sábado, 3 de abril de 2010

SOBRE O HAICAI - ENSAIO DE OCTAVIO PAZ

Publicado por Massao Ohno/Roswitha Kempf, 1980

É um lugar comum dizer que a primeira impressão que produz qualquer contato, ainda que o mais distraído e casual, com a cultura do Japão é a estranheza. Só que, ao contrário do que se pensa geralmente, este sentimento não provém tanto de nos sentirmos diante de um mundo di¬ferente quanto de nos darmos conta de que estamos dian¬te de um universo auto-suficiente e fechado sobre si mesmo. Organismo ao qual não falta nada, como essas plantas do deserto que segregam seu próprio alimento, o Japão vive de sua própria substância. Poucos povos criaram um estilo de vida tão inconfundível. E, no entanto, muitas das instituições japonesas são de origem estrangeira. A moral e a filosofia política de Confúcio, a mística de Chuang-Tseu, a etiqueta e a caligrafia, a poesia de Po-Chu-i e o Livro da piedade filial, a arquitetura, a escultura e a pintura dos Tang e dos Sung, modelaram os japoneses durante séculos. Graças a esta influência chinesa, o Japão conheceu também as especulações de Nagarjuna e outros grandes metafísicos do budismo Mahayana e as técnicas de meditação dos hindus.
A importância e o número de elementos chineses - ou previamente passados pelo crivo da China – não impedem e até acentuam o caráter único e singular da cultura japonesa. Várias razões explicam esta aparente anomalia. Em primeiro lugar, a absorção foi muita lenta: inicia-se nos primeiros séculos da era cristã e não termina senão quando se adentra na época moderna. Em segundo lugar, não se trata de uma influência sofrida, mas sim livremente escolhida. Os chineses não levaram sua cultura ao Japão; tampouco, exceto durante as malogradas invasões mongólicas, quiseram impô-la pela força. Os próprios japoneses enviaram embaixadores e estudantes, monges e mercadores à Coréia e à China para que estudassem e comprassem livros e obras de arte ou para que contratassem artesãos, professores e filósofos. Assim, a influência exterior jamais pôs em perigo o estilo de vida nacional. E cada vez que apareceu um conflito entre o próprio e o alheio, encontrou-se uma solução feliz, como no caso do budismo, que pode conviver com o culto nativo. A admiração que os japoneses sempre professaram pela cultura chinesa, não os levou à imitação suicida nem a desnaturalizar suas próprias inclinações. A única exceção foi, e continua sendo, a escrita. Nada mais alheio à índole da língua japonesa que o sistema ideográfico dos chineses; e ainda nisto encontrou-se um método que combina a escrita fonética com a ideográfica e que talvez torne desnecessária essa reforma que é pregada por muitos estrangeiros com mais apressuramento que bom senso.
A literatura é o exemplo mais alto da naturalidade com que os elementos próprios conseguiram triunfar sobre os modelos estranhos. A poesia, o teatro e o romance são criações realmente japonesas. Apesar da influência dos clássicos chineses, a poesia nunca perdeu, nem nos momentos de maior debilidade, essas características - brevidade, clareza do desenho, mágica condensação - que a situam, precisamente, no extremo contrário da chinesa. Pode-se dizer o mesmo do teatro e do romance. Em troca, a especulação filosófica, o pensamento puro, o poema longo e a história não parecem ser gêneros propícios ao gênio japonês.
No início do século V é introduzida oficialmente a escrita sínica. Pouco depois, em 760, aparece a primeira antologia japonesa, o Manyoshu ou Coleção das dez mil folhas. Trata-se de uma obra de rara perfeição, da qual estão ausentes os titubeios de uma língua que se busca.
A poesia japonesa inicia-se com um fruto de maturidade. Para encontrar acentos mais espontâneos e populares, é preciso esperar até Bashô. No final do século VIII a Corte Imperial se translada de Nara para Heian-Kio (a atual Kioto). Como a antiga capital, a nova foi traçada conforme o modelo da dinastia chinesa então reinante. Na primeira parte desse período acentua-se a influência chinesa, mas desde o princípio do século X a arte e a literatura produzem algumas de suas obras clássicas. Trata-se de uma época de brilho excepcional, da qual temos dois documentos extraordinários: um diário e um romance. Ambos são obras de duas damas da Corte: as senhoras Murasaki Shikubi e Sei-Shonagon.
Bashô e o hai-kai
A poesia japonesa não conhece a rima nem a versificação acentual e seu recurso principal, como ocorre com a poesia francesa, é a medida silábica. Essa limitação não é uma pobreza, pois o japonês é rico em onomatopéias, aliterações e jogos de palavras que são também combinações insólitas de sons. Todo poema japonês está composto por versos de sete e cinco sílabas. A forma clássica consiste em um poema curto - waka ou tanka - de trinta e uma sílabas, dividido em duas estrofes: a primeira de três versos (5, 7 e 5 sílabas) e a segunda de dois (ambos de 7 síla¬bas). A própria estrutura do poema permitiu, desde o princípio, que dois poetas participassem na criação de um poema: um escrevia as três primeiras linhas e o outro as duas últimas. Logo, em lugar de um só poema, começaram a escrever séries inteiras, ligados tenuemente pelo tema da estação. Estas séries de poemas em cadeia foram chamadas renga ou renku. O gênero leve, cômico ou epigramático foi chamado de renga hai-kai e o poema inicial, hokku. Bashô praticou com seus discípulos e amigos,dando-lhe novo sentido, a arte do renga hai-kai ou cadeia de poemas, antecipando-se assim à profecia de Lautréamont e a uma das tentativas do surrealismo: a criação poética coletiva.
O poema solto, desprendido do renga hai-kai, começou a ser chamado haiku, palavra composta de hai¬kai e hokku. Um haiku é um poema de 17 sílabas e três versos: 5, 7 e 5. Bashô não inventou esta forma. Tampouco a alterou. Simplesmente transformou seu sentido. Quando começou a escrever, a poesia tinha se convertido num passatempo: poema queria dizer poesia cômica, epigrama ou jogo de sociedade. Bashô recolhe esta nova linguagem coloquial e com ela busca o mesmo que os antigos: o instante poético. O haiku converte-se na anotação rápida, verdadeira recriação, de um momento privilegiado: exclamação poética, caligrafia, pintura e escola de meditação, tudo junto. Discípulo do monge Buccho - e ele mesmo meio ermitão que alterna poesia com meditação - o haiku de Bashô é exercício espiritual. A filosofia zen-budista reaparece em sua obra como reconquista do instante. Ou melhor, como abolição do instante. E provavelmente o gênio de Bashô esteja em ter descoberto que, apesar de sua aparente simplicidade, o haiku (ou hai-kai) é um organismo poético muito complexo. Sua própria brevidade obriga o poeta a significar muito dizendo o mínimo.
De um ponto de vista formal, o hai-kai divide-se em duas partes. Uma, da condição geral e da situação temporal e espacial do poema (outono ou primavera, meio-dia ou entardecer, uma árvore ou uma pedra, a lua ou um rouxinol); outra, relampejante, deve conter um elemento ativo. Uma descritiva e quase enunciativa; a outra, inesperada. A percepção poética surge do choque entre ambas. A índole mesma do hai-kai é favorável a um humor seco, nada sentimental, e aos jogos de palavras, onomatopéias e aliterações, recursos constantes de Bashô, como também de seus continuadores, Buson e Issa. Arte anti-intelectual, sempre concreta e anti-literária, o hai-kai é uma pequena cápsula carregada de poesia capaz de fazer saltar a realidade aparente. Um poema de Bashô - que tem resistido a todas as traduções e que dou aqui numa inepta versão - talvez esclareça o que quero dizer:
Sobre o tanque morto
um ruído de rã
submergindo.
Assim nos deparamos com uma quase prosaica enunciação de fatos: o tanque, o salto da rã, o ruído da água. Nada menos “poético”: palavras comuns e um fato insignificante. Bashô nos deus simples esboços, como se nos mostrasse com o dedo duas ou três realidades desconexas que, no entanto, têm um “sentido” que cabe a nós descobrir. O leitor deve recriar o poema. Na primeira linha encontramos o elemento passivo: o tanque morto e seu silêncio. Na segunda, a surpresa do salto da rã que rompe a quietude. Do encontro destes dois elementos deve brotar a iluminação poética. E esta iluminação consiste em voltar ao silêncio do qual partiu o poema, só que agora carregado de significação. A maneira da água que se expande em círculos concêntricos, nossa consciência deve expandir-se em ondas sucessivas de associações. O pequeno hai-kai é um mundo de ressonância, ecos e correspondências:
Trégua de vidro:
o canto da cigarra
perfura rochas.
A paisagem não pode ser mais nítida. Meio-dia num lugar deserto: o sol e as pedras. A única coisa viva no ar seco é o rumor das cigarras. Há um grande silêncio. Tudo está quieto e nos coloca diante de algo que não podemos nomear. A natureza se apresenta para nós como algo concreto e, ao mesmo tempo, inaceitável, que rechaça qualquer compreensão. O canto das cigarras se funde como calar das rochas. E nós também ficamos paralisados e, literalmente, petrificados. O hai-kai é satori.
O mar já escuro:
os gritos dos patos
apenas brancos.

