com todos os sentidos em riste
(João Cabral de Melo Neto)
A obra poética de João Cabral de Melo Neto, por ser uma das mais complexas, e não só da literatura brasileira, enseja os mais variados enfoques. Há críticos que escolhem o lado geométrico, desenhado de seus poemas, como influência para a poesia concreta; outros selecionam o aspecto visual; e outros, ainda, vão fazer leituras de seus poemas sob a ótica as contribuições de Bachelard para os estudos literários. Estudos dessas e de outras naturezas iluminam os textos do grande poeta pernambucano.
Para uma visão rápida de alguns poemas de João Cabral, procuramos apoiar-nos na grande admiração, amor mesmo, pela cidade de Sevilha, na hoje Andaluzia espanhola. Embora tenha vivido em outras tão diferentes cidades da Europa, da África, da América do Sul, da América Central e própria Espanha, Madri e Barcelona, a nenhuma delas o poeta devota tanta admiração e amor como a Sevilha, a quem (porque cidade e mulher) entregou-se de corpo e alma.
Vivendo em Sevilha, por treze anos, embora em vezes diferentes, nela exerceu o cargo de Cônsul do Brasil. Nessa cidade do sul da Espanha, João Cabral de Melo Neto buscou assimilar a literatura, a arte e muito especialmente a cultura popular. Em intensa vivência, embebeu-se da poesia gitana, do flamenco, do cante hondo. Para tanto, foi assíduo frequentador de lugares típicos: tablaos, barrios gitanos, plaza de toros, tascas... Conviveu com o povo sevilhano uma profunda relação de amigo, admirador e divulgador de artistas, toreros, cantaores, bailaoras. Enfim, ao produzir uma poesia impregnada de palavras e figuras andaluzas, contribuiu para a divulgação dessa vasta cultura, principalmente daquela do povo mais simples e, por isso mesmo, muitas vezes, discriminadas por certas classes.
Nestas duas estrofes do poema Viver Sevilha, João Cabral declara:
Só em Sevilha o corpo está
com todos os sentidos em riste,
sentidos que nem se sabia,
antes de andá-la, que existissem;
sentidos que fundam num só:
viver num só o que nos vive,
que nos dá a mulher de Sevilha
e a cidade ou concha em que vive.
Nesta outra confissão, agora em prosa, o poeta afirma:
"Sevilha é uma cidade intima. Você anda nas ruas de Sevilha como você anda no corredor de sua casa. É difícil explicar, aqui no Brasil, o que é uma corrida de touros, o que é um toureiro... um taurino ... para compreender o que é um taurino é preciso ter vivido na Espanha como eu, que vivi treze anos lá."
Estes textos levaram habitantes ilustres de Sevilha a se manifestarem sobre o conhecimento e o apreço que João Cabral tinha da cidade:
"Ele era um poeta com sensibilidade. Um poeta que sabia apreciar o mundo das touradas, dos touros. Que apreciava o flamenco em toda sua gama: o " baile ", o " cante" e a guitarra. É preciso ter muita sensibilidade para entender tudo isso. Especialmente para quem não é da Espanha e não nasceu em Sevilha. " (Manolo Vazques, toureiro).
“É muito bonito quando ele fala de Sevilha, do aspecto feminino da cidade, quando a compara a uma mulher andando nas ruas, pisando o chão, sob a luz e na obscuridade, nos recantos bonitos e nas ruas tranqüilas. O olhar de Cabral é muito profundo e não fica no aspecto exterior. Ele vai sempre até o centro das coisas." (Pablo del Barco, poeta e escritor).
O amplo conhecimento de Sevilha e seus lugares típicos fez com que poetizasse esses locais, como Calle Relator, Plaza Pumarejo, Calle Sierpes, Calle San Luis; os bairros de El Arenal; Triana, Macarena, Santa Cruz, Santa Maria La Blanca, São Bernardo, este frequentado por toreros; e cidades próximas como Utrera e Carmona. A cada um desses lugares referiu-se em poemas nos quais aliava o próprio local a poetas famosos que antes dele os haviam poetizado.
Para o pensamento geometrizante, proporcional e de uma lógica muito particular de João Cabral, Recife é Sevilha, e o Guadalquivir corresponde ao seu Capibaribe. A secura dos campos andaluzes são as pedras do sertão nordestino, assim como a planura do Mediterrâneo são os verdes canaviais de Pernambuco. Em Sevilha em Casa, escreveu:
Sevilha veio a Pernambuco
porque Aloísio lhe dizia
que o Capibaribe e o Guadalquivir
são de uma só maçonaria.
1. Para mostrar o apego motivacional e poético de João Cabral por Sevilha, pode-se começar, como abertura, por esta sua:
AUTO-CRÍTICA
Só duas coisas conseguiram
(des)feri-lo até a poesia:
o Pernambuco de onde veio
e o aonde foi, a Andaluzia.
Um, o vacinou do falar rico
e deu-lhe a outra, fêmea e viva,
desafio demente: em verso
dar a ver Sertão e Sevilha.
Para João Cabral, apenas duas coisas o despertaram para a poesia, Pernambuco e Sevilha. A secura de Pernambuco ensinou-lhe a secura da poesia, e Sevilha sempre foi para ele, poeta, um desvairado desafio.
