Vive em Ribeirão Preto / SP uma poetisa e doutoranda em Letras pela USP, Cristiane Rodrigues de Souza. Foi ela quem enviou este texto seu com análise da poesia de um conterrâneo (ambos paulistas) e contemporâneo , Fabrício Corsaletti.
Cristiane, dona de um apurado aparato crítico, consegue penetrar as nuances dos poemas de Corsaletti. Com essa análise lúcida fica fácil fruir as imagens que o poeta instala em seus poemas.
Vamos ao texto de Cristiane Rodrigues de Souza:
"O poeta Fabrício Corsaletti lançou seu primeiro livro de poemas, Movediço, em 2001, com prefácio do crítico, poeta e professor de Literatura da USP, Alcides Villaça (Movediço foi relançado pela Companhia das Letras, ao lado de outros livros de Corsaletti, no livro Estudos para seu corpo). A vida na cidade do interior de São Paulo, Santo Anastácio, abandonada por Fabrício ao seguir rumo à capital para cursar Letras, é tema de seu livro de poemas, assim como o amor e o erotismo, invocados sempre por meio de uma linguagem precisa, que tira da fala coloquial e da experiência cotidiana o corte certeiro do ritmo que, ao lado de imagens marcantes, constrói a poesia.
O poema de abertura de Movediço fala das impressões do poeta na metrópole que, apesar de se abrir a ele, às vezes, como manhã de maio, não possui, como a cidade da infância, o cheiro fértil dos quintais cobertos por caquis podres e a terra revolvida por minhocas e caramujos, na qual se forjou a voz poética que, no final do livro, se anuncia “antig[a] e/ movediç[a]/ como o mangue” – fértil, perene, mas sempre em mutação.
Acontecia às vezes
da cidade
se abrir como manhã de maio
na minha frente hoje
entanto há nem
vento solução
de nuvem manga
mordida no úmido quintal
onde minhocas caramujos caquis podres
MOVEDIÇO
sou antigo e
movediço
como o mangue
não sei
como não enlouqueci
aos 16
ainda tenho forças
pra destruir este quarto
este corpo os postes
da rua –
mas não posso
morrer não posso
não assim
maravilhado
A última estrofe de “Movediço”, ao retomar os versos de Ferreira Gullar – “Não quero morrer não quero/ apodrecer no poema” (GULLAR, F. “Arte poética”. In: Melhores poemas. Seleção e apresentação de Alfredo Bosi. São Paulo: Global, 2000, p 146) – instaurando, no entanto, um novo ritmo, por meio da divisão singular dos versos, e novos significados, ao mudar o verbo “querer” para “poder”, finaliza o poema que dá título ao livro, falando do maravilhamento dos olhos do poeta ao contemplar a vida, estado que o impulsiona para a criação poética marcada pela experiência viva, evitando, como Gullar, “que o cadáver de [suas] tardes/ [...] venha feder [na] manhã feliz” do leitor dos poemas.
O estado de maravilhamento marca um outro texto de Movediço, “Céu Azul”.
CÉU AZUL
O céu azul é o poético sem mediação
olho e céu se entendem
você fica do lado de fora
pensando nos seus problemas
de homem moderno comum
até que pede licença
e sai de fininho
com seu olho orgulhoso
que sabe
(você sabe)
mais que você
João Luiz Lafetá, citando comentários de Bachelar sobre as imagens derivadas do “céu azul”, nos lembra que, “no espelho sem moldura [do azul] [...] o mundo imaginado é posto antes do mundo representado, em que o conhecimento poético precede o conhecimento racional”. (LAFETÁ, J. L. Figuração da intimidade. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p 166).
Os pensamentos racionais do homem moderno, não passíveis de apreender o poético – ou a Vontade que, de acordo com Schopenhauer, mora atrás dos fenômenos – são colocados, no poema de Fabrício, em oposição à contemplação maravilhada que consegue apreender o que existe por trás da representação do mundo.
A arte repete em suas obras as Idéias apreendidas por pura contemplação, o essencial e permanente de todos os fenômenos do mundo [...]. Sua única origem é o conhecimento da Idéia; seu único fim, a comunicação desse conhecimento [...]. A arte [...] retira o objeto de sua contemplação da torrente do curso do mundo e o isola diante de si; e esse particular, que era na torrente fugidia uma parte ínfima a desaparecer, torna-se um representante do todo (SCHOPENHAUER, A. Metafísica do Belo. Trad. Apres. e notas de Jair Barbosa. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p 59).
Corsaletti, ao apontar a experiência de ver o poético como ato passível de ser realizado pelo leitor – “você” –, coloca a apreensão da poesia ao alcance de todos. Transformar essa intuição do poético em arte, no entanto, exige o trabalho posterior do poeta".
terça-feira, 3 de fevereiro de 2009
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6 comentários:
Caro professor,
agradeço muito a postagem de meu texto e, ainda mais, os comentários elogiosos! É uma honra participar de seu blog.
Abraços
Prezada Cristiane,
Você já fica sabendo que a próxima postagem será sobre a sua poesia. Ela merece ser conhecida por mais gente.
Obrigado e um grande abraço
pessoal,
acho que está faltando mais afinco nos estudos das artes, onde, obviamente, a poesia se encontra... achar este contemporâneo GRANDE poeta é rebaixar toda a criação litarária (digo as feitas por artistas,não por poetas de botequins) de Homero até então... que tal lerem um pouco mais de Pessoa, João Cabral, Baudelaire? Só pra começar -- com certeza eles podem limpar as lentes dos seus óculos!
Mary, seu comentário faz lembrar a recepção que os modernistas tiveram no começo do século XX, rejeitados pelos passadistas de última (primeira?) hora, mas compreendidos adequadamente depois. É difícil mesmo se conseguir compreender os contemporâneos. Talvez você possa tentar "ver com olhos livres", como lembravam nossos modernistas. Não se esquecendo que a tradição foi sempre reconhecida e absorvida, tanto naquela época, como hoje, entre os contemporâneos, mas de forma refletida.
Abraços
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