terça-feira, 22 de setembro de 2009

POESIA E LOUCURA



1. Alguns conceitos básicos
Erasmo de Rotterdam ao escrever O Elogio da Loucura tocou em um dos temas mais complexos da produção poética. De onde provém o processo criador?
Os Antigos, principalmente os gregos, consideravam que havia necessidade de um furor divino para o humano tornar-se um poeta, um demiurgo, um criador. O fenômeno que alguns denominavam inspiração poética, os gregos chamavam de entusiasmo (de en + theos = estar com deus em si). Assim, o poeta é um possesso, um possuído. O poeta produz quando abandona a sua própria consciência e se deixa invadir por uma divindade.
A palavra poesia (grego poésis) significa “uma ação para fazer algo”. O poeta (poietés) é “aquele que age, que faz”. Segundo Platão, é o entusiasmo que leva à ação.
Para Erasmo, o que move o ser humano à ação deixa de ser o entusiasmo, ou inspiração divina, e passa a ser a loucura. Segundo ele, a sobriedade inibe a ação. Só age quem está possuído pela loucura: “O louco, ao contrário, tomando a iniciativa de tudo, arrostando todos os perigos, parece-me alcançar a verdadeira prudência” (p. 47). Continua a afirmar: “Se a prudência consiste no uso comedido das coisas, eu desejaria saber qual dos dois merece mais ser honrado com o título de prudente: o sábio que, parte por modéstia, parte por medo, nada realiza, ou o louco, que nem o pudor (pois não o conhece) nem o perigo (porque não o vê) podem demover de qualquer empreendimento” (p. 47).
2. Poetas que enaltecem a loucura
Inúmeros poetas prestaram homenagem à loucura. Na literatura portuguesa, o exemplo a ser citado será um poema de Fernando Pessoa. O exemplo da poesia brasileira, neste espaço, será um texto de Mario Quintana:
GAZETILHA - Álvaro de campos, heterônimo de Fernando Pessoa:
Dos Lloyd Georges da Babilônia

Não reza a história nada.
Dos Briands da Assíria ou do Egito,
Dos Trotskys de qualquer colônia
Grega ou romana já passada,
O nome é morto, inda que escrito.

Só o parvo dum poeta, ou um louco
Que fazia filosofia,
Ou um geômetra maduro,
Sobrevive a esse tanto pouco
Que está lá para trás no escuro
E nem a história já historia.

Ó grandes homens do Momento!
Ó grandes glórias a ferver
De quem a obscuridade foge!
Aproveitem sem pensamento!
Tratem da fama e do comer,
Que amanhã é dos loucos de hoje!

O AUTO-RETRATO - Mário Quintana
No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...

às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Terminado por um louco!

. 2. Poetas tomados pela loucura
Em Portugal, o aparecimento do Modernismo, em 1915, deu-se com a revista Orpheu. A poesia que nela se publicou foi taxada de “poesia de loucos”. Os organizadores e editores da Revista, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, foram, então, à busca de poemas de alguém que realmente fosse doente mental. Como já conheciam a poesia de um interno de Hospício, a tarefa não foi difícil. O interno era o poeta Ângelo de Lima.

Ângelo de Lima (Porto, 1872 – Lisboa, 1921) - Por haver participado da revolução republicana de 1891 (Portugal foi monarquia até 1910), Ângelo de Lima foi enviado para a África. Na volta a Portugal, dois anos depois, começou a sentir os primeiros sintomas da doença. Esteve internado por quatro anos (1894-1898) no Hospital Psiquiátrico Conde Ferreira no Porto. Mais tarde, em 1901, foi novamente internado. Desta vez, em Lisboa, no Manicômio Rilhafoles. Aí permaneceu praticamente o resto de sua vida até a morte, em 1921.
A sua poesia foi adotada pelos primeiros modernistas e começou a ser difundida. O segundo número de Orpheu publicou um conjunto de poemas. O soneto seguinte, publicado na Revista, é um exemplo:
EDD´ORA ADDIO... – MIA SOAVE!...
— Mia Soave... — Ave?!... — Almeia?!...
— Mariposa Azual...— Transe!...
Que d’Alado Lidar, Canse...
— Dorta em Paz...— Transpasse Ideia!...

— Do Ocaso pela Epopeia...
Dorto...Stringe... o Corpo Elance...
Vai à Campa... — Il c’or descanse...
— Mia soave... — Ave!... — Almeia!...

— Não dói Por Ti Meu Peito...
— Não Choro no Orar Cicio...
— Em Profano... — Edd’ora...Eleito!...

— Balsame — a campa — o Rocio
Que Cai sobre o Ultimo Leito!...
— Mi’Soave!... Eddora Addio!...

Quanto à forma, os poemas de Ângelo de Lima sempre se mostrou perfeitamente bem estruturada. O mesmo, porém, não se pode dizer da sua linguagem, que se apresenta bastante desviada da linguagem considerada normal. A sua poesia foi altamente valorizada pelos simbolistas e depois pelos modernistas, principalmente pelo emprego de neologismos e pela sonoridade de seus versos. Há também, nessa poesia, sinais precursores do Surrealismo, que só iria aparecer na França, em 1924.

