quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

TRÊS CARTAS EM LIVROS DE FICÇÃO



GÊNERO EPISTOLAR EM OBRAS DE FICÇÃO

O gênero epistolar sempre teve seus cultores na literatura universal, tanto em prosa como em poesia. A literatura portuguesa e a brasileira, em todas as épocas literárias, apresentam grandes autores de epístolas. Há, inclusive, muitas obras que se estruturam com o apoio único ou preponderante de cartas.
Aqui se incluem três cartas retiradas de romances brasileiros de diferentes épocas e que não São unicamente de cartas. Elas aparecem acidentalmente na narrativa.
É comum encontrarmos cartas em obras de ficção. O autor, para mudar o foco narrativo, faz uso desse recurso estilístico. Os escritores selecionados foram o carioca Machado de Assis, o paulista Oswald de Andrade e o paranaense Miguel Sanches Neto.

1. UMA CARTA EXTRAORDINÁRIA (Machado de Assis)
Meu caro Brás Cubas,
Há tempos, no Passeio Público, tomei-lhe de empréstimo um relógio. Tenho a satisfação de restituir-lho com esta carta. A diferença é que não é o mesmos porém outro, não digo superior, mas igual ao primeiro. Que voulez-vous monseigneur?- como dizia Fígaro, - c'est la misère. Muitas cousas se deram depois do nosso encontro; irei cortá-las pelo miúdo, se me não fechar a porta. Saiba que já não trago aquelas botas caducas, nem envergo uma famosa sobrecasaca cujas abas se perdiam na noite dos tempos. Cedi o meu degrau da escada de S. Francisco; finalmente, almoço.
Dito isto, peço licença para ir um dia destes expor-lhe um trabalho, fruto de longo estudo, um novo sistema de filosofia, que não só explica e descreve a origem e a consumação das cousas, como faz dar um grande passo adiante de Zenon e Sêneca, cujo estoicismo era um verdadeiro brinco de crianças ao pé da minha receita moral. E singularmente espantoso esse meu sistema; retifica o espírito humano, suprime a dor, assegura a felicidade, e enche de imensa glória o nosso país. Chamo-lhe Humanitismo, de Humanitas, princípio das cousas. Minha primeira idéia revelava uma grande enfatuação; era chamar-lhe borbismo, de Borba; denominação vaidosa, além de rude e molesta. E com certeza exprimia menos. Verá, meu caro Brás Cubas, verá que é deveras um monumento; e se alguma cousa há que possa fazer-me esquecer as amarguras da vida, é o gosto de haver enfim apanhado a verdade e a felicidade. Ei-las na minha mão essas duas esquivas; após tantos séculos de lutas, pesquisas, descobertas, sistemas e quedas, ei-las nas mãos do homem. Até breve, meu caro Brás Cubas. Saudades do
Velho amigo
JOAQUIM BORBA DOS SANTOS.
(ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: W. C. Jackson, s. d., p. 275-6.)


130. RESERVA (Oswald de Andrade)
“21 de Abril
Seu Dr.
Peguei hoje na pena para vos Felicitar os nossos antes Passado sendo um dia de grande gala, para nós no nosso Grande Brasil sendo o dia do nobre Brasileiro Tiradentes que foi ezecutado na forca, mais tudo passa vamos tratar do nosso futuro que é melhor os passado eram bobos, por aqui todos Bom grassas a Deus o mesmo a todos que aí estão. Candoca, Rufina, Delina, Maria José, Bermira e a filha estão todos na mesma. Só eu saí sorteado para o Regemento Suprimetar de Paracatu no Goiás e queria que V. S. desse as providências para mim ficar em Caçapava no Regemento de Infantaria Montada fica mais perto aqui eu estudarei para ser a Luz de minha família. Representar talento com meu falecido avô Capitão Benedito da Força Pública, não estudando agora, quando mais o tempo passa e a Velhice chega conduz a Tristeza, porque este mundo é um passatempo que nós temos essa é a Verdade! Só temos que tratar do Futuro neste mundo não vale nada a Beleza as Festas as Inlusão do mundo só o talento com o grande Rio Branco o Ouro Preto, O Padre feijó, José Bonifácio, Rui Barbosa e outros que nem se sabe.
Seu criado às ordens
Minão da Silva”
(ANDRADE, Oswald de. Memórias sentimentais de João Miramar. Rio de Janeiro: Globo, 1990.)

2. RESPOSTA AO PROFESSOR AFRICANO (Miguel Sanches Neto)
Antes de mais nada, comunico que não pretendo responder ponto por ponto às suas questões, inclusive porque a maioria delas sequer merece resposta. Mas como o senhor solicita um pronunciamento meu, redijo esta carta que vai tratar maneira genérica o Caso Jabuticaba.
A vida particular de uma pessoa não é algo totalmente isolado da vida pública, principalmente quando estes dois espaços são confundidos. O senhor recebe constantemente em sua casa uma família que tem um filho estudando nesta escola. O aluno também freqüenta a casa do senhor e isso dá a ele credenciais para ser um braço do diretor, usado contra os demais alunos.
Assim, este comportamento particular do senhor diretor interfere, sim, na vida das demais pessoas e é de interesse não só meu, mas de toda a escola. Ele cria privilégios e gera injustiças. Está, portanto, ferindo o direito de outras pessoas. E, na minha opinião, não pode e não deve continuar.
Esse negócio de discriminação dos negros é algo que realmente não entendo. Nasci e cresci em um país em que todas as raças convivem misturadas. Não há, para mim, diferença entre um negro, um japonês ou um alemão. O que há é a diferença entre a pessoa que age corretamente e a que age de forma errada. Logo, discriminação racial não é um assunto sobre o qual eu possa falar, principalmente na {ren­te do senhor, um português que viveu anos da exploração dos negros de Angola, e que só deixou a África quando Por­tugal perdeu o poder. Passemos por cima deste item, portanto.
Agora, se o senhor quer saber se tenho procuração para falar em nome da minha turma, aviso que não, mas tenho um abaixo-assinado que vale muito mais. E eu não precisa­ria nem deste abaixo-assinado porque vivemos num país democrático, onde está assegurado o direito de questionar qualquer abuso de poder. A ditadura acabou há dois anos, senhor diretor. Sinto muito ter que ser o anunciador desta triste novidade.
Ah, mas existem ainda algumas regiões dominadas por Portugal. Quem sabe o senhor não encontre nelas ó ambi­ente propício para exercer a opressão?
Cordialmente,
Miguel Sanches Neto
(NETO, Miguel Sanches. Chove sobre a minha infância. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 194-5.)


2 comentários:

raquel disse...

vamos iniciar este 2009 com muita correspondência: de idéias e ideais!
Raquel

Jayme Ferreira Bueno disse...

É, deve ser mesmo um ano pleno, principalmente, de ideais. Quanto às ideias, que já perderam até o acento, terei de me esforçar muito.