quarta-feira, 1 de abril de 2009

UM CONTO DE DANIEL OSIECKI

Daniel Osiecki é um jovem curitibano, nascido em 1983. Formou-se em Letras na Pontifícia Universidade Católica do Paraná e especializou-se em Literatura Brasileira nessa mesma Instituição. Na Especialização, apresentou como monografia um estudo sobre um romance de Moacir Scliar, que denominou: Um Herdeiro da Diáspora: a questão da identidade judaica em O Centauro no Jardim, de Moacyr Scliar.
Profissionalmente, é professor de literatura brasileira e revisor de texto. Mantém o Blog Távola Redonda, voltado para a literatura. Nele, Daniel publica seus estudos, principalmente sobre autores portugueses. O próprio título do blog, ao homenagear uma revista literária portuguesa dos anos 50, demonstra claramente a influência da literatura portuguesa nos seus trabalhos. É nesse espaço, que publica periodicamente artigos e análises literárias.
Como músico, creio que um tanto amador, tem feito apresentações com sua Banda formada por ele e alguns amigos, que foram seus colegas no curso e fora dele. Nela, Daniel é responsável pelo som da bateria.
O livro de contos Abismo é sua primeira obra de ficção publicada. Os contos aí presentes mostram geralmente ambientes sombrios, próprios de um sorvedouro, ou abismo, como o autor intitulou esta sua obra. Explora os aspectos existenciais, o que reflete a grande admiração que tem pelo existencialista português Vergílio Ferreira. A confirmar essa influência, como epígrafe ao livro, transcreveu este trecho desse autor: “Se o homem “é” o que faz, é-o sobretudo para os outros, não totalmente para si, muito menos para a interminável realização da própria aspiração humana” (Vergílio Ferreira).
Conheci o Daniel como meu aluno de literatura portuguesa no curso de Letras da PUCPR. Em uma das primeiras aulas, quando procurei levantar algumas leituras já feitas, ele foi um dos poucos que conhecia autores e obras dessa literatura. Propôs-se a apresentar na próxima aula a leitura que fizera de Viagens na minha terra, do romântico Almeida Garrett. Em suas leituras, logo entusiasmou-se pelos autores neo-realistas. Passou a ler Alves Redol, Fernando Namora e Miguel Torga daquela fase em que se preocupou com os problemas sociais do norte vinhateiro. Costumamos manter vivo um relacionamento, ao menos pela Internet. Sei que continua interessado na literatura portuguesa. Em seu blog, diz: “Em nome dos poetas que publicaram na Revista Távola Redonda, criei este blog. Espaço para discussões sobre literatura, muito em especial a Literatura Portuguesa. Viagens poéticas e narrativas”.


O lançamento do livro Abismo aconteceu no sábado, 28 de março deste ano. Lá estive, para cumprimentar o autor, ex-aluno e amigo Daniel Osiecki.




A seguir um conto transcrito de Abismo:

PESSOAS
Fernando acabara de sair do modesto restaurante onde almoçava todos os dias no centro de Lisboa. Caminhando despreocupado pela rua encontrou um velho amigo, Bernardo.
- Olá, Fernando. Quanto tempo, como está?
- Estou bem, Bernardo, obrigado. Como está indo o escritório de contabilidade? Muita correria?
- Daquele jeito de sempre. Você soube do Alberto?
- Claro, uma grande perda. Ele foi um mestre para mim. No ano passado passei algumas semanas com ele e com a tia na casa que tinham no Douro. Foi uma grande perda mesmo.
- E se foi. Bem, está muito ocupado agora?
- Na verdade estava indo ver Ophélia, mas... por quê?
- Estou indo encontrar o Ricardo. Quer me acompanhar?
Fernando pensou por alguns segundos e decidiu que acompanharia o velho amigo no passeio.
- Claro! - Respondeu Fernando. - Por que não? Depois eu explico pra Ophélia.
Os dois dirigiram-se para a cantina Pessoa, que ficava próxima à Praça do Comércio. Fernando era correspondente estrangeiro, escrevia versos e também tinha uma tipografia em Lisboa. Ele e seus companheiros da Revista Orpheu estavam em polvorosa, pois a revista havia sido um sucesso. Seu grande amigo Mário estava preparando a segunda tiragem.
Bernardo era uma figura atípica. Muito pouco sabia sobre seu amigo, apenas que havia nascido em Lisboa e trabalhava como assistente contábil e levava uma vida modesta. Também era poeta, e tinha uma ambição: publicar sua obra prima que já havia começado a lhe inquietar.
- Então, como vai sua obra-prima? ­Perguntou Fernando, acendendo um cigarro.
- Não sei. Já pensei em desistir. Já tenho o título.
- Qual é? - Perguntou Fernando, interessado. - Eu prefiro não falar nada por enquanto. Vamos ver. Vamos aguardar.
Um garçom traz uma jarra de vinho do Porto e se retira rapidamente para atender dois rapazes que estavam à mesa ao lado. Nesse momento entra um homem alto, com um ar de erudito e com uma maleta de médico na mão esquerda. Dirige-se à mesa de Fernando e Bernardo e cordialmente os cumprimenta.
- Boas tardes caros colegas!
- Querido amigo Ricardo, como estás? - Pergunta afavelmente Bernardo.
- Agora estou bem, caro Bernardo, agora que estou de volta a Portugal.
- Ricardo, o que você fez esse tempo todo no Brasil? - Pergunta Fernando, interessado nas suas novidades.
- Olá, Fernando. Como sabes, estive exilado. Exerci minha profissão de médico e escrevi odes. Bem, como vão as coisas por aqui? Soube da revista.
- Pois é. Eu e o Mário trabalhamos duro. Se tiver interesse em juntar-se a nós...
- Meu caro Fernando, sabes muito bem que jamais conseguiríamos trabalhar juntos. Eu considero a produção de vocês um tanto quanto alucinada, irreverente demais, até certo ponto chocante. Espero que...
- Você jamais romperia com as estéticas do passado. Você não passa de um burguês que é incapaz de...
Nesse momento Bernardo, até agora apenas ouvindo os dois amigos, intervém na conversa com a intenção de acalmar os ânimos. - Calma, gente, mudemos de assunto. E o Álvaro?
- O Álvaro está viajando pelo Oriente.
Nem sinal dele. - Ricardo tomou um longo gole do vinho. - quando falei com ele pela última vez, ele estava me mostrando alguns poemas que chamavam de futuristas.
Os três ainda ficaram conversando por uma hora. Depois saíram e cada um seguiu um caminho diferente. Apesar de todas as divergências, de todas as diferenças intelectuais e de uma certa hostilidade entre os amigos, separados e distantes, pareciam fragmentos de um mesmo ser. Suas condições de seres estilhaçados por razões diversas, davam a cada um deles um aspecto soturno e radiante ao mesmo tempo. Quando estavam um ao lado do outro não se suportavam, ou apenas fingiam, pois o poeta é um fingidor, e finge que é dor a dor que deveras sente. Porém quando estavam separados, distantes, sentiam que se comunicavam e que se completavam de alguma forma. Os estilhaços provocados pela distância os aproximavam, e assim os formavam como um único-ser.
O céu de Lisboa já estava tornando-se escuro, as pessoas que caminhavam na Praça do Comércio caminhavam mais rápido. O desejo de chegar em casa era grande. Em frente da Cantina Pessoa chegou um homem alto, de cabelos escuros e usando monóculo. Entrou e dirigiu-se ao balcão.
- Boas noites. O senhor sabe se aqui estiveram três cavalheiros. Fernando, Bernardo e Ricardo?
- Assim por nome é difícil, entra tanta gente aqui todo dia.
O elegante senhor colocou as mãos nos bolsos em busca de papel e caneta. Escreveu seu nome e deu ao dono da cantina.
- Se eles aparecerem aqui ainda hoje ou amanhã, diga que ficarei em Lisboa até o final da semana. É fácil de reconhecê-los. Muito obrigado, senhor e boas noites.
Saiu pela rua escura. O simpático senhor dono da cantina pegou o bilhete e leu em voz alta. Estava sozinho.
- "Voltei. Álvaro de Campos".

Em um breve comentário, pode-se dizer que Daniel Osiecki assimilou bem as características do Pós-Modernismo. No conto Pessoas, há o caráter da intextextualidade entre a sua narrativa e o verdadeiro “romance” criado por Fernando Pessoa entre si e suas diferentes personas, os heterônimos.
Uma outra tendência pós-modernista, e que decorre da primeira, é o recontar fatos históricos ou da história literária. Daniel faz em seu conto o que autores famosos já fizeram sobre o mesmo tema É só relembrar José Saramago com o romance O ano da morte de Ricardo Reis e Amadeu Lopes Sabino com o conto O Lepidóptero, do livro Retrato de Rubens. E sem esquecer os textos de Fernando Pessoa, que estão, sobretudo, em Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, em especial na parte que ele intitulou Para a Compreensão de... (Alberto e Caeiro e também os outros heterônimos), além, ainda, do Livro do desassossego, do heterônimo prosador Bernardo Soares, que foram, sem dúvida, fontes valiosas para o texto de Daniel Osiecki.
É lógico que as narrativas desta obra de Daniel sofram daquelas impurezas próprias das primeiras obras de um autor, seja ele qual for. Como diz Ricardo Reis sobre a poesia de Alberto Caeiro, embora eu reproduza as suas palavras sem a crueldade daquele frio heterônimo: “Perdoa-se-lhe a falta, porque aos inovadores muito se perdoa; mas não se pode omitir que seja uma falta, e não uma distinção”.
E, para finalizar, reproduzo o texto aparentemente enigmático e cruel de Álvaro de Campos sobre o Cancioneiro de Fernando Pessoa: “Sou demasiado amigo de Fernando Pessoa para dizer bem dele sem me sentir mal: a verdade é uma das piores hipocrisias a que a amizade obriga”. (Ser amigo, e eu sou amigo do Daniel, não nos pode impedir de falar bem de alguém. É o que eu faço agora. Falo bem dos contos do livro Abismo).