2. Andando e amando Sevilha, o poeta vai, pouco a pouco, ilustrando a sua vivência sevilhana com poesia, como nesta estrofe de Estudos para uma Bailarina Andaluza:
Para uma visão rápida de alguns poemas de João Cabral, procuramos apoiar-nos na grande admiração, amor mesmo, pela cidade de Sevilha, na hoje Andaluzia espanhola. Embora tenha vivido em outras tão diferentes cidades da Europa, da África, da América do Sul, da América Central e própria Espanha, Madri e Barcelona, a nenhuma delas o poeta devota tanta admiração e amor como a Sevilha, a quem (porque cidade e mulher) entregou-se de corpo e alma.
Vivendo em Sevilha, por treze anos, embora em vezes diferentes, nela exerceu o cargo de Cônsul do Brasil. Nessa cidade do sul da Espanha, João Cabral de Melo Neto buscou assimilar a literatura, a arte e muito especialmente a cultura popular. Em intensa vivência, embebeu-se da poesia gitana, do flamenco, do cante hondo. Para tanto, foi assíduo frequentador de lugares típicos: tablaos, barrios gitanos, plaza de toros, tascas... Conviveu com o povo sevilhano uma profunda relação de amigo, admirador e divulgador de artistas, toreros, cantaores, bailaoras. Enfim, ao produzir uma poesia impregnada de palavras e figuras andaluzas, contribuiu para a divulgação dessa vasta cultura, principalmente daquela do povo mais simples e, por isso mesmo, muitas vezes, discriminadas por certas classes.
Nestas duas estrofes do poema Viver Sevilha, João Cabral declara:
Só em Sevilha o corpo está
com todos os sentidos em riste,
sentidos que nem se sabia,
antes de andá-la, que existissem;
sentidos que fundam num só:
viver num só o que nos vive,
que nos dá a mulher de Sevilha
e a cidade ou concha em que vive.
Nesta outra confissão, agora em prosa, o poeta afirma:
"Sevilha é uma cidade intima. Você anda nas ruas de Sevilha como você anda no corredor de sua casa. É difícil explicar, aqui no Brasil, o que é uma corrida de touros, o que é um toureiro... um taurino ... para compreender o que é um taurino é preciso ter vivido na Espanha como eu, que vivi treze anos lá."
Estes textos levaram habitantes ilustres de Sevilha a se manifestarem sobre o conhecimento e o apreço que João Cabral tinha da cidade:
"Ele era um poeta com sensibilidade. Um poeta que sabia apreciar o mundo das touradas, dos touros. Que apreciava o flamenco em toda sua gama: o " baile ", o " cante" e a guitarra. É preciso ter muita sensibilidade para entender tudo isso. Especialmente para quem não é da Espanha e não nasceu em Sevilha. " (Manolo Vazques, toureiro).
“É muito bonito quando ele fala de Sevilha, do aspecto feminino da cidade, quando a compara a uma mulher andando nas ruas, pisando o chão, sob a luz e na obscuridade, nos recantos bonitos e nas ruas tranqüilas. O olhar de Cabral é muito profundo e não fica no aspecto exterior. Ele vai sempre até o centro das coisas." (Pablo del Barco, poeta e escritor).
O amplo conhecimento de Sevilha e seus lugares típicos fez com que poetizasse esses locais, como Calle Relator, Plaza Pumarejo, Calle Sierpes, Calle San Luis; os bairros de El Arenal; Triana, Macarena, Santa Cruz, Santa Maria La Blanca, São Bernardo, este frequentado por toreros; e cidades próximas como Utrera e Carmona. A cada um desses lugares referiu-se em poemas nos quais aliava o próprio local a poetas famosos que antes dele os haviam poetizado.
Para o pensamento geometrizante, proporcional e de uma lógica muito particular de João Cabral, Recife é Sevilha, e o Guadalquivir corresponde ao seu Capibaribe. A secura dos campos andaluzes são as pedras do sertão nordestino, assim como a planura do Mediterrâneo são os verdes canaviais de Pernambuco. Em Sevilha em Casa, escreveu:
Sevilha veio a Pernambuco
porque Aloísio lhe dizia
que o Capibaribe e o Guadalquivir
são de uma só maçonaria.
1. Para mostrar o apego motivacional e poético de João Cabral por Sevilha, pode-se começar, como abertura, por esta sua:
AUTO-CRÍTICA
Só duas coisas conseguiram
(des)feri-lo até a poesia:
o Pernambuco de onde veio
e o aonde foi, a Andaluzia.
Um, o vacinou do falar rico
e deu-lhe a outra, fêmea e viva,
desafio demente: em verso
dar a ver Sertão e Sevilha.
Para João Cabral, apenas duas coisas o despertaram para a poesia, Pernambuco e Sevilha. A secura de Pernambuco ensinou-lhe a secura da poesia, e Sevilha sempre foi para ele, poeta, um desvairado desafio.
2. Andando e amando Sevilha, o poeta vai, pouco a pouco, ilustrando a sua vivência sevilhana com poesia, como nesta estrofe de Estudos para uma Bailarina Andaluza:
Dir-se-ia, quando aparece
dançando por siguiriyas,
que com a imagem do fogo
inteira se identifica.
Aqui é o mundo das “bailaoras” que aparece vivo. São elas, “las gitanas andaluzas” que bailam ao som “del cante flamenco”, nos “tablaos” de bairros típicos.
