quarta-feira, 29 de setembro de 2010

CAIM, DE JOSÉ SARAMAGO

1. CAIM NA BÍBLIA
Caim, o primogênito de Adão e Eva, ao matar seu irmão Abel, torna-se o primeiro homicida da história da humanidade. Por esse crime, quando Deus ainda aparecia e conversava diretamente com as suas criaturas, apareceu ao assassino e cobrou dele contas do irmão. Caim, sem poder dar-lhe uma justa explicação, pois o seu crime fora meramente por ciúme de seu irmão - este recebera mais atenção do Senhor pelas oferendas que devotara ao Criador, quando as ofertas dele, Caim, foram pouco apreciadas. Então, o Senhor, dirigindo-se a Caim, amaldiçoou-o, dizendo: “Agora, pois, serás maldito sobre a terra, que abriu a sua boca e recebeu da tua mão o sangue do teu irmão. Quando a cultivares, ela não te dará os seus frutos; serás vagabundo e fugitivo sobre a terra”. (Gên., IV, 10-13). Em cumprimento de sua maldição, “Caim tendo-se retirado de diante da face do Senhor, andou errante sobre a terra”. (Gên., IV, 16).
Desde então, com base em Caim e Abel, tem-se atribuído às ocupações de ambos alguns significados: Caim inicialmente dedicou-se à agricultura, profissão menos valorizada pelo Senhor; Abel, ao contrário, era pastor, o que o fez sobressair aos olhos do Senhor. Com a maldição de ter que vagar pelo mundo, Caim abandonou o cultivo, ocupação que exigia a fixação a determinado lugar, e tornou-se assim o primeiro andarilho sobre a face da terra, o primeiro “turista”.
2. CAIM NA FICÇÃO
Caim, alimentado pelo ciúme e atormentado pela maldição, tem sido um dos grandes temas da literatura. Personalidade complexa, como fratricida ou como símbolo do eterno viajante, Caim sai do texto bíblico para figurar em páginas de inúmeras obras literárias.
Recentemente, José Saramago lançou mais uma de suas polêmicas obras, exatamente com o título Caim. Como já fizera em O Evangelho segundo Jesus Cristo, o prêmio Nobel de Literatura volta-se agora para o Velho Testamento, lá para o Gênesis, início de tudo. Recontando o texto bíblico à sua maneira, Saramago vai temperando a sua narrativa com fatos relevantes da Bíblia enxertados com passagens fictícias, para conferir-lhe aquela ironia e o gosto por romper velhas tradições, quer das estruturas sociais, quer das religiosas.
Saramago visivelmente faz de Caim a personagem preferida, não só pelo título com que nomeia a obra, mas pelo desenrolar da narrativa. Para ele Abel chega a merecer a morte. Vejam-se os textos abaixo:
1.
E houve o dia em que adão pôde comprar um pedaço de terra, chamar-lhe sua e levantar, encostada a uma colina, uma casa de toscos adobes, aí onde já poderiam nascer os seus três filhos, caim, abel e set, todos eles, no momento próprio das suas vidas, gatinhando entre a cozinha e o salão. E também entre a cozinha e o campo, porque os dois mais velhos, quando já cresciditos, com a ingénua astúcia da sua pouca idade, usavam de todos os pretextos válidos e menos válidos para que o pai os levasse consigo, montados no burro da família, para o seu local de trabalho.
Cedo se viu que as vocações dos dois pequenos não coincidiam. Enquanto Abel preferia a companhia das ovelhas e dos cordeiros, as alegrias de Caim iam todas para as enxadas, as forquilhas e as gadanhas, um, fadado para abrir caminho na pecuária, outro, para singrar na agricultura. Há que reconhecer que a distribuição da mão-de-obra doméstica era absolutamente satisfatória, uma vez que cobria por inteiro os dois mais importantes sectores da economia da época.
2.

Desde a mais tenra infância Caim e Abel haviam sido os melhores amigos, a um ponto tal que nem irmãos pareciam, aonde ia um, o outro ia também, e tudo faziam de comum acordo. O senhor os quis, o senhor os juntou, assim diziam na aldeia as mães ciumentas, e parecia certo. Até que um dia o futuro entendeu que já era hora de se apresentar. Abel tinha o seu gado, Caim o seu agro, e, como mandavam a tradição e a obrigação religiosa, ofereceram ao senhor as primícias do seu trabalho, queimando Abel a delicada carne de um cordeiro e Caim os produtos da terra, umas quantas espigas e sementes. Sucedeu então algo até hoje inexplicado. O fumo da carne oferecida por Abel subiu a direito até desaparecer no espaço infinito, sinal de que o senhor
aceitava o sacrifício e nele se comprazia, mas o fumo dos vegetais de Caim, cultivados com um amor pelo menos igual, não foi longe, dispersou-se logo ali, a pouca altura do solo, o que significava que o senhor o rejeitava sem qualquer contemplação. Inquieto, perplexo, Caim propôs a Abel que trocassem de lugar, podia ser que houvesse ali uma corrente de ar que fosse a causa do distúrbio, e assim fizeram, mas o resultado foi o mesmo. Estava claro, o senhor desdenhava Caim. Foi então que o verdadeiro carácter de Abel veio ao de cima. Em lugar de se compadecer do desgosto do irmão e consolá-lo, escarneceu dele, e, como se isto ainda fosse pouco, desatou a enaltecer a sua própria pessoa, proclamando-se, perante o atónito e desconcertado Caim, como um favorito do senhor, como um eleito de deus. O infeliz Caim não teve outro remédio que engolir a afronta e voltar ao trabalho. A cena repetiu-se, invariável, durante uma semana, sempre um fumo que subia, sempre um fumo que podia tocar-se com a mão e logo se desfazia no ar. E sempre a falta de piedade de Abel, os dichotes de Abel, o desprezo de Abel.
3.

Um dia Caim pediu ao irmão que o acompanhasse a um vale próximo onde era voz corrente que se acoitava uma raposa e ali, com as suas próprias mãos, o matou a golpes de uma queixada de jumento que havia escondido antes num silvado, portanto com aleivosa premeditacão. Foi nesse exacto momento, isto é, atrasada em relação aos acontecimentos, que a voz do senhor soou, e não só soou ela como apareceu ele. Tanto tempo sem dar notícias, e agora aqui estava, vestido como quando expulsou do jardim do éden os infelizes pais destes dois. Tem na cabeça a coroa tripla, a mão direita empunha o ceptro, um balandrau de rico tecido cobre-o da cabeça aos pés. Que fizeste com o teu irmão, perguntou, e Caim respondeu com outra pergunta, Era eu o guarda-costas de meu irmão, Mataste-o, Assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu daria a vida pela vida dele se tu não tivesses destruído a minha...

terça-feira, 14 de setembro de 2010

PROFESSOR JOÃO BAPTISTA COBBE – Depoimento de um aluno

João Baptista Cobbe em foto da formatura no curso de Direito da então Universidade do Paraná, nos anos 50.


