A crítica literária portuguesa de modo geral se debate em relação a um problema literário, e em especial poético, que é o caso do fingimento e da sinceridade na criação artística. Qual seria a principal função do criador: confessar-se ou fingir? Com fundamento nessa pergunta-se, passa-se a enfocar a produção de determinado poeta de acordo com a feição teórica que esse criador assume ao escrever seus poemas.
Embora o problema seja de todos os tempos, em Portugal ele se aprofundou depois de Fernando Pessoa, que explicitava em suas criações poéticas e em textos críticos a ideia que arte, e em decorrência disso, literatura e, mais especificamente, poesia, tudo é fingimento. Aristotélico como era, o grande poeta português não se afastava muito do seu mestre grego, que afirmava ser a poesia uma imitação. Ser imitação do real e fingir o real são conceitos que praticamente se igualam, pois ambos defendem uma realidade que subjaz à criação literária e que é de outra natureza. Uma coisa é a realidade, outra, diferente, é a produção artística.
Essa discussão intensificou-se com as declarações do grande poeta e líder da revista Presença, José Régio. Este, em aparente oposição ao poeta da revista Orpheu, considera a arte como resultado não do fingimento, mas da sinceridade. Desde então esses dois conceitos passaram a se opor em termos de crítica literária.
Olhando-se, porém, por um outro prisma, parece que tanto a poesia dita fingida, como aquela dita sincera, em nada são diferentes. Ambas são fingidas e ambas são sinceras, simultaneamente. São fingidas em relação à pura realidade, ou, como se queira, a realidade real; e ambas são sinceras, quanto ao modo como são produzidas. São elas sinceras artisticamente. É o que se pode depreender de textos como os que seguem:
Quando Fernando Pessoa diz:
1. A base de toda a arte é a sensação.
2. Para passar de mera emoção sem sentido à emoção artística, ou susceptível de se tornar artística, essa sensação tem de ser intelectualizada.
ele está lançando uma como que teoria da poesia fingida. Há a necessidade de intelectualizar uma sensação, ou seja, fingi-la, para que ela se torne uma sensação com valor artístico. Antes disso, ela é apenas uma sensação. Fernando Pessoa aplica essa teoria no poema que denominou Autopsicografia, como se constata nesta transcrição da primeira estrofe:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Assim, “a dor que deveras sente”, a que se refere o poeta, é a sensação; a dor que ele diz “fingir”, essa é já a dor intelectualizada, que se torna matéria poética. A poesia e a teoria se correspondem, numa prova inequívoca de que a poesia de Fernando Pessoa é uma poesia pensada e não meramente sentida.
De outro lado teórico, assumindo uma poesia viva, uma poesia sincera, José Régio declara:
o que então inspira a obra de arte - é a paixão; e uma paixão considerada infamante ou uma paixão considerada nobre – podem da mesma forma inspirar obras elevadas sob o ponto de vista que nos interessa: estético.
e também:
É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística.
Poeticamente, e de modo coerente com essa teoria, José Régio escreve poemas como Demasiado Humano, aqui ilustrado em sua primeira estrofe:
Escancarei, por minhas mãos raivosas,
As chagas que em meu peito floresciam.
Versos a escorrer sangue eis escorriam
Dessas chagas abertas como rosas…
e neste dramático poema denominado Diário, do qual se transcreve a primeira estrofe, diz ele:
Tinha um diário aonde ia escrevendo,
Dia a dia, a agonia dos meus dias:
Era um romance tremendo,
Dilacerado de piedade e de ironias.
Aí, estão presentes dois modos de enfocar teoricamente e na prática a arte da poesia, uma classificada como “poesia fingida” e uma outra, que se denominou “poesia sincera”. A primeira é representada principamente por Fernando Pessoa, mas de modo geral também pelos colaboradores da revista Orpheu, fundada em Lisboa em 1915. A segunda tem seu lídimo representante na pessoa de José Régio e dos poestas da revista Presença, que surgiu em Coimbra em 1927.