3. As andaluzas, sejam de Sevilha ou de Cádiz, ou de qualquer outra cidade daquela região da Espanha, estão sempre presentes na sua poesia, como nesta primeira parte de Retrato de Andaluzia:
Estatura pequena e nítida
das cidades de onde ela era:
daquele justo para o abraço
que é de Cádiz, onde nascera,
e de Sevilha, onde vivia
e se dizia, mas não era:
cidades que ainda se podem
abraçar de uma vez, completas,
e que dão certo estar-se dentro,
àquele que as habita ou versa,
a entrega inteira, feminina,
e sensual ou sexual, de sesta.
Nestes versos, vislumbram-se duas cidades próximas, Sevilha perto do mar, e Cádiz, porto desse mar. Encontram-se a pouca distância uma da outra, ambas são capitais de províncias andaluzas. Assim, por serem irmãs próximas podem abraçar-se. Ambas são próprias para abraços, por acolhedoras que são. Inclusive, aqui, se inclui o fato de Cádiz encontrar-se numa parte mais ampla de pequena península e, portanto, rodeada de águas. É como se estivesse continuamente abraçada pelo Mediterrâno. Por isso, nela, pode dar-se um “certo estar-se dentro”, como também em Sevilha. Nelas acontece, porque ambas, femininas, “a entrega inteira”, “sensual e sexual” e de “sesta”, o horário em que em cidades tão quentes dá-se o inteiro fechar-se, sem sair às ruas.
4. O mundo dos touros, a tauromaquia, de que tanto gostava e frequentava, está, por exemplo no poema Alguns Toureiros:
dançando por siguiriyas,
que com a imagem do fogo
inteira se identifica.
Aqui é o mundo das “bailaoras” que aparece vivo. São elas, “las gitanas andaluzas” que bailam ao som “del cante flamenco”, nos “tablaos” de bairros típicos.
3. As andaluzas, sejam de Sevilha ou de Cádiz, ou de qualquer outra cidade daquela região da Espanha, estão sempre presentes na sua poesia, como nesta primeira parte de Retrato de Andaluzia:
Estatura pequena e nítida
das cidades de onde ela era:
daquele justo para o abraço
que é de Cádiz, onde nascera,
e de Sevilha, onde vivia
e se dizia, mas não era:
cidades que ainda se podem
abraçar de uma vez, completas,
e que dão certo estar-se dentro,
àquele que as habita ou versa,
a entrega inteira, feminina,
e sensual ou sexual, de sesta.
Nestes versos, vislumbram-se duas cidades próximas, Sevilha perto do mar, e Cádiz, porto desse mar. Encontram-se a pouca distância uma da outra, ambas são capitais de províncias andaluzas. Assim, por serem irmãs próximas podem abraçar-se. Ambas são próprias para abraços, por acolhedoras que são. Inclusive, aqui, se inclui o fato de Cádiz encontrar-se numa parte mais ampla de pequena península e, portanto, rodeada de águas. É como se estivesse continuamente abraçada pelo Mediterrâno. Por isso, nela, pode dar-se um “certo estar-se dentro”, como também em Sevilha. Nelas acontece, porque ambas, femininas, “a entrega inteira”, “sensual e sexual” e de “sesta”, o horário em que em cidades tão quentes dá-se o inteiro fechar-se, sem sair às ruas.
4. O mundo dos touros, a tauromaquia, de que tanto gostava e frequentava, está, por exemplo no poema Alguns Toureiros:
Un cartel de corridas
Eu vi Manolo González
e Pepe Luís, de Sevilha:
precisão doce de flor,
graciosa, porém precisa.
Vi também Julio Aparício,
de Madrid, como Parrita:
ciência fácil de flor,
espontânea, porém estrita.
Vi Miguel Báez, Litri,
dos confins da Andaluzia,
que cultiva uma outra flor:
angustiosa de explosiva.
E também Antonio Ordóñez,
que cultiva flor antiga:
perfume de renda velha,
de flor em livro dormida.
Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,
o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra
o da figura de lenha
lenha seca de caatinga,
o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,
o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,
sim, eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:
como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,
e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.
e Pepe Luís, de Sevilha:
precisão doce de flor,
graciosa, porém precisa.
Vi também Julio Aparício,
de Madrid, como Parrita:
ciência fácil de flor,
espontânea, porém estrita.
Vi Miguel Báez, Litri,
dos confins da Andaluzia,
que cultiva uma outra flor:
angustiosa de explosiva.
E também Antonio Ordóñez,
que cultiva flor antiga:
perfume de renda velha,
de flor em livro dormida.
Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,
o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra
o da figura de lenha
lenha seca de caatinga,
o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,
o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,
sim, eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:
como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,
e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.
La Maestranza
Percebe-se pelo poema a intensa frequencia “a las plazas de toros”. Em Sevilha, está uma das mais famosas da Espanha, “la Real Maestranza de Caballería”. Situa-se no bairro de Arenal, um dos mais típicos daquela cidade. João Cabral torna “el toreo” um verdadeiro poema. O toureiro é o poeta; o tourear, o poema; e cada movimento na arena, é a metáfora contida no poema. Daí o elogio incontido a um dos maiores toureiros da Espanha, Manolete, que não só cultivava a sua poesia, como a demonstrava a outros poetas.
5. Nos bares da cidade, o poeta aprendeu a beber “a palo seco”, como dizem os boêmios sevilhanos. Beber apenas beber, sem mais nada. Nos tablados flamengos, apendeu que cantar “a palo seco” é apenas cantar. É um cantar solitário, sem acompanhamento. Diz João Cabral no início do poema A Palo Seco:
Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada.
