal doença, momentos de lucidez em meio a tantos outros de desvarios. Por vezes, a sua poesia abandona aquele estilo de alucinação e passa a retratar estados de lucidez.
Um outro texto típico da poética de Ângelo de Lima é este:

OLHOS DE LOBAS
Teus olhos lembram círios
Acesos n'um cemitério...
(Dr. Rogério de Barros)

Têm um fulgor estranho singular
Os teus olhos febris... Incendiados!...

Como os Clarões Finais... - Exaustinados
Dos restos dos archotes, desdeixados...
— Nas criptas d'um Jazigo Tumular!...

— Como a Luz que na Noute Misteriosa
— Fantástica - Fulgisse nas Ogivas
Das Janelas de Estranho Mausoléu!...

— Mausoléu, das Saudades do Ideal!...

— Oh Saudades... Oh Luz Transcendental!
— Oh memórias saudosas do Ido ao Céu!...

— Oh Pérpetuas Febris!... - Oh Sempre Vivas!...
— Oh Luz do Olhar das Lobas Amorosas!...

Este poema se destaca por uma espécie de dedicatória a um médico, possivelmente aquele que o atendia. A epígrafe denota, além do carinho pelo clínico, o estado em que muitas vezes se encontrava Ângelo de Lima e que se refletia em seus olhos.
Quanto à estrutura se mostra perfeitamente regular como uma forma pouco mais livre do que um soneto, porém conservando o equilíbrio na construção de dos versos, perfeitos decassílabos. Quanto à linguagem fica a meio-termo entre aquela que retrata momentos de lucidez e outra em que aparecem estranhas percepções. Emprega termos exóticos, o que era comum entre os simbolistas, e que não chegam a pertubar o entendimento do texto
.