1 Introdução

Inicialmente, digo que eu fui um dos felizardos meninos que passaram por suas aulas de Português e de Latim no Colégio Diocesano de Santa Cruz, em Castro - Paraná, nos famosos anos dourados de 1950.

Nos anos de 1940 e 1950, o Colégio Diocesano de Santa Cruz, em Castro, pertencente à Diocese de Ponta Grossa, era parâmetro de bom ensino e principalmente de boa educação em todo sudeste e sul do Brasil. Para ele, acorriam alunos de todo o interior e mesmo da capital de São Paulo, de Minas, do próprio Paraná, enfim de diferentes estados do Brasil. A maior parte desses alunos vinha como alunos internos, outros que tinham parentes, ou que se hospedavam em velhas pensões, ou em casas que alugavam quartos, permaneciam como externos.

Eu, vindo do interior do próprio município de Castro, de uma localidade chamada Cerrado do Guararema, permaneci como externo, inicialmente morando com uma família que havia morado no velho Cerrado e agora se encontrava com comércio estabelecido na cidade sede do município. Mais tarde, meus pais construíram uma pequena casa de madeira em uma vila da cidade, e passei a morar inicialmente com uma irmã e um primo, depois com meus próprios pais.

Foi assim que pude cursar o ginásio e o científico no famoso Colégio e ter o professor Cobbe como um dos principais educadores. Posso afirmar que ele era o preferido por toda a turma.

2 Professor João Baptista Cobbe

No início do mês de março de 1950, quando iniciaram as aulas no Colégio, aguardávamos no pátio, quando soou uma sirene. Formamos fila de acordo com a série. Nós, os novatos, éramos instruídos pelos inspetores, geralmente alunos internos que já cursavam o científico, e recebiam uma espécie de bolsa-escola, para colaborar com a disciplina do Colégio.

Quem veio ao topo da escadaria para receber a turma de calouros foi o Prof. Cobbe. Portanto, ele foi o meu primeiro professor do Ginásio e um dos principais pela minha vida toda. Foi com ele que aprendi a gostar ainda mais de Português e receber lições de Latim, que já me chamava a atenção quando na Igreja Matriz de Castro, lia num pórtico: Ego sum panis vitae. Havia outras inscrições, mas essa era a que mais me chamava a atenção.

Brincando pelo pátio do Colégio, fui aos poucos encontrando placas gravadas no cimento com inscrições, como Ad perpetuam rei memoriam e Ad majorem Dei gloriam. Depois, fiquei sabendo que era o Prof. Cobbe quem reproduzia aquelas frases . Ele estudara em Seminário do estado de Santa Catarina e lá aprendera a língua do Lácio e entrara em contato com tais frases.

As aulas continuavam, para mim, como um encantamento. Muitos dos colegas talvez não dessem o valor que eu dava, porque eu sabia o sacrifício que meus pais tão pobres faziam para me manter no curso ginasial. Por isso, muitos tentavam brincadeiras nas aulas, mas o Prof. Cobbe sem usar de nenhum método ríspido para evitar a indisciplina, conseguia de modo tranquilo dominar a turma e sempre prosseguir em suas aulas.

Terminamos o ginásio e já no curso científico não tivemos mais o Prof. Cobbe como nosso professor. Vieram outros competente e também amigos, como o seu colega Prof. Lourival Leite de Carvalho, que passou a dar para nós aulas de Literatura Brasileira e Literatura Portuguesa. Completava-se, assim, a minha formação no que se poderia chamar um proto-curso de Letras.

Mais tarde, também me tornei professor e procurei fazer como fazia aquele que eu erigira como professor e mestre, sempre tranquilo, compreensivo, competente. Procurava seguir o seu exemplo. E fui cursar Letras, graduação, especialização, mestrado e doutorado, mas as raízes estavm firmes lá nas aulas do Prof. Cobbe.

2 Novos rumos profissionais de João Baptista Cobbe

O Prof. Cobbe foi para Curitiba terminar o seu curso de Direito, que já havia começado. Mais tarde, seria o grande advogado, o vereador da cidade de Castro e o exemplar Promotor de Justiça por várias comarcas do Paraná: Castro, Jaguariaíva, Piraí do Sul, Tibagi, Arapongas, Mallet, Cascavel e Curitiba.

Em consequência da sua atuação, várias homenagens foram-lhe prestadas por câmaras municipais das cidades por onde passara como Promotor ou em outra função pública. Em Cascavel, assumiu papel de destaque na sociedade da grande cidade que surgia na terra ainda poeirenta do oeste do estado. Foi o fundador e presidente do Automóvel Clube de Cascavel; sócio-fundador do Cascavel Country; presidente do Tuiuti Esporte Clube. Em Castro, sua terra natal, recebeu o título de Cidadão Benemérito.

Depois foi atuante administrador público. Foi superintendente do novo IPE – Instituto de Previdência e Assistência do Paraná, atualmente, hoje, embora em formato diferente, o Paraná-Previdência; diretor-presidente da Famepar - Fundação de Assistência aos Municípios do Paraná , assessor da vice-governança do Estado do Paraná – governo Jayme Canet Junior; assessor da Secretaria de Justiça – governo Ney Braga; secretário e desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná; diretor geral da Corregedoria da Justiça do Tribunal de Justiça Secretaria de Administração do Paraná, além de outros inúmeros cargos públicos de relevância funcional e política.

3 O reencontro com o Professor Cobbe

Inicialmente o reencontro se deu por telefone por intermédio de uma então minha aluna no curso de Letras na PUCPR. Acredito que tenh sido pelo início do ano de 1987. Em uma noite, recebi um telefonema. A pessoa identificou-se dizendo que ela e sua filha eram minhas alunas na PUCPR e que soube pelo marido, que ele me conhecera. Ela era esposa de João Baptista Cobbe. Naquela, noite, falei com ele rapidamente por telefone.

Logo depois, creio que ainda no mesmo ano de 1987, quando eu tratava do andamento de minha aposentadoria no magistério estadual, fui até a Secretaria de Administração, que então funcionava no Edifício projetado por Oscar Niemeyer, inicialmente para sede do Instituto de Educação do Paraná e que hoje foi integrado em um novo projeto que constitui o MON – Museu Oscar Niemeyer. Lá, fui recebido por João Baptista Cobbe, um dos assessores da Secretaria e que me atendeu com a solicitude própria de uma pessoa educada, interessada e competente.