João Cabral aproxima o “cante a palo seco” à sua própria poesia. Uma poesia seca, feita de silêncios, uma poesia só poesia. Segue, assim, o ensinamento que aprendeu no canto: “A palo seco existem / situações e objetos: / Graciliano Ramos, / desenho de arquiteto”.
O que de fato pode existir de mais seco, de “mais sem nada” do que simples objetos, do que os textos de Graciliano Ramos, do que um desenho de arquiteto. Eles são solitários, valem por si.
6. O bairro de Sevilha que ilustra a andança de João Cabral pela cidade é Arenal. Lamenta o poeta as mudanças havidas e, por essas, já quase nada mais existe do antigo e verdadeiro. A cidade modernizou-se. Só resta do outro lado do rio o bairro de Triana. É o que nos diz no poema O Arenal de Sevilha:
5. Nos bares da cidade, o poeta aprendeu a beber “a palo seco”, como dizem os boêmios sevilhanos. Beber apenas beber, sem mais nada. Nos tablados flamengos, apendeu que cantar “a palo seco” é apenas cantar. É um cantar solitário, sem acompanhamento. Diz João Cabral no início do poema A Palo Seco:
Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada.
João Cabral aproxima o “cante a palo seco” à sua própria poesia. Uma poesia seca, feita de silêncios, uma poesia só poesia. Segue, assim, o ensinamento que aprendeu no canto: “A palo seco existem / situações e objetos: / Graciliano Ramos, / desenho de arquiteto”.
O que de fato pode existir de mais seco, de “mais sem nada” do que simples objetos, do que os textos de Graciliano Ramos, do que um desenho de arquiteto. Eles são solitários, valem por si.
6. O bairro de Sevilha que ilustra a andança de João Cabral pela cidade é Arenal. Lamenta o poeta as mudanças havidas e, por essas, já quase nada mais existe do antigo e verdadeiro. A cidade modernizou-se. Só resta do outro lado do rio o bairro de Triana. É o que nos diz no poema O Arenal de Sevilha:
Torre de Oro
Já nada resta do Arenal
de que contou Lope de Vega.
A Torre do Ouro é sem ouro
senão na cúpula amarela.
Já não mais as frotas das Índias,
e esta hoje se diz América;
nem a multidão de mercado
que se armava chegando elas.
Já Riconete e Cortadilho
dormem no cárcere dos clássicos
e é ponte mesmo, de concreto,
a antiga Ponte de Barcos.
.
Urbanizaram num Passeio
o formigueiro que antes era;
só, do outro lado do rio,
ainda Triana e suas janelas.
O bairro Arenal é onde se encontram alguns dos monumentos mais famosos como a “Torre del Oro”, a “plaza de toros de la Maestranza”. Foi nesse bairro que teria surgido o mito de Don Juan, depois imortalizado literariamente pelo poeta barroco Tirso de Molina e, mais tarde, pelo romântico Francisco Zorilla, com a peça Don Juan Tenorio. Inspirou também Cervantes, o escitor francês Merimée, que escreveu a novela Carmen, base para ópera homônima do compositor também francês Bizet. Carmen seria uma jovem vendedora de cigarros, mas também dançarina atraente de Arenal. O bairro foi também motivo da obra do renascentista Lope de Vega, El Perro del Hortelano y el Arenal de Sevilla.
A modernização que conheceu João Cabral, e muito mais aquela sofrida depois da Exposição Universal de Sevilha, em 1992, fez com que a cidade se transformasse completamente em especial nesse espaço entre os bairros de Arenal e de Triana. Foi aí que se instalaram os pavilhões da grande Feira. Foi aí que se construiu a estação ferroviária para receber o AVE – o trem de alta velocidade, que liga Sevilha a Madri. Surgiram novas e moderníssimas pontes.
Nada disso, porém, pode ofuscar o antigo brilho da cúpula da “Torre del Oro”, o mistério da antiga Ponte de Barcos. O antigo espaço foi urbanizado num longo passeio. Só restou a poesia de Triana e de suas janelas, no outro lado do Guadalquivir.
7. Não se poderia esquecer uma rua de Sevilha. Fica, como exemplo, a Calle Relator, local que inspirou João Cabral de Melo Neto a “contar” poeticamente o Crime na Calle Relator, título de um poema e de um livro de João Cabral de Melo Neto.
de que contou Lope de Vega.
A Torre do Ouro é sem ouro
senão na cúpula amarela.
Já não mais as frotas das Índias,
e esta hoje se diz América;
nem a multidão de mercado
que se armava chegando elas.
Já Riconete e Cortadilho
dormem no cárcere dos clássicos
e é ponte mesmo, de concreto,
a antiga Ponte de Barcos.
.
Urbanizaram num Passeio
o formigueiro que antes era;
só, do outro lado do rio,
ainda Triana e suas janelas.
O bairro Arenal é onde se encontram alguns dos monumentos mais famosos como a “Torre del Oro”, a “plaza de toros de la Maestranza”. Foi nesse bairro que teria surgido o mito de Don Juan, depois imortalizado literariamente pelo poeta barroco Tirso de Molina e, mais tarde, pelo romântico Francisco Zorilla, com a peça Don Juan Tenorio. Inspirou também Cervantes, o escitor francês Merimée, que escreveu a novela Carmen, base para ópera homônima do compositor também francês Bizet. Carmen seria uma jovem vendedora de cigarros, mas também dançarina atraente de Arenal. O bairro foi também motivo da obra do renascentista Lope de Vega, El Perro del Hortelano y el Arenal de Sevilla.