5 comentários:

Tania Anjos disse...

Olá Prof.!

É com alegria que venho prestigiar seu post sobre o livro de Daniel - meu amigo da internet - através do qual lhe conheci, Prof. Jayme.

Muito bacana o post e muito bacana o conto!!

Destaco o trecho que achei fantástico e que - na minha opinião de leitora e amadora da poesia - resume em Fernando Pessoa e seus heterônimos o que são os diferentes poetas em suas convergências e divergências: APENAS UM. OS POETAS SE NECESSITAM...

"[...] Apesar de todas as divergências, de todas as diferenças intelectuais e de uma certa hostilidade entre os amigos, separados e distantes, pareciam fragmentos de um mesmo ser. Suas condições de seres estilhaçados por razões diversas, davam a cada um deles um aspecto soturno e radiante ao mesmo tempo. Quando estavam um ao lado do outro não se suportavam, ou apenas fingiam, pois o poeta é um fingidor, e finge que é dor a dor que deveras sente. Porém quando estavam separados, distantes, sentiam que se comunicavam e que se completavam de alguma forma. Os estilhaços provocados pela distância os aproximavam, e assim os formavam como um único-ser."

Nossa! Aprendi muito lendo sua postagem!

Parabéns Daniel!! Estou ávida por ler seu livro!

Forte abraço em ambos.
Taninha

Daniel Osiecki disse...

Prezado Prof. Jayme,

é com imensa satisfação que leio seus comentários sobre meu livro. É um privilégio pra mim ter meu primeiro livro lido e comentado por meu professor que é um grande ensaísta e teórico da literatura.
Devo muito de meu gosto literário ao senhor, que muito me influenciou naquele ano de 2004, durante a graduação. Também me lembro, com saudosa lembrança, daquele dia em que falamos pela primeira vez, sobre Almeida Garret e Alexandre Herculano. Os anos se passaram mas a amizade continua.E com a amizade retribuo suas palavras. Grande Mestre Jayme, um grande abraço.
Daniel Osiecki

Jayme Ferreira Bueno disse...

Obrigado, Taninha.
Fico feliz por você ter gostado do conto do Daniel e do comentário que fiz.
A qualidade dos contos do livro Abismo me surpreenderam. Selecionei o conto Pessoas por enfocar um tema que aprecio muito, que é a poesia e a história de Fernando Pessoa.
O Daniel há tempo vem fazendo grande esforço para firmar-se no campo das Letras. Como tem talento, se continuar dedicando-se assim, ele irá longe. É o que eu desejo a ele.
Quanto ao fato de “ser amadora de poesia”, na realidade todos somos e por dois motivos que a palavra nos permite: 1. por não sermos poetas profissionais e 2. por gostarmos muito de poesia.
Um grande abraço, Jayme

Jayme Ferreira Bueno disse...

Daniel, é sempre bom termos alunos que veêm algum merecimento em seus professores. Ainda mais em nosos dias, em que todos nós, por diversos motivos da vida moderna, muitas vezes nos tornamos egoístas e não vemos o outro.
Obrigado pelas palavras sobre mim e quero reafirmar que desejo o maior sucesso para você nas Letras e em todas as outras atividades suas.
Fico muito feliz por sentir que quem leu gostou do conto que apresentei no Blog.
Parabéns e continue...
Um grande abraço do amigo, Jayme

Daniel Osiecki disse...

Olá, professor. Navamentente venho afirmar, o senhor foi a maior influência nos tempos de faculdade. Mais uma vez agradeço sua palavras, sua crítica atenta e sincera. A crítica só faz com que eu tenha mais vontade ainda de escrever e de buscar aperfeiçoamento naquilo que busco: a literatura. Grande abraço do amigo e ex-aluno,
Daniel