quarta-feira, 3 de agosto de 2011

GALERIA DOS NOVOS ESCRITORES - Maria Célia Martirani

Maria Célia Martirani Bernardi Fantin nasceu em São Paulo, em 1959. Foi aí, quando estudante do Colégio Dante Alighieri, que começou a interessar-se pela língua italiana. Formou-se em Direito pela USP. Em seguida, mudou-se para Santa Catarina, onde permaneceu sete anos. Foi um tempo e um espaço que lhe conferiram muitas vivências que hoje apresenta em seus textos.
A autora atualmente reside em Curitiba, onde, além do exercício do magistério, inclusive na Universidade Federal do Paraná, leciona a língua e a literatura italianas. Ao lado dessas atividades profissionais, Maria Célia nunca deixa de lado o ofício de escrever. É já uma escritora consagrada nos meios literários da capital paranaense. Tem dois livros publicados: Recontando, de 1993, e Para que as árvores não tombem de pé-Affinché gli alberi non cadano in piedi, publicado, portanto,em edição bilíngue, português e italiano, em 2008.
Maria Célia Martirani publicou ainda na Revista de Literatura e arte etcetera, número 9, da Travessa dos Editores (2006), a “Entrevista com Alessandro Baricco: à procura do velho narrador que habita em cada um de nós”. Colabora com a Revista Ideias. Para esta escreve contos e resenhas sobre arte, literatura e cinema.
Maria Célia Martirani, seu nome literário, é uma surpreendente escritora da atualidade. As suas obras nos surpreendem principalmente pela inovação e pelo inesperado de sua narrativa, sempre densa, poética e atual.
Seus textos são de difícil classificação quanto ao gênero. São contos, crônicas, prosa poética, tudo numa profusão que deixam sempre no leitor uma sensação de novidade, de inovação. Marcelo Franz fala, acertadamente, em “fina arte de narrar poemas e poetizar narrativas”. Esse talvez seja o ponto fulcral da obra de Maria Célia, como forma de se classificar seus textos: narrativas poéticas e poemas narrativos. Os textos são poéticos, líricos, mas podem também ser trágicos. Às vezes, as narrativas nos apresentam uma certa ingenuidade, mas, logo, em contraste, surgem outras percorridas por um fino e permanente erotismo.
Pode-se encontrar na obra de Maria Célia textos extremamente líricos, como são alguns poemas em prosa de sua autoria: No orquidário; ou poemas que se voltam à virtude infantil, como Arapuca de soltar passarinho; ou, então, este doce poema de amor: Romance. Há tantos outros, mas esses indicados ficam como exemplos.
Alguns textos narrativos, crônicas poéticas, lembram o estilo de Cecília Meireles, pela suavidade do tema e pelo lirismo, como este A uma borboleta; outros apresentam estrutura de conto ou próxima a essa forma literária, como este, uma espécie de conto inconcluso: Paulo – estação – liberdade; ou, mesmo, um conto trágico, como: Um dia, ele voltará. Outros textos são como células de possíveis romances: Pro-vocação. Há, ainda, textos a nos mostrarem a consciência de problemas sociais, como o último conto daquele conjunto de três, em que entram o filho, o pai e a mãe: Vem comigo, mãe!, ou este outro com características do Existencialismo: Natal; e para concluir esta exemplificação, um conto que encerra em si um forte caráter existencialista à Vergílio Ferreira: O acorde final.
Ao colocar por último o conto que dá título à obra, Para que as árvores não tombem de pé..., a autora cria uma espécie do que os Formalistas Russos convencionaram denominar estranhamento, o que confere a um texto o grau de literariedade. Para nós, simples leitores, o texto de Maria Célia Martirani nos leva a considerar como uma atitude literária inovadora. Rompe com o comum, com o normal. Note-se ainda que esse texto Para que as árvores não tombem de pé constitui um hino às árvores, em especial ao pinheiro. Nas palavras entrecortadas pelas pausas marcadas pelas vírgulas, a autora parece demonstrar o sentimento de perda daquela que é a árvore-símbolo. Desse conto, aqui se reproduzem, em homenagem à autora, as suas próprias palavras: “Quando, triste e belo, do alto, começou a cair, tombou inteiro, sério, despencando, com a mesma pose das madeiras que tombam de pé... Ao lado, compadecidos diante da brusca morte, curvam-se, frágeis e simples, os solidários bambus...”.
Uma obra poliforme, multívoca, como é a de Maria Célia não se resume a simples exemplos. Mesmo que é um risco o leitor apontar textos, talvez tirando o prazer da descoberta de outros leitores. Eu, antes de tudo, quis fazer uma leitura atenta de um livro que me tocou fundo pela beleza literária do texto.
Para exemplificar a narrativa curta de Maria Célia Martirani, selecionei por critério estritamente pessoal, dois textos: Dessacralização e A uma borboleta. Embora pequenos fragmentos, espero que dêem uma idéia do que seja o texto de Para que as árvores não tombem de pé.
1.dessacralizaçãoDespreocupados e livres, caminhavam, matutinos, as calçadas de qualquer domingo. Uma alegria bêbada, não de quem bebeu muito, mas se embriagou demais com a simples presença de um na vida do outro. Que não era simples, mas era o bastante, eles que só assim se bastavam, puros de ar, água e sol... Falavam e riam, em risos falados mansos, fadados que estavam apenas àquela miúda felicidade... Os passos dele largos, os dela curtos, ela que tentava a todo custo o acompanhar... Daí, a igreja... Entraram pela lateral... Entraram só por entrar... Não, não que quisessem assistir missa, melhor a igreja assim vazia, só os dois, só um pouquinho, só agradecer... Que será que agradeciam? A mão dele envolvendo toda a frágil mãozinha dela, ela que de tão pequena, quase nem batia na altura do ombro dele... Ele, que de tão alto, baixava generoso olhar pra encontrar o dela... Ajoelharam e apenas se deixaram ver por alguma imagem, algum santo, algum anjo voando solto no redondo da alta cúpula-vitral de luz. E foi com essa espécie de sabe-se lá que luz, que de lá logo saíram agora enlaçados, nos novos laços de fita de alguma esperança...
(De Para que as árvores não tombem de pé, p. 169)

2.a uma borboleta
Empresta-me tua frágil asa frágil, eu quero ter forças para voar. Quero apreender só levezas... Não suporto mais o centro dessa gravidade toda de cenho franzido. Não posso com o peso dos pés, nesses trilhos imantados de ferro.
Ensina-me a polinizar o azul, tocando as hastes-pati¬nhas na volúpia do infinito. Faz-me mamar gotículas bran¬cas, na flor de um copo de leite... Eu preciso chover arcos de cores na íris do céu, conferir, à densidade verde, um farfalhar de pétalas ágeis. Pois a monotonia imóvel dos sérios silêncios da floresta, só perde o medo mistério, quando tuas asas aquareladas pousam na barriga das folhas e as fazem rir alegres cócegas. E o universo saltita numa efusão jocosa, dá gargalhadas de luz, apenas porque o tocaste no abre-fecha ligeiro do leque sedoso de tua se¬dução.
(De Para que as árvores não tombem em pé, p.237.)

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