A modernização que conheceu João Cabral, e muito mais aquela sofrida depois da Exposição Universal de Sevilha, em 1992, fez com que a cidade se transformasse completamente em especial nesse espaço entre os bairros de Arenal e de Triana. Foi aí que se instalaram os pavilhões da grande Feira. Foi aí que se construiu a estação ferroviária para receber o AVE – o trem de alta velocidade, que liga Sevilha a Madri. Surgiram novas e moderníssimas pontes.
Nada disso, porém, pode ofuscar o antigo brilho da cúpula da “Torre del Oro”, o mistério da antiga Ponte de Barcos. O antigo espaço foi urbanizado num longo passeio. Só restou a poesia de Triana e de suas janelas, no outro lado do Guadalquivir.
7. Não se poderia esquecer uma rua de Sevilha. Fica, como exemplo, a Calle Relator, local que inspirou João Cabral de Melo Neto a “contar” poeticamente o Crime na Calle Relator, título de um poema e de um livro de João Cabral de Melo Neto.
Calle Relator
CRIME NA CALLE RELATOR
Achas que matei minha avó?
O doutor à noite me disse:
ela não passa desta noite;
melhor para ela, tranqüilize-se.
À meia-noite ela acordou;
não de todo, a sede somente;
e pediu: Dáme pronto, hijita,
una poquita de aguardiente.
Eu tinha só dezesseis anos;
só, em casa com a irmã pequena:
como poder não atender
a ordem da avó de noventa?
Já vi gente ressuscitar
com simples gole de cachaça
e arrancarse por bulerías
gente da mais encorujada.
E mais: se o doutor já dissera
que da noite não passaria
por que negar uma vontade
que a um condenado se faria?
Fui a esse bar do Pumarejo
quase esquina de San Luís;
comprei de fiado uma garrafa
de aguardente (cazzala e anis)
que lhe dei cuidadosamente
como uma poção de farmácia,
medida, como uma poção,
como não se mede a cachaça;
que lhe dei com colher de chá
como remédio de farmácia:
Hijita, bebi lo bastante,
disse com ar de comungada.
Logo então voltou a dormir
sorrindo em si como beata,
um semi-sorriso de gracias
aos santos óleos da garrafa.
De manhã acordou já morta,
e embora fria e de madeira,
tinha defunta o riso ainda
que a aguardente lhe acendera.
Aqui se dramatiza a culpa da jovem que ficou entre o dever de atender à sua querida avó e o perigo que poderia causar à saúde da velhinha adoecida. Teria cpometido um crime? O poeta a perdoa. Para ele, o que ela fez foi um grande bem. A doente conciliou o sono e pode reencontrar o riso perdido.
8. A cidade selecionada para representar localidades da província de Sevilha, foi Carmona. Aqui o poeta viu a arte de um ferrageiro, nas rendas de suas grades de ferro. Em O Ferrageiro de Carmona, o poeta aprendeu poesia. É arte difícil e deve ser feita à mão e não moldada em forma. Éo que se lê nestas estrofes selecionadas:
O FERRAGEIRO DE CARMONA
Um ferrageiro de Carmona,
que me informava de um balcão:
"Aquilo? É de ferro fundido,
foi a forma que fez, não a mão.
.
Só trabalho em ferro forjado
que é quando se trabalha ferro
então, corpo a corpo com ele,
domo-o, dobro-o, até o onde quero.
.
O ferro fundido é sem luta
é só derramá-lo na forma.
Não há nele a queda de braço
e o cara a cara de uma forja.
.
Existe a grande diferença
do ferro forjado ao fundido:
é uma distância tão enorme
que não pode medir-se a gritos.
Conhece a Giralda, em Sevilha?
De certo subiu lá em cima.
Reparou nas flores de ferro
dos quatro jarros das esquinas?
Pois aquilo é ferro forjado.
Flores criadas numa outra língua.
Nada têm das flores de forma,
moldadas pelas das campinas.
.
Dou-lhe aqui humilde receita,
Ao senhor que dizem ser poeta:
O ferro não deve fundir-se
nem deve a voz ter diarréia.
.
Forjar: domar o ferro à força,
não até uma flor já sabida,
mas ao que pode até ser flor
se flor parece a quem o diga.
O que o ferrageiro fazia era pura arte, pura poesia. Não escolhia o caminho fácil do ferro fundido, mas o trajeto difícil do ferro forjado. Forjado é o ferro, forjada é a poesia de João Cabral. O ferrageiro, semioticamente, sabia a diferença de linguagem que há entre o fazer flores de ferro e fazer poesia. Cada uma usa uma língua diferente. Era capaz ainda o ferrageiro de dar sábia lição: “o ferro não deve fundir-se / nem deve a voz ter diarréia”. Tudo deve ser difícil, contido, metáfora da própria poesia de João Cabral de Melo Neto.
9. João Cabral de Melo Neto afastou-se, ou teve de afastar-se fisicamente, de Sevilha. Porém, o poeta levou-a consigo. Ela o acompanhou na memória e nos versos. Assim a cidade passou a ser algo que o acompanharia sempre, Coisas de Cabeceira, Sevilha, que é o título de um de seus poemas. Nesta primeira parte, lemos:
Diversas coisas se alinham na memória
numa prateleira com o rótulo: Sevilha.