São notáveis alguns outros sonetos de Ângelo de Lima, como este:

Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz, do esquecimento...

Pára surpreso, escrutador, atento,

Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado...
Pára e fica e demora-se um momento.

Pára e fica na doida correria...

Pára à beira do abismo e se demora
E mergulha na noite escura e fria

Um olhar de aço que essa noite explora...

Mas a espora da dor seu flanco estria
E ele galga e prossegue sob a espora.


Neste poema, pode-se observar uma estrutura perfeitamente definida e uma linguagem de alguém que se encontra de posse de suas faculdades mentais. Acontecia com Ângelo de Lima, o que é normal em pessoas com tal doença, momentos de lucidez em meio a tantos outros de desvarios. Por vezes, a sua poesia abandona aquele estilo de alucinação e passa a retratar estados de lucidez.
Um outro texto típico da poética de Ângelo de Lima é este:

OLHOS DE LOBAS
Teus olhos lembram círios
Acesos n'um cemitério...
(Dr. Rogério de Barros)

Têm um fulgor estranho singular
Os teus olhos febris... Incendiados!...

Como os Clarões Finais... - Exaustinados
Dos restos dos archotes, desdeixados...
— Nas criptas d'um Jazigo Tumular!...

— Como a Luz que na Noute Misteriosa
— Fantástica - Fulgisse nas Ogivas
Das Janelas de Estranho Mausoléu!...

— Mausoléu, das Saudades do Ideal!...

— Oh Saudades... Oh Luz Transcendental!
— Oh memórias saudosas do Ido ao Céu!...

— Oh Pérpetuas Febris!... - Oh Sempre Vivas!...
— Oh Luz do Olhar das Lobas Amorosas!...

Este poema se destaca por uma espécie de dedicatória a um médico, possivelmente aquele que o atendia. A epígrafe denota, além do carinho pelo clínico, o estado em que muitas vezes se encontrava Ângelo de Lima e que se refletia em seus olhos.
Quanto à estrutura se mostra perfeitamente regular como uma forma pouco mais livre do que um soneto, porém conservando o equilíbrio na construção de dos versos, perfeitos decassílabos. Quanto à linguagem fica a meio-termo entre aquela que retrata momentos de lucidez e outra em que aparecem estranhas percepções. Emprega termos exóticos, o que era comum entre os simbolistas, e que não chegam a pertubar o entendimento do texto
.

6 comentários:

raquel disse...

Conforme a tendência teórica, a expressão "poeta louco" é quase uma redundância. Interessante esse Ângelo de Lima, que talvez possa ser aproximado às "doidas" Hilda Hilst e Orides Fontela. Cada uma a sua maneira, buscaram (e achar) a forma mais límpida para se expressar.

Jayme Ferreira Bueno disse...

Oi, Raquel
"Poeta", penso que seja mais "possuído", "profeta". Mas como todos esses englobam um tanto de loucura, de fato, está havendo até certo ponto uma redundância. Foi bom acrescentar os nomes dessas "doidas".
Quem mais doido do que o próprio Fernando Pessoa, principalmente quando se convertia em Álvaro de Campos?
Etimologicamente, poesia (poiesis) tem sua origem no verbo "poien" (fazer, criar). Assim, "poesia é uma ação, uma criação". E, segundo Erasmo, só à loucura leva à ação, porque a prudência inibe. Portanto, os poetas são todos loucos. Muito coerentemente, com a redundância detectada por você.
Até,

ozorio filho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
ozorio filho disse...

tualme com quase cegueira e surdez o único recurso é conformar-se. Azaury Marés de Souza-Uniao da Vitória- Pr. -42-35223675. Aguardo retorno do contacto.

Jayme Ferreira Bueno disse...

Oi, amigo Azaury
Que bom o contato depois de tanto tempo!
Precisamos nos comunicar sobre vários assuntos, mas também sobre alguns poetas paranaenses que foram seus amigos, como o Colombo de Souza.
Entrarei em contato por telefone a qualquer momento.
Um grande abraço e obrigado ao Ozorio por ter feito a postagem.
Jayme

Daniel Cisneiros disse...

Caro prof. Jayme, seu blog me tem sido de muita valia em meus estudos acadêmicos.
Necessito de saber mais sobre a informação que o senhor veicula no trecho a seguir:

"Os organizadores e editores da Revista, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, foram, então, à busca de poemas de alguém que realmente fosse doente mental. Como já conheciam a poesia de um interno de Hospício, a tarefa não foi difícil. O interno era o poeta Ângelo de Lima."

O senhor saberia me dizer a fonte dessa informação? Citei em um trabalho seu blog, mas me pediram que buscasse a fonte original.
Grato, contando com a ajuda,
Daniel Cisneiros (dcisneiros@gmail.com)