“As dezenas, senão centenas de músicas que conheço de cor e salteado, têm o superpoder de me devolver a mim. E isso não tem preço.”
Publicado em 11/09/2010 pcamargo@gazetadopovo.com.br
A idolatria costuma estar associada à adolescência. Adultos, quando nutrem uma paixão tão intensa por alguém fora de seu alcance, correm o risco de parecer pueris, em descompasso com a idade que têm.
Mesmo assim, não são poucos os que carregam essa pulsão dos verdes anos à maturidade. Talvez porque seja uma forma de nos reconectarmos com instâncias menos cínicas. E assim, resgatar um pouco daquilo que um dia fomos e, de certa forma, mantemos engavetado em nome da dita maturidade.
Com o lançamento, pela editora Abril, de uma caprichada coleção que inclui quase toda a discografia oficial de Chico Buarque, em formato de CDs acompanhados de livretos, vi-me frente a um dilema dos mais prosaicos: comprar ou não discos que, em sua grande maioria, já tenho, à medida que chegam todas as semanas às bancas e livrarias. Existe o desejo, confesso, mas também o pé no freio, a cabeça que diz: “Não, bobagem”.
Esse conflito, aparentemente tolo, me fez pensar sobre por que gosto tanto do Chico. E, depois de enumerar vários motivos, todos muito racionais – como a qualidade e a importância histórica das composições e a riqueza poética das letras –, caiu a ficha.
As dezenas, senão centenas de músicas que conheço de cor e salteado, têm o superpoder de me devolver a mim. E isso não tem preço.
Quando ouço, por exemplo, pérolas como “O Que Será (À Flor da Terra)”, “Passaredo” ou “A Noiva da Cidade”, me vejo aos 11, 12 anos, contando os cruzeiros para comprar Meus Caros Amigos na filial da rede Rei do Disco em um velho shopping de Copacabana, no Rio de Janeiro.
Não tinha ideia, pelo menos não à primeira audição em uma radiola Grundig, que a letra de “Meu Caro Amigo”, composta em parceria com Francis Hime, falava do Brasil sob a bota do governo militar.
Foram necessárias algumas aulas de Português e História com professores veladamente “subversivos” para compreender o que queriam expressar versos como “Meu caro amigo me perdoe, por favor/ Se eu não lhe faço uma visita/ Mas como agora apareceu um portador/ Mando notícias nessa fita/ Aqui na terra tão jogando futebol/ Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll/ Uns dias chove, noutros dias bate sol/ Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta”.
Lembro-me do momento da revelação, o instante em que percebi que, por trás do delicioso samba de Chico e Francis, escondia-se amarga ironia. A letra era uma mensagem melancólica a amigos que (como o próprio Chico) tiveram de tirar o time de campo e deixar do país por estarem na mira da ditadura.
A idolatria, que aqui assumo sem pudores de jornalista cultural, está muito ligada à sensação, desengavetada nos últimos dias, de que ouvir Chico Buarque sempre foi, e ainda é, uma experiência estética. Algo que fratura minha rotina, de horários, obrigações, deveres e responsabilidades, e me recoloca em contato com territórios mais sensíveis.
Muitas de suas canções me provaram ao longo dos últimos 30 anos, por mais que o cotidiano por vezes me force a esquecer, que sou capaz de pensar e sentir ao mesmo tempo. São pedaços de mim.
E lá vou eu comprar a coleção da Abril.
(Paulo Camargo é editor do Caderno G. do jornal Gazeta do Povo.)
(CAMARGO, Paulo. Meu Caro Chico. Gazeta do Povo, Caderno G Idéias, 11.set.2010, p.5.)
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Faço meu o texto de Paulo Camargo.
Acabo de resolver também o meu dilema. Vou correr a um shopping comprar a nova coleção.
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Jayme Ferreira Bueno
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