Coisas, se na origem apenas expressões
de ciganos dali; mas claras e concisas
a um ponto de se considerarem em coisas,
bem concretas, em suas formas nítidas.
Por estes versos pode-se notar mais uma vez a admiração de João Cabral pela concisão. O falar cigano é claro e comedido a ponto de se transformarem em coisas concretas, como queria o poeta que fosse a poesia. A sua era.
10. A despedida de João Cabral ao deixar Sevilha deve ter sido um momento de sofrimento para o poeta. Ao receber o adeus de seus amigos, procurou exorcizar esse sentimento de perda ao poetizar esse instante no poema Na Despedida de Sevilha:
NA DESPEDIDA DE SEVILHA
"Tó lo bueno le venga a U’ted.
Não viveu cá como um qualquer.
Conheceu Sevilha como a Bíblia
fala de conhecer mulher.
..
Sei tudo dessas relações
de corpo, que não o deixarão
ir de Sevilha a outra Cidade
como alguém que se lava as mãos.
.
Sei que sabe de tudo, até
dos estilos de matar touros;
do flamenco e sua goela extrema,
de sua alma esfolada, sem couro.
.
Sei que bem sabe distinguir
a soleá de uma siguiriya.
Sei que conhece casa a casa,
sua cal de agora e a cal antiga.
.
Sei que entende nossos infundios,
nossa verdade de mentira
que o sevilhano faz mais franco
mas nunca um Franco nem polícia
.
Eu, como simples sevilhano,
só sei adiós na minha língua,
nesse andaluz de que a gramática
fala desde Madrid, e de cima.
.
Vaya con Dió! com o gracioso
que anda na boca das ciganas,
no Pumarejo, em Santa Cru,
nos cais da Barreta e Triana.
.
.Repito adió! nesse andaluz
que é o espanhol com mais imagens,
que faz a cigana e a duquesa
benzerem-se igual: Qué mal ange!”
João Cabral, ao deixar Sevilha, recebe as homenagens do homem simples, do andaluz autêntico, daquele que fala as palavras formalmente incompletas, mas completas no seu conteúdo, no sentimento que essas palavras expressam. “Que todo o bem o acompanhe”; “Segue com Deus!”; “adeus”. Era uma despedida de alguém que conhecia e sabia tudo de Sevilha. Sevilha é conhecida em seus recantos mais íntimos. É cidade e é mulher. Entende de touradas, de cantares populares, das pequenas mentiras, fingimentos, em que o sevilhano é mestre. Só o andaluz poderia reduzir uma expressão “que mala sangre”, em “qué mal ange”, que literalmente poderia ser “que mau caráter!”, mas transforma-se numa interjeição que pode admitir o sentido segundo a situação. Essa riqueza da fala do povo encantou o poeta e nela foi buscar fonte de – não direi inspiração – motivo para a sua poesia.
Finalizando, vamos procurar seguir o preceito do poeta. Já que não se pode humanizar a terra, vamos que se sevilhize o mundo. É o que faz João Cabral no poema Sevilhizar o Mundo:
Como é impossível, por enquanto,
civilizar toda a terra,
o que não veremos, verão,
de certo, nossas tetranetas,
.
infundir na terra esse alerta,
fazê-la uma enorme Sevilha,
que é a contra-pelo, onde uma viva
guerrilha do ser, pode a guerra.
Sevilha está presente em todos que a conhecem, localmente ou pela imaginação. Eu, agora, com João Cabral de Melo Neto revisitei Sevilha, andei Sevilha, amei Sevilha e aprendi poesia.
Achas que matei minha avó?
O doutor à noite me disse:
ela não passa desta noite;
melhor para ela, tranqüilize-se.
À meia-noite ela acordou;
não de todo, a sede somente;
e pediu: Dáme pronto, hijita,
una poquita de aguardiente.
Eu tinha só dezesseis anos;
só, em casa com a irmã pequena:
como poder não atender
a ordem da avó de noventa?
Já vi gente ressuscitar
com simples gole de cachaça
e arrancarse por bulerías
gente da mais encorujada.
E mais: se o doutor já dissera
que da noite não passaria
por que negar uma vontade
que a um condenado se faria?
Fui a esse bar do Pumarejo
quase esquina de San Luís;
comprei de fiado uma garrafa
de aguardente (cazzala e anis)
que lhe dei cuidadosamente
como uma poção de farmácia,
medida, como uma poção,
como não se mede a cachaça;
que lhe dei com colher de chá
como remédio de farmácia:
Hijita, bebi lo bastante,
disse com ar de comungada.
Logo então voltou a dormir
sorrindo em si como beata,
um semi-sorriso de gracias
aos santos óleos da garrafa.
De manhã acordou já morta,
e embora fria e de madeira,
tinha defunta o riso ainda
que a aguardente lhe acendera.
Aqui se dramatiza a culpa da jovem que ficou entre o dever de atender à sua querida avó e o perigo que poderia causar à saúde da velhinha adoecida. Teria cpometido um crime? O poeta a perdoa. Para ele, o que ela fez foi um grande bem. A doente conciliou o sono e pode reencontrar o riso perdido.