4 Um reencontro atual com a memória de João Baptista Cobbe

Há poucos dias, em uma agência bancária, casualmente, encontrei-me com uma senhora que se apresentou e me lembrou que era Hilda Souza Cobbe, minha ex-aluna no curso de Letras, e agora viúva de João Baptista Cobbe. A notícia chocou-me. O velho professor, talvez o único que ainda vivia daqueles professores do Colégio Diocesano de Santa Cruz, de Castro, lá do início dos anos 50.

Comecei a indagar sobre o acontecimento e fiquei sabendo que já haviam se passado aproximadamente cinco meses da morte do nosso professor. Faleceu em 4 de abril deste ano de 2010. Estávamos a 10 de setembro. Viveu 85 anos férteis de trabalho, dedicação à profissão e aos cargos públicos que exerceu e principalmente à família. Deixa uma lacuna na vida dos amigos, uma perda inconsolável para famliares, uma saudade para todos nós que o conhecemos.

A vida, como sabemos, é assim. O poeta português Fernando Pessoa, na voz do heterônimo Ricardo Reis, avisa-nos:

Talvez que já nos toque
No ombro a mão, que chama
À barca que não vem senão vazia


Essa “Barca que não vem senão vazia” costuma levar da terra os bons. Virão outros, mas nenhum igual. Esses nunca serão como aqueles que partem e nos deixam todos órfãos de sua companhia.

5. Homenagem in memoriam

Em homenagem ao professor que me despertou para o Latim e para as línguas clássicas, esta homenagem. Que aqui fiquem gravadas algumas inscrições latinas de que tanto ele gostava:

- Que a sua vida tenha servido Ad maiorem Dei Gloriam.
- Como disse Cristo em suas últimas palavras na cruz: Consummatum est!
- Agora, que sua vida findou, que seu corpo Requiescat in pace.
- Em oração, peço ao bondoso Pai: Requiem aeternam dona eis, Domine.

Concluindo este depoimento, deixo, como minhas últimas palavras, o seguinte: graduei-me em Letras Clássicas – Bacharelato, em 1959 e Licenciatura, em 1960 e fiz Especialização em Literatura Brasileira em 1965, esses cursos na Universidade Federal do Paraná. Mais tarde, em 1979, completei o Mestrado em Teoria Literária na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Finalmente, doutorei-me em Letras, em 1983, na USP – Universidade de São Paulo, com estágio em Portugal, junto à Biblioteca Nacional de Lisboa.
Tudo isto para declarar que, com todos esses cursos, a origem, os fundamentos mais profundos do meu conhecimento da Língua Portuguesa e das Letras e também o amor ao estudo se encontram lá nos anos de 1950, no Colégio Diocesano de Santa Cruz, de Castro, nas aulas do Prof. Cobbe.



°°°

Alguns dados biográficos:
- João Batista Cobbe nasceu em Castro, em 24 de janeiro de 1925, filho de Marcemino Cobbe e Maria Rosa Nogaroli Cobbe. Cursou o primário no Colégio José e no Colégio Santa Cruz, ambos da cidade de Castro. Fez o curso ginasial no Seminário Arquidiocesano, em Brusque, Santa Catarina. O Seminário Arquidiocesano de Brusque é também conhecido por Seminário Nossa Senhora de Lourdes Azambuja-Brusque. Pertencia à Arquidiocese de Florianópolis.
João Baptista Cobbe frequentou o Seminário nos anos 40, quando era reitor o Pe. Afonso Nieheus. Depois, vieram outros, como o então padre Jaime de Barros Câmara, que mais tarde se tornaria o célebre Arcebispo do Rio de Janeiro, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
- João Baptista Coaabbe prestou o sercviço militar em Castro. Mais tarde, cursou Direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
- Profissionalmente, devido à sua origem modesta, exerceu diversas atividades profissionais, desde trabalhador em obras, sacristão da Matriz de Castro, secretário do Colégio Diocesano de Santa Cruz. No magistério, foi professor de latim, português e história, no Ginásio. No jornalismo, foi colaborador do importante jornal da época na região, o Castro-Jornal.
- Bacharel em Direito, exerceu a profissão como advogado e foi aprovado em concurso público no Ministério Público. Em 1956, assumiu como Promotor de Justiça, cargo que exerceu em Castro, Jaguariaíva, Piraí do Sul, Tibagi, Arapongas, Mallet, Cascavel e Curitiba.
- Em Cascavel, de 1961 a 1973, exerceu o cargo de Promotor de Justiç e foi também professor de Direito Usual e Legislação Aplicada no Colégio Marista de Cascavel. Na sociedade da jovem cidade que brotava pujante no oeste do Paraná, exerceu diversos cargos de relevância social e cultural e esportiva.
- Em cargos públicos administrativos, já em Curitiba, atuou em vários órgãos, como governança do estado, secretarias, institutos e fundações estaduais e também no judiciário paranaense.

Faleceu em paz ao lado de seus familiares, no dia 4 de abril de 2010.

sábado, 11 de setembro de 2010

MEU CARO CHICO Texto de Paulo Camargo

Ilustração: Felipe Lima
Meu caro Chico
“As dezenas, senão centenas de músicas que conheço de cor e salteado, têm o superpoder de me devolver a mim. E isso não tem preço.”

Publicado em 11/09/2010 pcamargo@gazetadopovo.com.br

A idolatria costuma estar associada à adolescência. Adultos, quando nutrem uma paixão tão intensa por alguém fora de seu alcance, correm o risco de parecer pueris, em descompasso com a idade que têm.
Mesmo assim, não são poucos os que carregam essa pulsão dos verdes anos à maturidade. Talvez porque seja uma forma de nos reconectarmos com instâncias menos cínicas. E assim, resgatar um pouco daquilo que um dia fomos e, de certa forma, mantemos engavetado em nome da dita maturidade.
Com o lançamento, pela editora Abril, de uma caprichada coleção que inclui quase toda a discografia oficial de Chico Buarque, em formato de CDs acompanhados de livretos, vi-me frente a um dilema dos mais prosaicos: comprar ou não discos que, em sua grande maioria, já tenho, à medida que chegam todas as semanas às bancas e livrarias. Existe o desejo, confesso, mas também o pé no freio, a cabeça que diz: “Não, bobagem”.
Esse conflito, aparentemente tolo, me fez pensar sobre por que gosto tanto do Chico. E, depois de enumerar vários motivos, todos muito racionais – como a qualidade e a importância histórica das composições e a riqueza poética das letras –, caiu a ficha.
As dezenas, senão centenas de músicas que conheço de cor e salteado, têm o superpoder de me devolver a mim. E isso não tem preço.
Quando ouço, por exemplo, pérolas como “O Que Será (À Flor da Terra)”, “Passaredo” ou “A Noiva da Cidade”, me vejo aos 11, 12 anos, contando os cruzeiros para comprar Meus Caros Amigos na filial da rede Rei do Disco em um velho shopping de Copacabana, no Rio de Janeiro.
Não tinha ideia, pelo menos não à primeira audição em uma radiola Grundig, que a letra de “Meu Caro Amigo”, composta em parceria com Francis Hime, falava do Brasil sob a bota do governo militar.
Foram necessárias algumas aulas de Português e História com professores veladamente “subversivos” para compreender o que queriam expressar versos como “Meu caro amigo me perdoe, por favor/ Se eu não lhe faço uma visita/ Mas como agora apareceu um portador/ Mando notícias nessa fita/ Aqui na terra tão jogando futebol/ Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll/ Uns dias chove, noutros dias bate sol/ Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta”.
Lembro-me do momento da revelação, o instante em que percebi que, por trás do delicioso samba de Chico e Francis, escondia-se amarga ironia. A letra era uma mensagem melancólica a amigos que (como o próprio Chico) tiveram de tirar o time de campo e deixar do país por estarem na mira da ditadura.
A idolatria, que aqui assumo sem pudores de jornalista cultural, está muito ligada à sensação, desengavetada nos últimos dias, de que ouvir Chico Buarque sempre foi, e ainda é, uma experiência estética. Algo que fratura minha rotina, de horários, obrigações, deveres e responsabilidades, e me recoloca em contato com territórios mais sensíveis.
Muitas de suas canções me provaram ao longo dos últimos 30 anos, por mais que o cotidiano por vezes me force a esquecer, que sou capaz de pensar e sentir ao mesmo tempo. São pedaços de mim.
E lá vou eu comprar a coleção da Abril.