Esta discussão levada a sério por muitos críticos foi também bastante combatida e mesmo ironizada. É o caso, por exemplo, do poeta do Surrealismo português Alexandre O’Neill, que, com seu senso altamente irônico e de certo modo desestabilizador dos formalismos, como foi preceito da estética surrealista, escreveu:
Às dores inventadas
Prefere as reais.
Doem muito menos
Ou então muito mais...
Antes do encerramento, trazem-se aqui dois fragmentos da crônica Elogio da Mentira, de Miguel Sanches Neto, publicado em 31 de março de 2009. No primeiro, afirma-se:
Não há verdades, apenas versões. Levando este raciocínio ao seu extremo, chegaremos à conclusão de que tudo é ficção. Assim, nada coincide com nada. O que vejo não é igual ao que o outro vê, mesmo quando estamos olhando para o mesmo objeto e do mesmo mirante. Movemo-nos em meio a realidades construídas.
e no segundo, conclui-se:
Todo ficcionista é um ilusionista profissional; promove uma proliferação de entes e fatos, embaralhando assim as muitas realidades. Todas verdadeiras à sua maneira. Pois só à maneira de cada um é que pode haver verdade.
Concluindo este breve comentário sobre tema tão complexo, apenas podemos dizer que toda poesia é, de um ponto de vista, fingida, porque é a vivência de uma sensação, de uma emoção, que é transformada pelo poder de intelectualizar, enfim de transformar o que se vive em matéria poética, o que se configuraria como a arte de fingir. Por outro lado, toda a poesia é sincera, porque está de acordo com a arte e não com a realidade.
Fernando Pessoa, no poema Isto, que aqui se transcreve, esclarece vários aspectos:
Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
1. Ele não finge no sentido literal, ele apenas sente com a imaginação, ou seja, ele intelectualiza, “finge” poeticamente.
2. O que o poeta sonha ou passa – as emoções – isso é apenas o primeiro estágio; o segundo estágio, que é a intelectualização dessa sensação ou emoção, essa coisa é que é linda, porque já é matéria poética.
3. Finalmente, o poeta confirma que escrever livre do enleio, ou seja, livre do encantamento do que se vive, mas, de modo sério, embora sobre um assunto que não é sério no sentido estrito da palavra, mas um “fingimento”, uma “cópia”, é que torna a arte séria. A arte assim construída deve, portanto, autêntica, verdadeira do ponto de vista estético.
segunda-feira, 13 de abril de 2009
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7 comentários:
Olá, professor.Fernando Pessoa sempre presente em seus estudos. Muito interessante a distinção que o senhor faz entre o que é fingido e o que não é na poesia.Me parece, lendo os fragmentos de José Régio,que o poeta da Presença considera a mímese o leitmotiv do fazer poético.O senhor concorda? Um abraço.
Oi, Daniel.
Concordo em parte. Explico-me. Penso que ambas as opções - poesia do fingimento, ou poesia da sinceridade - estão fundadas na mímese. Assim, tanto Fernando Pessoa, como Jsé Régio teriam como leitmotif o fazer poético. Penso até que os poemas de Fernando Pessoa sejam mais metapoéticos do que os de José Régio. Mas tudo é ponto de vista. A diferença que vejo é que na posia dita fingida, o poeta imita algo que ele intelectualiza, que ele "finge"; e na poesia dita sincera, o poeta imita a realidade mais diretamente, como se estivesse retratando puramente essa realidade,o que, porém, é muito relativo. Até que ponto algo vem diretamente do real e outra coisa vem do intelectualizado sobre algo do real?
Esses temas às vezes caem numa discussão um tanto estéril, algo como as grandes dissertações dos poetas barrocos.
Eu trouxe o tema exatamente para debate como este.
Um grande abraço, Jayme
Sinceridade, a meu ver, sempre faz pensar nas propostas dos românticos. Para a época, assumir aquele tipo de sinceridade da expressão, valorização do gênio individual criador, etc... tudo isso era novidade, fazia furor.