8. A cidade selecionada para representar localidades da província de Sevilha, foi Carmona. Aqui o poeta viu a arte de um ferrageiro, nas rendas de suas grades de ferro. Em O Ferrageiro de Carmona, o poeta aprendeu poesia. É arte difícil e deve ser feita à mão e não moldada em forma. Éo que se lê nestas estrofes selecionadas:
O FERRAGEIRO DE CARMONA
Um ferrageiro de Carmona,
que me informava de um balcão:
"Aquilo? É de ferro fundido,
foi a forma que fez, não a mão.
.
Só trabalho em ferro forjado
que é quando se trabalha ferro
então, corpo a corpo com ele,
domo-o, dobro-o, até o onde quero.
.
O ferro fundido é sem luta
é só derramá-lo na forma.
Não há nele a queda de braço
e o cara a cara de uma forja.
.
Existe a grande diferença
do ferro forjado ao fundido:
é uma distância tão enorme
que não pode medir-se a gritos.
Conhece a Giralda, em Sevilha?
De certo subiu lá em cima.
Reparou nas flores de ferro
dos quatro jarros das esquinas?
Pois aquilo é ferro forjado.
Flores criadas numa outra língua.
Nada têm das flores de forma,
moldadas pelas das campinas.
.
Dou-lhe aqui humilde receita,
Ao senhor que dizem ser poeta:
O ferro não deve fundir-se
nem deve a voz ter diarréia.
.
Forjar: domar o ferro à força,
não até uma flor já sabida,
mas ao que pode até ser flor
se flor parece a quem o diga.
O que o ferrageiro fazia era pura arte, pura poesia. Não escolhia o caminho fácil do ferro fundido, mas o trajeto difícil do ferro forjado. Forjado é o ferro, forjada é a poesia de João Cabral. O ferrageiro, semioticamente, sabia a diferença de linguagem que há entre o fazer flores de ferro e fazer poesia. Cada uma usa uma língua diferente. Era capaz ainda o ferrageiro de dar sábia lição: “o ferro não deve fundir-se / nem deve a voz ter diarréia”. Tudo deve ser difícil, contido, metáfora da própria poesia de João Cabral de Melo Neto.
9. João Cabral de Melo Neto afastou-se, ou teve de afastar-se fisicamente, de Sevilha. Porém, o poeta levou-a consigo. Ela o acompanhou na memória e nos versos. Assim a cidade passou a ser algo que o acompanharia sempre, Coisas de Cabeceira, Sevilha, que é o título de um de seus poemas. Nesta primeira parte, lemos:
Diversas coisas se alinham na memória
numa prateleira com o rótulo: Sevilha.
Coisas, se na origem apenas expressões
de ciganos dali; mas claras e concisas
a um ponto de se considerarem em coisas,
bem concretas, em suas formas nítidas.
Por estes versos pode-se notar mais uma vez a admiração de João Cabral pela concisão. O falar cigano é claro e comedido a ponto de se transformarem em coisas concretas, como queria o poeta que fosse a poesia. A sua era.
10. A despedida de João Cabral ao deixar Sevilha deve ter sido um momento de sofrimento para o poeta. Ao receber o adeus de seus amigos, procurou exorcizar esse sentimento de perda ao poetizar esse instante no poema Na Despedida de Sevilha:
NA DESPEDIDA DE SEVILHA
"Tó lo bueno le venga a U’ted.
Não viveu cá como um qualquer.
Conheceu Sevilha como a Bíblia
fala de conhecer mulher.
..
Sei tudo dessas relações
de corpo, que não o deixarão
ir de Sevilha a outra Cidade
como alguém que se lava as mãos.
.
Sei que sabe de tudo, até
dos estilos de matar touros;
do flamenco e sua goela extrema,
de sua alma esfolada, sem couro.
.
Sei que bem sabe distinguir
a soleá de uma siguiriya.
Sei que conhece casa a casa,
sua cal de agora e a cal antiga.
.
Sei que entende nossos infundios,
nossa verdade de mentira
que o sevilhano faz mais franco
mas nunca um Franco nem polícia
.
Eu, como simples sevilhano,
só sei adiós na minha língua,
nesse andaluz de que a gramática
fala desde Madrid, e de cima.
.
Vaya con Dió! com o gracioso
que anda na boca das ciganas,
no Pumarejo, em Santa Cru,
nos cais da Barreta e Triana.
.
.Repito adió! nesse andaluz
que é o espanhol com mais imagens,
que faz a cigana e a duquesa
benzerem-se igual: Qué mal ange!”
João Cabral, ao deixar Sevilha, recebe as homenagens do homem simples, do andaluz autêntico, daquele que fala as palavras formalmente incompletas, mas completas no seu conteúdo, no sentimento que essas palavras expressam. “Que todo o bem o acompanhe”; “Segue com Deus!”; “adeus”. Era uma despedida de alguém que conhecia e sabia tudo de Sevilha. Sevilha é conhecida em seus recantos mais íntimos. É cidade e é mulher. Entende de touradas, de cantares populares, das pequenas mentiras, fingimentos, em que o sevilhano é mestre. Só o andaluz poderia reduzir uma expressão “que mala sangre”, em “qué mal ange”, que literalmente poderia ser “que mau caráter!”, mas transforma-se numa interjeição que pode admitir o sentido segundo a situação. Essa riqueza da fala do povo encantou o poeta e nela foi buscar fonte de – não direi inspiração – motivo para a sua poesia.