Aqui predomina a imagem visual: o branco brilha debilmente sobre o dorso escuro do mar. Porém não é a plumagem dos patos nem a crista das ondas mas, sim, os gritos dos pássaros o que, estranhamente, é branco para o poeta. Em geral, Bashô prefere alusões mais sutis e contrastes mais velados:
Este caminho
ninguém já o percorre,
salvo o crepúsculo.
O hai-kai não é somente poesia escrita - ou, mais exatamente, desenhada - mas sim poesia vivida, experiência poética recriada. Com imensa delicadeza, Bashô não nos diz tudo: limita-se a nos entregar alguns elementos, o suficiente para acender -a chispa. É um convite à viagem, uma viagem que devemos fazer com nossas próprias pernas, como ele mesmo diz.
Os diários de viagem são um gênero muito popular na literatura japonesa. Bashô escreveu cinco diários de viagem, cadernos de esboços, impressões e apontamentos. Estes diários são exemplos perfeitos de um gênero em voga na época de Bashô e do qual ele é um dos grandes mestres: o haibun, texto em prosa que rodeia, como se fossem pequenas ilhas, os hai-kais. Poemas e paisagens em prosa se completam e reciprocamente se iluminam. O melhor desses diários, segundo a opinião geral, é o famoso Oku¬no-Hoso-Michi (Sendas de Oku). Neste pequeno caderno, feito de velozes desenhos verbais e súbitas alusões - signos de inteligência que o autor troca com o leitor – a poesia se mistura à reflexão, o humor à melancolia, a anedota à contemplação. É difícil ler um livro, e mais ainda quando quase todo seu sabor perdeu-se na tradução, que não nos ofereça apoio algum e que se desenvolva, como uma sucessão de paisagens. Talvez seja preciso lê-lo como se olha o campo: sem prestar muita atenção ao princípio, percorrendo com olhar distraído a colina, as árvores, o céu e suas nuvens, as pedras... Súbito nos detemos diante de uma pedra qualquer, da qual não podemos apartar a vista e então conversamos, por um instante sem medida, com as coisas que nos rodeiam. Neste livro de Bashô não acontece nada, salvo o sol, a chuva, as nuvens, algumas cortesãs, uma menina, outros viajantes. Não acontece nada, exceto a vida e a morte:
É primavera:
a colina sem nome
por entre a névoa.