A sinceridade do poeta romântico do século 18 há de ser necessariamente diferente da sinceridade de Régio, poeta do modernismo. A de Régio, no exemplo citado, é inclusive metalinguística. Abrir com as mãos as chagas do peito para que os versos saiam de dentro do poeta já devidamente ensangüentados é uma metáfora quase barroca, que exige um bocado de intelectualização.
Do ponto de vista teórico, estou de acordo com o meu primeiro mestre (não o Aristóteles, nem o Sócrates, refiro-me ao Jayme): a poesia de Régio é simultaneamente sincera e fingida, como a de Pessoa, como a de Garrett ou Gonçalves Dias, como a de Gregório de Matos.
Não sei se fui clara, mas fui sincera. :-)))
Oi, Professora Raquel,
obrigado pelo incentivo ao apoiar o meu ponto de vista. Fico feliz com o seu comentário e declaro que concordo integralmente com ele.
Portanto, vamos em frente com as nossas literaturas.
Jayme
Olá, Prof. Jayme!
Que rica matéria!
Quando o Daniel fala em "imitação" ou "fórmula" para o fazer poético; eu também concordo em parte.
Explico-me. Se a base do fazer poético for, de fato, a emoção; tal, não pode ser jamais fingida.
Intelectualizá-la está - mesmo - subjacente ao ato criador, envolvendo pois a inteligência e o espírito; não o fingimento - seja existencial, lírica ou social.
Se o poeta só fingir será, então, um dramaturgo e ou comediante - dos bons ou dos piores.
Na verdade, é mesmo o leitor que torna a poesia fingida ou sincera, dentro do seu universo real ou imaginário.
A poesia, também - tanto para o escritor quanto para leitor -, é uma questão de momento. E, os momentos, na vida, são tão contraditórios...
Enfim, excelente debate! Há muitas questões a serem exploradas.
Obrigada, Prof.
Abraços,
Taninha
Olá, Taninha, que bom ouvir a sua voz sobre poesia!
Parte do problema sobre poesia fingida ou poesia sincera surge do costume de se atribuir rótulo. Em certa época, convencionou-se classificar os poetas em: "poeta maior" e "poeta menor". Inclusive, Manuel Bandeira brinca com isso, em seu poema Testamento, na penúltima estrofe, quando escreve:
"Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!"
Todo debate sobre poesia é válido, pois sabemos do mistério que envolve toda espécie de arte, e a poesia não poderia deixar de se encontrar também nesse espaço de questionamento.
De modo geral, poetas e críticos mais tradionais viam na poesia um grande mistério, embora críticos se posicionem com reservas sobre o tema. Um deles, o português João Gaspar Simões, no livro O Mistério da Poesia, expõe o que se costuma afirmar: "A poesia é um mistério, afirma-se: tanto mistério enquanto realização como enquanto recepção"
para depois colocar em questão tal afirmativa:
"Creio, porém, nunca se ter compreendido entre nós em que sentido ela é misteriosa".
Muitos poetas, porém, escreveram sobre o mistério que encerra a poesia:
"Todas as coisas têm o seu mistério, e a poesia é o mistério de todas as coisas" (García Lorca)
"Um poema é um mistério cuja chave deve ser procurada pelo leitor" (Mallarmé)
"A poesia é um nexo entre dois mistérios: o do poeta e o do leitor" (Dámaso Alonso)
O que afirmou a Taninha caminha na direção das duas últimas citações:
"Na verdade, é mesmo o leitor que torna a poesia fingida ou sincera, dentro do seu universo real ou imaginário".
Um abraço a todos,
Jayme
Eaai blz??voltei,vir visita denovo,como eu gosto de comentar vamos la...Li esse post umas 4,5 vez,o blog é bom demais,precisar nem falar nada,alguns amigos me recomendaram,Dizem que existe Rastreador de celular. Achei este link http://www.rastreador1.com/rastreador_de_celular_rastreador_gps_autotracker.php na net e gostaria de saber se alguém pode me dar referência?
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