Finalizando, vamos procurar seguir o preceito do poeta. Já que não se pode humanizar a terra, vamos que se sevilhize o mundo. É o que faz João Cabral no poema Sevilhizar o Mundo:
Como é impossível, por enquanto,
civilizar toda a terra,
o que não veremos, verão,
de certo, nossas tetranetas,
.
infundir na terra esse alerta,
fazê-la uma enorme Sevilha,
que é a contra-pelo, onde uma viva
guerrilha do ser, pode a guerra.
Sevilha está presente em todos que a conhecem, localmente ou pela imaginação. Eu, agora, com João Cabral de Melo Neto revisitei Sevilha, andei Sevilha, amei Sevilha e aprendi poesia.
10 comentários:
Muito bacana o texto!
Gosto bastante tb. do poema "As plazoletas" (de Sevilha andando):
Quem fez Sevilha a fez para o homem
sem estentóricas paisagens.
Para que o homem nela habitasse,
não os turistas, de passagem.
E claro, se a fez para o homem,
fê-la cidade feminina,
com dimensões acolhimentos,
que se espera de coxas íntimas.
Para a mulher: para que aprenda,
fez escolas de espaço, dentros,
pequenas praças, plazoletas,
quase do tamanho de um lenço.
Descontem-se as "coxas íntimas", expressão estranha, tanto na ideia como na sonoridade. No mais, é um poema muito inspirado.
Lendo o teu post, deu muita vontade de voltar a Sevilha - também pra aprender naquelas "escolas de espaço".
Oi, Raquel,
obrigado pela contribuição. De fato, é um poema emblemático sobre Sevilha e suas plazoletas (ele também se refere às glorietas, que são muitas pela cidade.
Os poemas sobre a cidade, bairros, ruas e praças são tantos que fiquei sem saber qual deles postar.
Você se refere à expressão "coxas íntimas" como estranha, o que realmente é, mas ela é compensada por estes dois versos:
"E claro, se fez para o homem, / fê-la cidade feminina".
Exatamente esses versos que me encantam: "se fez para o homem / fê-la cidade feminina". Pode até ser meio machista, mas não faz mal... :-)
Em tempo: sei que a Fundação Cultural Hispano-Brasileira está organizando um grande evento em torno do assunto (Cabral/Espanha). Vai acontecer em outubro em 4 cidades: Madri, Sevilha, Barcelona e Salamanca. A UFPR está nessa. E no ano que vem deve acontecer outro ciclo, em Recife e no Rio. Vou me manter informada.
Olá, Raquel
Que bom que aconteçam esses eventos. Mantenha-se mesmo bem informada e me comunique o que souber.
Talvez possa-se preparar algum trabalho nessa linha para propor e ver se consegue ser aprovado. Seria uma boa participar, ou em Madri, ou em Sevilha. Penso que de preferência em Sevilha.
Obrigado!
Olá, Prof. Jayme!
Que maravilha de artigo!
O sr. - como sempre - não poupa esforços para compartilhar conosco seus conhecimentos. Generosidade é o nome que dou a esse tipo de disposição.
Ao poetizar Sevilha João Cabral promove, em mim, uma espécie de turismo sensorial...
E, o sr., organiza seu texto de forma poética e arquitetônica, levando-nos caminhar pela história, geografia, arte, cultura... Escrever e se fazer entender - produzindo conhecimento -, é um dom Divino.
Parabéns pelo post!! Descobri que não sabia quase nada sobre João Cabral de Melo Neto... Estou embevecida.
Forte abraço,
Taninha
Obrigado, mais uma vez, Taninha
Ainda bem que tenho você como uma das leitoras fiéis ao meu blog.
As suas considerações sempre me motivam para continuar a publicar alguma coisa, sempre diferente.
Gosto de novidade, logo eu que tantos me consideram tão tradicional!
Um grande abraço,
Jayme
Prof. Jayme.
Eu, enquanto educadora, jamais poderei pensar em falar da Espanha sem falar em João Cabral de Melo Neto.
E, veja o que professores de história e geografia perdem...
É isso...
Espetáculo de postagem!! Nem agradeça; por favor... rs...
Taninha,
você pede para eu não agradecer, vá lá! mas vou comentar o seguinte: penso que ao falar de Sevilha e de Pernambuco, Recife incluída, mas principalmente a vida rural do Nordeste, não se pode deixar de lembrar e de falar de João Cabral de Melo Neto.
Um grande abraço,
Jayme
Verdade!!
Mas, quem fala?? POucos... Infelizmente...
BOM, EM QUE PESE SEU MUITO CONHECIMENTO E MEU DESCONHECIMENTO INCICLOPÉDICO (NELSON, O VELHO NELSON), QUERIA DISCORDAR DE JOÃO GOSTAR MAIS DE SEVILHA DO QUE DE RECIFE. OU POR OUTRA, TALVEZ ATÉ GOSTASSE DE FATO, MAS DE SEVILHA CONTRA RECIFE, SEVILHA CONTRA PERNAMBUCO, PERDERIA FEIO. OS POEMAS MAIS LONGOS FORAM OS QUE TINHAM PERNAMBUCO COMO PAISAGEM (O RIO, MORTE E VIDA SEVERINA, AUTO DO FRADE, O CÃO SEM PLUMAS, DOIS PARLAMENTOS.
NO MAIS O POST É ÓTIMO. PARABÉNS E DESCULPE MEU MODO DESABUSADO, FUI PÉSSIMO ALUNO E AGORA QUERO CORRIGIR PROFESSORES.
UM ABRAÇO,
WELLINGTON GUIMARÃES
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