(Paulo Camargo é editor do Caderno G. do jornal Gazeta do Povo.)
(CAMARGO, Paulo. Meu Caro Chico. Gazeta do Povo, Caderno G Idéias, 11.set.2010, p.5.)
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Faço meu o texto de Paulo Camargo.
Acabo de resolver também o meu dilema. Vou correr a um shopping comprar a nova coleção.
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Jayme Ferreira Bueno

quinta-feira, 8 de julho de 2010

A POESIA DE JOSÉ SARAMAGO

José Saramago - (1922 - 2010), escritor português, prêmio Nobel de Literatura de 1988 tornou-se conhecidíssimo por sua obra em prosa, principalmente por seus romances. Pouco se fala dele, porém, como poeta e pensador. Valoriza-se bastante também na sua biografia a ação política que desenvolveu, sempre muito polêmica e utópica, principalmente por ter abraçado o Comunismo num país bastante tradicionalista e extremamente católico.
Aqui apenas daremos uma apagada ideia do pensador e do poeta Saramago.
1. Pensamentos de Saramago
Como em tudo que fazia, José Saramago se mostra em suas frases e pensamentos o crítico agudo, o homem de extrema lucidez, uma espécie de iluminado da palavra. Como autêntico vate, antecipa, como que vaticina, acontecimentos, como fez com a sua própria morte.
A seleção dos três pensamentos seguintes baseou-se no gosto pelos temas líricos, talvez até bastante platônico. Aliás, platônico se mostra José Saramago em seus pensamentos e em muitos de seus poemas.
1.Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar.
2.Dirão, em som, as coisas que, calados, no silêncio dos olhos confessamos?
3.O espelho e os sonhos são coisas semelhantes, é como a imagem do homem diante de si próprio.

Alguém poderá obstar: são pensamentos comuns, qualquer um poderia ter pronunciado frases como essas. É verdade, mas quem disse foi José Saramago. Ele, que, muito conscientemente, também disse:
strong>Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma maneira bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratularmo-nos ou para pedir perdão, aliás, há quem diga que é isto a imortalidade de que tanto se fala.
2. A poesia de Saramago
O crítico que, ao avaliar a poesia de Saramago, afirmou que no gênero ele não estaria atualizado, pois, entre 1966 e 1975, já se escrevia em Portugal uma outra poesia, ou não percebeu, ou não valorizou que exatamente esse andar sozinho é que o tornava diferente, grande, original. O crítico justifica: : “Em comparação com o que um Ernesto de Melo e Castro, um Helberto Hélder, um Cesariny, ou mesmo os jovens saídos da “poesia 61” então publicavam ou teriam publicado nos últimos tempos, não se poderia afirmar que a produção poética de Saramago estivesse propriamente muito atualizada”.
(LOPES, João Marques. Saramago: biografia. São Paulo: Leya, 2010, p. 53).
Pode-se, em contrapartida, indagar, mesmo sem querer tirar ou diminuir a importância desses poetas e desse jovem movimento, se a poesia que produziram foi a melhor que então se fez em Portugal?.
Saramago, em alguns depoimentos se confessa admirador de José Régio e, talvez, por ele influenciado. Lembramos que Régio escreveu no poema Cântico Negro do livro Poemas de Deus e do Diabo (1925):
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Saramago jamais foi ou se mostrou um seguidor. Pelo contrário, foi sempre um autêntico inventor de mitos. Intuitivamente, seguia o que disseram os latinos: “Non ducor, duco”. De fato, Saramago não nasceu para ser conduzido, mas para conduzir. A obra poética que publicou compreende três livros:
1.Os poemas possíveis, 1966;
2.Provavelmente alegria, 1970;
3.O ano de 1993, 1975.
Há também um volume bilingue (português e italiano) de seus poemas.
Poemas:
A seleção dos nove poemas que seguem também se baseou no gosto pessoal. Procurou-se encontrar três poemas metapoéticos; outros três, mais voltados ao existencial; e finalmente três, de ordem lírica:

I série – temática: a poesia ou o poeta
1. Retrato do poeta quando jovem
Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.
2. Forja.
Forja o poema, e ruivo ardente
O metal duro da rima fragorosa,
Quero o corpo suado, incandescente,
Na bigorna sonora e corajosa,
E que a obra saída desta forja
Seja simples e fresca como a rosa
3. Eloquencia
Um verso que não diga por palavras,
Ou se palavras tem, que nada exprimam:
Uma linha no ar, um gesto breve
Que, num silêncio fundo, me resuma
A vontade que quer, a mão que escreve.

II série – Temática: existencial
1. Poema à boca fechada

Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.
2. Não me Peçam Razões...
Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.
3. No Coração, Talvez
No coração, talvez, ou diga antes:
Uma ferida rasgada de navalha,
Por onde vai a vida, tão mal gasta.
Na total consciência nos retalha.
O desejar, o querer, o não bastar,
Enganada procura da razão
Que o acaso de sermos justifique,
Eis o que dói, talvez no coração.

III – Temática: lírico-amorosa
1. Aprendamos, Amor
Aprendamos, amor, com estes montes
Que, tão longe do mar, sabem o jeito
De banhar no azul dos horizontes.

