quarta-feira, 29 de setembro de 2010

CAIM, DE JOSÉ SARAMAGO

1. CAIM NA BÍBLIA
Caim, o primogênito de Adão e Eva, ao matar seu irmão Abel, torna-se o primeiro homicida da história da humanidade. Por esse crime, quando Deus ainda aparecia e conversava diretamente com as suas criaturas, apareceu ao assassino e cobrou dele contas do irmão. Caim, sem poder dar-lhe uma justa explicação, pois o seu crime fora meramente por ciúme de seu irmão - este recebera mais atenção do Senhor pelas oferendas que devotara ao Criador, quando as ofertas dele, Caim, foram pouco apreciadas. Então, o Senhor, dirigindo-se a Caim, amaldiçoou-o, dizendo: “Agora, pois, serás maldito sobre a terra, que abriu a sua boca e recebeu da tua mão o sangue do teu irmão. Quando a cultivares, ela não te dará os seus frutos; serás vagabundo e fugitivo sobre a terra”. (Gên., IV, 10-13). Em cumprimento de sua maldição, “Caim tendo-se retirado de diante da face do Senhor, andou errante sobre a terra”. (Gên., IV, 16).
Desde então, com base em Caim e Abel, tem-se atribuído às ocupações de ambos alguns significados: Caim inicialmente dedicou-se à agricultura, profissão menos valorizada pelo Senhor; Abel, ao contrário, era pastor, o que o fez sobressair aos olhos do Senhor. Com a maldição de ter que vagar pelo mundo, Caim abandonou o cultivo, ocupação que exigia a fixação a determinado lugar, e tornou-se assim o primeiro andarilho sobre a face da terra, o primeiro “turista”.
2. CAIM NA FICÇÃO
Caim, alimentado pelo ciúme e atormentado pela maldição, tem sido um dos grandes temas da literatura. Personalidade complexa, como fratricida ou como símbolo do eterno viajante, Caim sai do texto bíblico para figurar em páginas de inúmeras obras literárias.
Recentemente, José Saramago lançou mais uma de suas polêmicas obras, exatamente com o título Caim. Como já fizera em O Evangelho segundo Jesus Cristo, o prêmio Nobel de Literatura volta-se agora para o Velho Testamento, lá para o Gênesis, início de tudo. Recontando o texto bíblico à sua maneira, Saramago vai temperando a sua narrativa com fatos relevantes da Bíblia enxertados com passagens fictícias, para conferir-lhe aquela ironia e o gosto por romper velhas tradições, quer das estruturas sociais, quer das religiosas.
Saramago visivelmente faz de Caim a personagem preferida, não só pelo título com que nomeia a obra, mas pelo desenrolar da narrativa. Para ele Abel chega a merecer a morte. Vejam-se os textos abaixo:
1.
E houve o dia em que adão pôde comprar um pedaço de terra, chamar-lhe sua e levantar, encostada a uma colina, uma casa de toscos adobes, aí onde já poderiam nascer os seus três filhos, caim, abel e set, todos eles, no momento próprio das suas vidas, gatinhando entre a cozinha e o salão. E também entre a cozinha e o campo, porque os dois mais velhos, quando já cresciditos, com a ingénua astúcia da sua pouca idade, usavam de todos os pretextos válidos e menos válidos para que o pai os levasse consigo, montados no burro da família, para o seu local de trabalho.
Cedo se viu que as vocações dos dois pequenos não coincidiam. Enquanto Abel preferia a companhia das ovelhas e dos cordeiros, as alegrias de Caim iam todas para as enxadas, as forquilhas e as gadanhas, um, fadado para abrir caminho na pecuária, outro, para singrar na agricultura. Há que reconhecer que a distribuição da mão-de-obra doméstica era absolutamente satisfatória, uma vez que cobria por inteiro os dois mais importantes sectores da economia da época.
2.

Desde a mais tenra infância Caim e Abel haviam sido os melhores amigos, a um ponto tal que nem irmãos pareciam, aonde ia um, o outro ia também, e tudo faziam de comum acordo. O senhor os quis, o senhor os juntou, assim diziam na aldeia as mães ciumentas, e parecia certo. Até que um dia o futuro entendeu que já era hora de se apresentar. Abel tinha o seu gado, Caim o seu agro, e, como mandavam a tradição e a obrigação religiosa, ofereceram ao senhor as primícias do seu trabalho, queimando Abel a delicada carne de um cordeiro e Caim os produtos da terra, umas quantas espigas e sementes. Sucedeu então algo até hoje inexplicado. O fumo da carne oferecida por Abel subiu a direito até desaparecer no espaço infinito, sinal de que o senhor
aceitava o sacrifício e nele se comprazia, mas o fumo dos vegetais de Caim, cultivados com um amor pelo menos igual, não foi longe, dispersou-se logo ali, a pouca altura do solo, o que significava que o senhor o rejeitava sem qualquer contemplação. Inquieto, perplexo, Caim propôs a Abel que trocassem de lugar, podia ser que houvesse ali uma corrente de ar que fosse a causa do distúrbio, e assim fizeram, mas o resultado foi o mesmo. Estava claro, o senhor desdenhava Caim. Foi então que o verdadeiro carácter de Abel veio ao de cima. Em lugar de se compadecer do desgosto do irmão e consolá-lo, escarneceu dele, e, como se isto ainda fosse pouco, desatou a enaltecer a sua própria pessoa, proclamando-se, perante o atónito e desconcertado Caim, como um favorito do senhor, como um eleito de deus. O infeliz Caim não teve outro remédio que engolir a afronta e voltar ao trabalho. A cena repetiu-se, invariável, durante uma semana, sempre um fumo que subia, sempre um fumo que podia tocar-se com a mão e logo se desfazia no ar. E sempre a falta de piedade de Abel, os dichotes de Abel, o desprezo de Abel.
3.