A idéia da viagem - uma viagem das nuvens desta existência em direção às nuvens da outra - está presente em toda a obra de Bashô.De uma forma voluntariamente anti-heróica, a poesia de Bashô nos chama para uma aventura verdadeiramente importante: a de nos perdermos no cotidiano para encontrar o maravilhoso. Viagem imóvel, ao término da qual nos encontramos conosco mesmo: o maravilhoso é nossa verdade humana. Em três versos o poeta insinua o sentido deste encontro:
Um relâmpago
e o grito da garça
perdido no escuro.
O grito do pássaro funde-se com o relâmpago e ambos desaparecem na noite. Um símbolo da morte? A poesia de Bashô não é simbólica. A noite é a noite e nada mais. Ao mesmo tempo, é algo mais que a noite, porém um algo que, rebelde à definição, recusa-se a ser nomeado. Se o poeta o nomeasse, se evaporaria. Não é o rosto escondido da realidade; ao contrário, é seu rosto de todos os dias... e é aquilo que não está em rosto algum. O hai¬kai é uma crítica da realidade. Em toda realidade existe algo mais do que aquilo que chamamos realidade. Simultaneamente, é uma critica da linguagem:
Admirável
aquele que diante do relâmpago
não diz: a vida foge.

Crítica do lugar-comum, mas também crítica à nossa pretensão de identificar o significar e o dizer. A linguagem tende a dar sentido a tudo o que vemos e uma das missões do poeta é fazer a crítica do sentido. E fazê-la com as palavras, instrumentos e veículos do sentido. Se dizemos que a vida é curta como o relâmpago, não só repetimos um lugar-comum como também atentamos contra a originalidade da vida, contra aquilo que efetivamente a faz única. A verdade original da vida é sua vivacidade e essa vivacidade é consequência de ser mortal, finita: a vida está tecida de morte. Porém, ao dizer isso, convertemos em dois conceitos, vida e morte, a vivaz e fúnebre unidade vida-morte. Há uma linguagem que diga essa unidade sem dizê-la? Há, o hai-kai: uma palavra que é a crítica da realidade, uma realidade que é a burla oblíqua do significado. O hai-kai de Bashô nos abre as portas de satori: sentido e falta de sentido, vida e morte, coexistem. Não é tanto a anulação dos contrários nem sua fusão como uma suspensão do ânimo. Instante da exclamação ou do sorriso: a poesia já não se distingue da vida, a realidade reabsorve a significação. A vida não é nem longa nem curta mas é como o relâmpago de Bashô. Esse relâmpago não nos avisa de nossa mortalidade; sua mesma intensidade de luz, semelhante à intensidade verbal do poema, nos diz que o homem não é unicamente escravo do tempo e da morte, mas que, dentro de si, leva outro tempo. E a visão instantânea desse outro tempo chama-se poesia - crítica da linguagem e da realidade, crítica do tempo. A subversão do sentido produz uma reversão do tempo: o instante do hai-kai é incomensurável. A poesia de Bashô - esse homem frugal e pobre que escreveu já entrado em anos e que perambulou por todo o Japão dormindo em ermidas e pousada populares, esse reconcentrado que contemplava longamente uma árvore e um corvo sobre a árvore, o brilho da luz sobre uma pedra, esse poeta que depois de remendar suas roupas surradas lia os clássicos chineses, esse silencioso que falava nos caminhos com os lavradores e as prostitutas, os monges e as crianças - é algo mais que uma obra literária. E um convite para viver verdadeiramente a vida e a poesia. Duas realidades inseparáveis e que, no entanto, jamais se fundem inteiramente: o grito do pássaro e a luz do relâmpago.