Façamos o que é certo e de direito:
Dos desejos ocultos outras fontes
E desçamos ao mar do nosso leito.
2. Intimidade
No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.
De violetas se cobre…
De violetas se cobre o chão que pisas,
De aromas de nardo o ar assombra:
Nestas recurvas áleas, indecisas,
Olho o céu onde passa a tua sombra.
3. Declaração
Não, não há morte.
Nem esta pedra é morta,
Nem morto seta o fruto que tombou:
Dá-lhes vida o abraço dos meus dedos,
Respiram na cadencia do meu sangue,
Do bafo que os tocou.
Também um dia, quando esta mão secar,
Na memória doutra mão perdurará,
Como a boca guardará caladamente
O sabor das bocas que beijou.

terça-feira, 22 de junho de 2010

A MORTE DE SARAMAGO


José Saramago feliz ao lado de sua esposa, também feliz, Pilar del Río


Pois é, amigos! Morreu Saramago.

Leiamos estas duas notícias:
1. “A Fundação José Saramago emitiu esta sexta-feira um comunicado em que informa que o Nobel português faleceu às 12:30 na sua residência de Lanzarote, em consequência de uma múltipla falha orgânica, após uma prolongada doença.
O comunicado adianta ainda que o escritor morreu ‘acompanhado pela sua família, despedindo-se de uma forma serena e tranquila’
”.

2. “O escritor Mário Cláudio afirmou esta sexta-feira que José Saramago é ‘uma figura indiscutivelmente maior das nossas letras’, considerando ‘triste e inesperada’ a sua morte.
O escritor portuense afirmou à Lusa que conhecia ‘muito bem’ José Saramago de ‘encontros internacionais’, considerando tratar-se de uma figura ‘que vai ficar por muitos e muitos anos’.‘Saramago vai durar o que durar a literatura portuguesa’, sustentou Mário Cláudio
”.

Na sexta-feira, 18 de junho, no seu refúgio da Ilha de Lanzarote, nas Canárias, morreu José Saramago. Depois de 84 anos profícuos para a literatura, para o pensamento, para a vida, nos deixa o único Prêmio Nobel de Literatura da língua portuguesa.
A vida sempre foi, para Saramago, simplesmente um oposto da morte. Declarou em entrevista a um canal de TV brasileira: “A diferença entre a vida e a morte é que antes tu estás e depois tu já não estás.”
É impressionante a lucidez com que via a chegada da morte. Na referida entrevista, que é de 2007, disse ao entrevistador algo assim: “o futuro? Estou com 84 anos, quantos anos a mais terei de vida? Três, quatro...”. Faleceu três anos depois.
Em toda a sua obra, mas especialmente em As Intermitências da Morte, de 2005, ele nos dá lições sobre a morte, a morte dele, a morte de todos nós. As lições são também, e principalmente, sobre a vida.
Na obra, refere-se a um dia particularmente diferente: “No dia seguinte ninguém morreu”. Iniciam-se, então, várias divagações sobre a vida, sobre a morte e sobre outras realidades, como o amor, que nos movem e nos atormentam. Não deixa, porém, de falar sobre a falta dessas realidades, como aconteceu com a ausência, embora temporária da morte, pois, certo dia, lá pelo sétimo capítulo do livro, ela avisa que estava de volta. E a volta da morte, agora sobre novas condições, é assustadora: “a partir da meia-noite de hoje se voltará a morrer tal como sucedia, sem protestos notório...”.
Em seguida, ela se justifica: “ofereci uma pequena amostra do que para eles seria viver para sempre...”.
Avisa, para que todos estejamos atentos, porque: “a partir de agora toda a gente passará a ser prevenida por igual e terá um prazo de uma semana para pôr em dia o que ainda lhe resta na vida”.
Esses sete dias, uma espécie de carência necessária para se colocar em dia alguns compromissos, tomarem-se algumas decisões, seriam avisados por uma carta oficialmente remetida pela Morte. Nela, de modo cortante, anucia a fatal “rescisão deste contrato temporário a que chamamos vida”.
Imagine-se, portanto, as reações daqueles que são avisados e daqueles que ainda aguardam a fatídica comunicação...

Vejam-se trechos de As Intermitências da Morte:
I. “De Deus e da morte não se tem contado senão histórias, e esta é mais uma delas.”, p. 146

II. “Por um instante a morte soltou-se a si mesma, expandindo-se até às paredes, encheu o quarto todo e alongou-se como um fluido até à sala contígua, aí uma parte de si deteve-se a olhar o caderno que estava aberto sobre uma cadeira, era a suite número seis opus mil e doze em ré maior de johann sebastian bach composta em cöthen e não precisou de ter aprendido música para saber que ela havia sido escrita, como a nona sinfonia de beethoven, na tonalidade da alegria, da unidade entre os homens, da amizade e do amor. Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte deixou-se cair de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito, e por isso é que tinha joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos escondia, e uns ombros que tremiam não se sabe porquê, chorar não será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua. Assim como estava, nem visível nem invisível, em esqueleto nem mulher, levantou-se do chão como um sopro e entrou no quarto.”, p. 158/159

III. “Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.”, p. 214

Para Saramago, mesmo uma declaração de amor, e eram muitas, à sua companheira, admiradora ímpar do homem e do escritor, tradutora, amada, Pilar del Río, haveria de ter uma referência à morte, não por morbidez, mas para ressaltar a grandeza do seu sentimento:
Se eu tivesse morrido antes de te conhecer, Pilar, teria morrido sentindo-me muito mais velho. Aos 63 anos, a minha segunda vida começou. Não posso queixar-me. As coisas que você considera importantes não são tão importantes. Eu ganhei um Prémio Nobel. E daí?

E para terminar este post, um poema de Saramago, do livro Provavelmente Alegria. 3.ed. Lisboa: Caminho, 1985. Nele, ressoa a voz do heterônimo epicurista de Pessoa, do mesmo modo como ressoava nas Odes de Ricardo Reis:

Na ilha por vezes habitada

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra em nós uma grande serenidade, /
e dizem-se as palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o sorriso de quem se reconhece /
e viajou à roda do mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.

terça-feira, 27 de abril de 2010

UM HAIKAI TRADUZIDO



Uma Cerejeira em flor e o monte Fuji.


Para a publicação deste Haikai, houve uma troca de e-mails entre mim e minha colega Professora Cristina. Seguem trechos necessários para o entendimento da origem desta postagem:

Mensagens entre mim e a professora Cristina Yukie, colega de magistério e grande amiga.

“Aguardo ansioso a tradução do hai-kai de sua (avó?). E em outra hora, posso fotografar o quadro para colocar como imagem ilustrando o que fizermos a respeito do poema. Assim, você que lê ideogramas poderá apreciar a obra de arte japonesa, que é , além de literária, também visual. Aliás, a cultura chinesa já praticava a caligrafia como arte”.