Um dia Caim pediu ao irmão que o acompanhasse a um vale próximo onde era voz corrente que se acoitava uma raposa e ali, com as suas próprias mãos, o matou a golpes de uma queixada de jumento que havia escondido antes num silvado, portanto com aleivosa premeditacão. Foi nesse exacto momento, isto é, atrasada em relação aos acontecimentos, que a voz do senhor soou, e não só soou ela como apareceu ele. Tanto tempo sem dar notícias, e agora aqui estava, vestido como quando expulsou do jardim do éden os infelizes pais destes dois. Tem na cabeça a coroa tripla, a mão direita empunha o ceptro, um balandrau de rico tecido cobre-o da cabeça aos pés. Que fizeste com o teu irmão, perguntou, e Caim respondeu com outra pergunta, Era eu o guarda-costas de meu irmão, Mataste-o, Assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu daria a vida pela vida dele se tu não tivesses destruído a minha...

terça-feira, 14 de setembro de 2010

PROFESSOR JOÃO BAPTISTA COBBE – Depoimento de um aluno

João Baptista Cobbe em foto da formatura no curso de Direito da então Universidade do Paraná, nos anos 50.


1 Introdução

Inicialmente, digo que eu fui um dos felizardos meninos que passaram por suas aulas de Português e de Latim no Colégio Diocesano de Santa Cruz, em Castro - Paraná, nos famosos anos dourados de 1950.

Nos anos de 1940 e 1950, o Colégio Diocesano de Santa Cruz, em Castro, pertencente à Diocese de Ponta Grossa, era parâmetro de bom ensino e principalmente de boa educação em todo sudeste e sul do Brasil. Para ele, acorriam alunos de todo o interior e mesmo da capital de São Paulo, de Minas, do próprio Paraná, enfim de diferentes estados do Brasil. A maior parte desses alunos vinha como alunos internos, outros que tinham parentes, ou que se hospedavam em velhas pensões, ou em casas que alugavam quartos, permaneciam como externos.

Eu, vindo do interior do próprio município de Castro, de uma localidade chamada Cerrado do Guararema, permaneci como externo, inicialmente morando com uma família que havia morado no velho Cerrado e agora se encontrava com comércio estabelecido na cidade sede do município. Mais tarde, meus pais construíram uma pequena casa de madeira em uma vila da cidade, e passei a morar inicialmente com uma irmã e um primo, depois com meus próprios pais.

Foi assim que pude cursar o ginásio e o científico no famoso Colégio e ter o professor Cobbe como um dos principais educadores. Posso afirmar que ele era o preferido por toda a turma.

2 Professor João Baptista Cobbe

No início do mês de março de 1950, quando iniciaram as aulas no Colégio, aguardávamos no pátio, quando soou uma sirene. Formamos fila de acordo com a série. Nós, os novatos, éramos instruídos pelos inspetores, geralmente alunos internos que já cursavam o científico, e recebiam uma espécie de bolsa-escola, para colaborar com a disciplina do Colégio.

Quem veio ao topo da escadaria para receber a turma de calouros foi o Prof. Cobbe. Portanto, ele foi o meu primeiro professor do Ginásio e um dos principais pela minha vida toda. Foi com ele que aprendi a gostar ainda mais de Português e receber lições de Latim, que já me chamava a atenção quando na Igreja Matriz de Castro, lia num pórtico: Ego sum panis vitae. Havia outras inscrições, mas essa era a que mais me chamava a atenção.

Brincando pelo pátio do Colégio, fui aos poucos encontrando placas gravadas no cimento com inscrições, como Ad perpetuam rei memoriam e Ad majorem Dei gloriam. Depois, fiquei sabendo que era o Prof. Cobbe quem reproduzia aquelas frases . Ele estudara em Seminário do estado de Santa Catarina e lá aprendera a língua do Lácio e entrara em contato com tais frases.

As aulas continuavam, para mim, como um encantamento. Muitos dos colegas talvez não dessem o valor que eu dava, porque eu sabia o sacrifício que meus pais tão pobres faziam para me manter no curso ginasial. Por isso, muitos tentavam brincadeiras nas aulas, mas o Prof. Cobbe sem usar de nenhum método ríspido para evitar a indisciplina, conseguia de modo tranquilo dominar a turma e sempre prosseguir em suas aulas.