A propósito, segue o haiku traduzido de minha avó. Realmente são 5, 7 e 5 sílabas.

Tomo o kabau
tiisana koto wa
yurusesou


(Tradução literal: Protejo o amigo e é possível perdoar os pequenos ressentimentos).

Em ideogramas, escrevemos na vertical, de cima para baixo, e as linhas (versos) são contadas da direita para a esquerda.
Sabe que admiro muitíssimo a cultura chinesa também.
Os ideogramas (kanjis) foram trazidos de lá para o Japão. Depois é que desenvolvemos os outros dois silabários que só existem no japonês. O próprio budismo é uma grande herança. Há muitas riquezas partilhadas entre os povos e essa diversidade só traz crescimento”.

O MEU AMIGO
(Harue Yokowo)

Perdoei ao amigo
Pequenos ressentimentos
E eu o protejo comigo.


(Adaptação: Jayme Bueno)

“Professora Cristina, gostaria de revelar o nome de sua avó, como homenagem a ela”.

“O nome de minha avó materna é Harue Yokowo.
Ela participava de vários grupos de poetas de haikai, em São Paulo e no Paraná.
Foi uma mulher brilhante. Ficou viúva cedo, com quatro filhos. Minha mãe é a filha mais velha. Minha avó criou os filhos, formou-os todos, era exímia culinarista de pratos japoneses, além de poetisa como hobby.
Tenho muito orgulho dela e de sua trajetória de vida.
Vamos, sim, divulgar”.

(Cristina Yukie Miyaki Fuchs, a neta de Harue Yokowo, é professora de Linguística da PUCPR. Fala e escreve o japonês, idioma que também ensina em cursos especiais).
Um Templo entre Cerejeiras em flor.

Temos, portanto, um Haicai composto por uma autêntica poetisa japonesa. Embora tenha vivido no Brasil, cultivava a arte japonesa em diferentes formas de manifestação. Para japoneses, compor um Haicai, desenhar canjis (ideogramas), preparar pratos, tudo é modo de praticar a arte milenar que os acompanha sempre.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

SOBRE O HAICAI

Em um ensaio sobre o hai-kai, o pensador e literato Octavio Paz escreve:
De um ponto de vista formal, o hai-kai divide-se em duas partes. Uma, da condição geral e da situação temporal e espacial do poema (outono ou primavera, meio-dia ou entardecer, uma árvore ou uma pedra, a lua ou um rouxinol); outra, relampejante, deve conter um elemento ativo. Uma descritiva e quase enunciativa; a outra, inesperada. A percepção poética surge do choque entre ambas. A índole mesma do hai-kai é favorável a um humor seco, nada sentimental, e aos jogos de palavras, onomatopéias e aliterações, recursos constantes de Bashô, como também de seus continuadores, Buson e Issa. Arte anti-intelectual, sempre concreta e anti-literária, o hai-kai é uma pequena cápsula carregada de poesia capaz de fazer saltar a realidade aparente. Um poema de Bashô - que tem resistido a todas as traduções e que dou aqui numa inepta versão - talvez esclareça o que quero dizer:

Sobre o tanque morto
um ruído de rã
submergindo.


Esse hai-kai de Bashô, mestre dos haicaístas japoneses, é considerado paradigma do pensamento e do modo de poetar dos nipônicos. Estudado, traduzido e adaptado por diferentes poetas, tem sido divulgado por ensaístas do mundo todo, atraídos que foram pela beleza do poema e pela sensação do inesperado que ele nos causa.



(Foto - SUELY SHIBA)

Seguem algumas traduções ou adaptações:

Inicialmente, apresenta-se o mais famoso hai-kai de Bashô, em tradução literal da língua japonesa pelo escritor, poeta e pensador mexicano, prêmio Nobel de Literatura, Octavio Paz. Aqui, o poema aparece em versão do espanhol para o português de Olga Savary:

Sobre o tanque morto
Um ruído de rã
Submergindo


Em seguida, publicam-se traduções ou adaptações de vários haicaístas, uns poetas famposos, outros meros curiosos, como eu próprio:

1.Tradução de Cecília Meirelles:

Velho tanque
Uma rã mergulha
Barulho da água

2.Tradução de Paulo Leminski:

Velha lagoa
o sapo salta
o som da água


3.Tradução de Olga Savary

Ah, o velho lago.
De repente a rã no ar
e o baque na água


4.Tradução de Décio Pignatari:

VELHA LAGOA
UMA RÃ MERGULHA
UMA RÃ ÁGUÁGUA


5.Tradução de Paulo Franchetti e Elza Dói:

O velho tanque
Uma rã mergulha,
Barulho de água


6.Tradução de Estrela Ruiz Leminski:

Chuá, chuá
coach, coach
tchibum!


7.Adaptação de Jayme Bueno (eu não saberia traduzir do original):

Sobre águas paradas
A rã paira no espaço
as patas geladas


8.Adaptação - Jayme Bueno (eu não saberia traduzir do original):

Suspensa no espaço
Plástica a rã sobre as águas
Busca o seu regaço

sábado, 3 de abril de 2010

SOBRE O HAICAI - ENSAIO DE OCTAVIO PAZ

Publicado por Massao Ohno/Roswitha Kempf, 1980

É um lugar comum dizer que a primeira impressão que produz qualquer contato, ainda que o mais distraído e casual, com a cultura do Japão é a estranheza. Só que, ao contrário do que se pensa geralmente, este sentimento não provém tanto de nos sentirmos diante de um mundo di¬ferente quanto de nos darmos conta de que estamos dian¬te de um universo auto-suficiente e fechado sobre si mesmo. Organismo ao qual não falta nada, como essas plantas do deserto que segregam seu próprio alimento, o Japão vive de sua própria substância. Poucos povos criaram um estilo de vida tão inconfundível. E, no entanto, muitas das instituições japonesas são de origem estrangeira. A moral e a filosofia política de Confúcio, a mística de Chuang-Tseu, a etiqueta e a caligrafia, a poesia de Po-Chu-i e o Livro da piedade filial, a arquitetura, a escultura e a pintura dos Tang e dos Sung, modelaram os japoneses durante séculos. Graças a esta influência chinesa, o Japão conheceu também as especulações de Nagarjuna e outros grandes metafísicos do budismo Mahayana e as técnicas de meditação dos hindus.
A importância e o número de elementos chineses - ou previamente passados pelo crivo da China – não impedem e até acentuam o caráter único e singular da cultura japonesa. Várias razões explicam esta aparente anomalia. Em primeiro lugar, a absorção foi muita lenta: inicia-se nos primeiros séculos da era cristã e não termina senão quando se adentra na época moderna. Em segundo lugar, não se trata de uma influência sofrida, mas sim livremente escolhida. Os chineses não levaram sua cultura ao Japão; tampouco, exceto durante as malogradas invasões mongólicas, quiseram impô-la pela força. Os próprios japoneses enviaram embaixadores e estudantes, monges e mercadores à Coréia e à China para que estudassem e comprassem livros e obras de arte ou para que contratassem artesãos, professores e filósofos. Assim, a influência exterior jamais pôs em perigo o estilo de vida nacional. E cada vez que apareceu um conflito entre o próprio e o alheio, encontrou-se uma solução feliz, como no caso do budismo, que pode conviver com o culto nativo. A admiração que os japoneses sempre professaram pela cultura chinesa, não os levou à imitação suicida nem a desnaturalizar suas próprias inclinações. A única exceção foi, e continua sendo, a escrita. Nada mais alheio à índole da língua japonesa que o sistema ideográfico dos chineses; e ainda nisto encontrou-se um método que combina a escrita fonética com a ideográfica e que talvez torne desnecessária essa reforma que é pregada por muitos estrangeiros com mais apressuramento que bom senso.
A literatura é o exemplo mais alto da naturalidade com que os elementos próprios conseguiram triunfar sobre os modelos estranhos. A poesia, o teatro e o romance são criações realmente japonesas. Apesar da influência dos clássicos chineses, a poesia nunca perdeu, nem nos momentos de maior debilidade, essas características - brevidade, clareza do desenho, mágica condensação - que a situam, precisamente, no extremo contrário da chinesa. Pode-se dizer o mesmo do teatro e do romance. Em troca, a especulação filosófica, o pensamento puro, o poema longo e a história não parecem ser gêneros propícios ao gênio japonês.
No início do século V é introduzida oficialmente a escrita sínica. Pouco depois, em 760, aparece a primeira antologia japonesa, o Manyoshu ou Coleção das dez mil folhas. Trata-se de uma obra de rara perfeição, da qual estão ausentes os titubeios de uma língua que se busca.
A poesia japonesa inicia-se com um fruto de maturidade. Para encontrar acentos mais espontâneos e populares, é preciso esperar até Bashô. No final do século VIII a Corte Imperial se translada de Nara para Heian-Kio (a atual Kioto). Como a antiga capital, a nova foi traçada conforme o modelo da dinastia chinesa então reinante. Na primeira parte desse período acentua-se a influência chinesa, mas desde o princípio do século X a arte e a literatura produzem algumas de suas obras clássicas. Trata-se de uma época de brilho excepcional, da qual temos dois documentos extraordinários: um diário e um romance. Ambos são obras de duas damas da Corte: as senhoras Murasaki Shikubi e Sei-Shonagon.
Bashô e o hai-kai
A poesia japonesa não conhece a rima nem a versificação acentual e seu recurso principal, como ocorre com a poesia francesa, é a medida silábica. Essa limitação não é uma pobreza, pois o japonês é rico em onomatopéias, aliterações e jogos de palavras que são também combinações insólitas de sons. Todo poema japonês está composto por versos de sete e cinco sílabas. A forma clássica consiste em um poema curto - waka ou tanka - de trinta e uma sílabas, dividido em duas estrofes: a primeira de três versos (5, 7 e 5 sílabas) e a segunda de dois (ambos de 7 síla¬bas). A própria estrutura do poema permitiu, desde o princípio, que dois poetas participassem na criação de um poema: um escrevia as três primeiras linhas e o outro as duas últimas. Logo, em lugar de um só poema, começaram a escrever séries inteiras, ligados tenuemente pelo tema da estação. Estas séries de poemas em cadeia foram chamadas renga ou renku. O gênero leve, cômico ou epigramático foi chamado de renga hai-kai e o poema inicial, hokku. Bashô praticou com seus discípulos e amigos,dando-lhe novo sentido, a arte do renga hai-kai ou cadeia de poemas, antecipando-se assim à profecia de Lautréamont e a uma das tentativas do surrealismo: a criação poética coletiva.
O poema solto, desprendido do renga hai-kai, começou a ser chamado haiku, palavra composta de hai¬kai e hokku. Um haiku é um poema de 17 sílabas e três versos: 5, 7 e 5. Bashô não inventou esta forma. Tampouco a alterou. Simplesmente transformou seu sentido. Quando começou a escrever, a poesia tinha se convertido num passatempo: poema queria dizer poesia cômica, epigrama ou jogo de sociedade. Bashô recolhe esta nova linguagem coloquial e com ela busca o mesmo que os antigos: o instante poético. O haiku converte-se na anotação rápida, verdadeira recriação, de um momento privilegiado: exclamação poética, caligrafia, pintura e escola de meditação, tudo junto. Discípulo do monge Buccho - e ele mesmo meio ermitão que alterna poesia com meditação - o haiku de Bashô é exercício espiritual. A filosofia zen-budista reaparece em sua obra como reconquista do instante. Ou melhor, como abolição do instante. E provavelmente o gênio de Bashô esteja em ter descoberto que, apesar de sua aparente simplicidade, o haiku (ou hai-kai) é um organismo poético muito complexo. Sua própria brevidade obriga o poeta a significar muito dizendo o mínimo.
De um ponto de vista formal, o hai-kai divide-se em duas partes. Uma, da condição geral e da situação temporal e espacial do poema (outono ou primavera, meio-dia ou entardecer, uma árvore ou uma pedra, a lua ou um rouxinol); outra, relampejante, deve conter um elemento ativo. Uma descritiva e quase enunciativa; a outra, inesperada. A percepção poética surge do choque entre ambas. A índole mesma do hai-kai é favorável a um humor seco, nada sentimental, e aos jogos de palavras, onomatopéias e aliterações, recursos constantes de Bashô, como também de seus continuadores, Buson e Issa. Arte anti-intelectual, sempre concreta e anti-literária, o hai-kai é uma pequena cápsula carregada de poesia capaz de fazer saltar a realidade aparente. Um poema de Bashô - que tem resistido a todas as traduções e que dou aqui numa inepta versão - talvez esclareça o que quero dizer:
Sobre o tanque morto
um ruído de rã
submergindo.
Assim nos deparamos com uma quase prosaica enunciação de fatos: o tanque, o salto da rã, o ruído da água. Nada menos “poético”: palavras comuns e um fato insignificante. Bashô nos deus simples esboços, como se nos mostrasse com o dedo duas ou três realidades desconexas que, no entanto, têm um “sentido” que cabe a nós descobrir. O leitor deve recriar o poema. Na primeira linha encontramos o elemento passivo: o tanque morto e seu silêncio. Na segunda, a surpresa do salto da rã que rompe a quietude. Do encontro destes dois elementos deve brotar a iluminação poética. E esta iluminação consiste em voltar ao silêncio do qual partiu o poema, só que agora carregado de significação. A maneira da água que se expande em círculos concêntricos, nossa consciência deve expandir-se em ondas sucessivas de associações. O pequeno hai-kai é um mundo de ressonância, ecos e correspondências:
Trégua de vidro:
o canto da cigarra
perfura rochas.
A paisagem não pode ser mais nítida. Meio-dia num lugar deserto: o sol e as pedras. A única coisa viva no ar seco é o rumor das cigarras. Há um grande silêncio. Tudo está quieto e nos coloca diante de algo que não podemos nomear. A natureza se apresenta para nós como algo concreto e, ao mesmo tempo, inaceitável, que rechaça qualquer compreensão. O canto das cigarras se funde como calar das rochas. E nós também ficamos paralisados e, literalmente, petrificados. O hai-kai é satori.
O mar já escuro:
os gritos dos patos
apenas brancos.

Aqui predomina a imagem visual: o branco brilha debilmente sobre o dorso escuro do mar. Porém não é a plumagem dos patos nem a crista das ondas mas, sim, os gritos dos pássaros o que, estranhamente, é branco para o poeta. Em geral, Bashô prefere alusões mais sutis e contrastes mais velados:
Este caminho
ninguém já o percorre,
salvo o crepúsculo.
O hai-kai não é somente poesia escrita - ou, mais exatamente, desenhada - mas sim poesia vivida, experiência poética recriada. Com imensa delicadeza, Bashô não nos diz tudo: limita-se a nos entregar alguns elementos, o suficiente para acender -a chispa. É um convite à viagem, uma viagem que devemos fazer com nossas próprias pernas, como ele mesmo diz.
Os diários de viagem são um gênero muito popular na literatura japonesa. Bashô escreveu cinco diários de viagem, cadernos de esboços, impressões e apontamentos. Estes diários são exemplos perfeitos de um gênero em voga na época de Bashô e do qual ele é um dos grandes mestres: o haibun, texto em prosa que rodeia, como se fossem pequenas ilhas, os hai-kais. Poemas e paisagens em prosa se completam e reciprocamente se iluminam. O melhor desses diários, segundo a opinião geral, é o famoso Oku¬no-Hoso-Michi (Sendas de Oku). Neste pequeno caderno, feito de velozes desenhos verbais e súbitas alusões - signos de inteligência que o autor troca com o leitor – a poesia se mistura à reflexão, o humor à melancolia, a anedota à contemplação. É difícil ler um livro, e mais ainda quando quase todo seu sabor perdeu-se na tradução, que não nos ofereça apoio algum e que se desenvolva, como uma sucessão de paisagens. Talvez seja preciso lê-lo como se olha o campo: sem prestar muita atenção ao princípio, percorrendo com olhar distraído a colina, as árvores, o céu e suas nuvens, as pedras... Súbito nos detemos diante de uma pedra qualquer, da qual não podemos apartar a vista e então conversamos, por um instante sem medida, com as coisas que nos rodeiam. Neste livro de Bashô não acontece nada, salvo o sol, a chuva, as nuvens, algumas cortesãs, uma menina, outros viajantes. Não acontece nada, exceto a vida e a morte:
É primavera:
a colina sem nome
por entre a névoa.

A idéia da viagem - uma viagem das nuvens desta existência em direção às nuvens da outra - está presente em toda a obra de Bashô.De uma forma voluntariamente anti-heróica, a poesia de Bashô nos chama para uma aventura verdadeiramente importante: a de nos perdermos no cotidiano para encontrar o maravilhoso. Viagem imóvel, ao término da qual nos encontramos conosco mesmo: o maravilhoso é nossa verdade humana. Em três versos o poeta insinua o sentido deste encontro:
Um relâmpago
e o grito da garça
perdido no escuro.
O grito do pássaro funde-se com o relâmpago e ambos desaparecem na noite. Um símbolo da morte? A poesia de Bashô não é simbólica. A noite é a noite e nada mais. Ao mesmo tempo, é algo mais que a noite, porém um algo que, rebelde à definição, recusa-se a ser nomeado. Se o poeta o nomeasse, se evaporaria. Não é o rosto escondido da realidade; ao contrário, é seu rosto de todos os dias... e é aquilo que não está em rosto algum. O hai¬kai é uma crítica da realidade. Em toda realidade existe algo mais do que aquilo que chamamos realidade. Simultaneamente, é uma critica da linguagem:
Admirável
aquele que diante do relâmpago
não diz: a vida foge.

Crítica do lugar-comum, mas também crítica à nossa pretensão de identificar o significar e o dizer. A linguagem tende a dar sentido a tudo o que vemos e uma das missões do poeta é fazer a crítica do sentido. E fazê-la com as palavras, instrumentos e veículos do sentido. Se dizemos que a vida é curta como o relâmpago, não só repetimos um lugar-comum como também atentamos contra a originalidade da vida, contra aquilo que efetivamente a faz única. A verdade original da vida é sua vivacidade e essa vivacidade é consequência de ser mortal, finita: a vida está tecida de morte. Porém, ao dizer isso, convertemos em dois conceitos, vida e morte, a vivaz e fúnebre unidade vida-morte. Há uma linguagem que diga essa unidade sem dizê-la? Há, o hai-kai: uma palavra que é a crítica da realidade, uma realidade que é a burla oblíqua do significado. O hai-kai de Bashô nos abre as portas de satori: sentido e falta de sentido, vida e morte, coexistem. Não é tanto a anulação dos contrários nem sua fusão como uma suspensão do ânimo. Instante da exclamação ou do sorriso: a poesia já não se distingue da vida, a realidade reabsorve a significação. A vida não é nem longa nem curta mas é como o relâmpago de Bashô. Esse relâmpago não nos avisa de nossa mortalidade; sua mesma intensidade de luz, semelhante à intensidade verbal do poema, nos diz que o homem não é unicamente escravo do tempo e da morte, mas que, dentro de si, leva outro tempo. E a visão instantânea desse outro tempo chama-se poesia - crítica da linguagem e da realidade, crítica do tempo. A subversão do sentido produz uma reversão do tempo: o instante do hai-kai é incomensurável. A poesia de Bashô - esse homem frugal e pobre que escreveu já entrado em anos e que perambulou por todo o Japão dormindo em ermidas e pousada populares, esse reconcentrado que contemplava longamente uma árvore e um corvo sobre a árvore, o brilho da luz sobre uma pedra, esse poeta que depois de remendar suas roupas surradas lia os clássicos chineses, esse silencioso que falava nos caminhos com os lavradores e as prostitutas, os monges e as crianças - é algo mais que uma obra literária. E um convite para viver verdadeiramente a vida e a poesia. Duas realidades inseparáveis e que, no entanto, jamais se fundem inteiramente: o grito do pássaro e a luz do relâmpago.