Terminamos o ginásio e já no curso científico não tivemos mais o Prof. Cobbe como nosso professor. Vieram outros competente e também amigos, como o seu colega Prof. Lourival Leite de Carvalho, que passou a dar para nós aulas de Literatura Brasileira e Literatura Portuguesa. Completava-se, assim, a minha formação no que se poderia chamar um proto-curso de Letras.

Mais tarde, também me tornei professor e procurei fazer como fazia aquele que eu erigira como professor e mestre, sempre tranquilo, compreensivo, competente. Procurava seguir o seu exemplo. E fui cursar Letras, graduação, especialização, mestrado e doutorado, mas as raízes estavm firmes lá nas aulas do Prof. Cobbe.

2 Novos rumos profissionais de João Baptista Cobbe

O Prof. Cobbe foi para Curitiba terminar o seu curso de Direito, que já havia começado. Mais tarde, seria o grande advogado, o vereador da cidade de Castro e o exemplar Promotor de Justiça por várias comarcas do Paraná: Castro, Jaguariaíva, Piraí do Sul, Tibagi, Arapongas, Mallet, Cascavel e Curitiba.

Em consequência da sua atuação, várias homenagens foram-lhe prestadas por câmaras municipais das cidades por onde passara como Promotor ou em outra função pública. Em Cascavel, assumiu papel de destaque na sociedade da grande cidade que surgia na terra ainda poeirenta do oeste do estado. Foi o fundador e presidente do Automóvel Clube de Cascavel; sócio-fundador do Cascavel Country; presidente do Tuiuti Esporte Clube. Em Castro, sua terra natal, recebeu o título de Cidadão Benemérito.

Depois foi atuante administrador público. Foi superintendente do novo IPE – Instituto de Previdência e Assistência do Paraná, atualmente, hoje, embora em formato diferente, o Paraná-Previdência; diretor-presidente da Famepar - Fundação de Assistência aos Municípios do Paraná , assessor da vice-governança do Estado do Paraná – governo Jayme Canet Junior; assessor da Secretaria de Justiça – governo Ney Braga; secretário e desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná; diretor geral da Corregedoria da Justiça do Tribunal de Justiça Secretaria de Administração do Paraná, além de outros inúmeros cargos públicos de relevância funcional e política.

3 O reencontro com o Professor Cobbe

Inicialmente o reencontro se deu por telefone por intermédio de uma então minha aluna no curso de Letras na PUCPR. Acredito que tenh sido pelo início do ano de 1987. Em uma noite, recebi um telefonema. A pessoa identificou-se dizendo que ela e sua filha eram minhas alunas na PUCPR e que soube pelo marido, que ele me conhecera. Ela era esposa de João Baptista Cobbe. Naquela, noite, falei com ele rapidamente por telefone.

Logo depois, creio que ainda no mesmo ano de 1987, quando eu tratava do andamento de minha aposentadoria no magistério estadual, fui até a Secretaria de Administração, que então funcionava no Edifício projetado por Oscar Niemeyer, inicialmente para sede do Instituto de Educação do Paraná e que hoje foi integrado em um novo projeto que constitui o MON – Museu Oscar Niemeyer. Lá, fui recebido por João Baptista Cobbe, um dos assessores da Secretaria e que me atendeu com a solicitude própria de uma pessoa educada, interessada e competente.

4 Um reencontro atual com a memória de João Baptista Cobbe

Há poucos dias, em uma agência bancária, casualmente, encontrei-me com uma senhora que se apresentou e me lembrou que era Hilda Souza Cobbe, minha ex-aluna no curso de Letras, e agora viúva de João Baptista Cobbe. A notícia chocou-me. O velho professor, talvez o único que ainda vivia daqueles professores do Colégio Diocesano de Santa Cruz, de Castro, lá do início dos anos 50.

Comecei a indagar sobre o acontecimento e fiquei sabendo que já haviam se passado aproximadamente cinco meses da morte do nosso professor. Faleceu em 4 de abril deste ano de 2010. Estávamos a 10 de setembro. Viveu 85 anos férteis de trabalho, dedicação à profissão e aos cargos públicos que exerceu e principalmente à família. Deixa uma lacuna na vida dos amigos, uma perda inconsolável para famliares, uma saudade para todos nós que o conhecemos.

A vida, como sabemos, é assim. O poeta português Fernando Pessoa, na voz do heterônimo Ricardo Reis, avisa-nos:

Talvez que já nos toque
No ombro a mão, que chama
À barca que não vem senão vazia


Essa “Barca que não vem senão vazia” costuma levar da terra os bons. Virão outros, mas nenhum igual. Esses nunca serão como aqueles que partem e nos deixam todos órfãos de sua companhia.

5. Homenagem in memoriam

Em homenagem ao professor que me despertou para o Latim e para as línguas clássicas, esta homenagem. Que aqui fiquem gravadas algumas inscrições latinas de que tanto ele gostava:

- Que a sua vida tenha servido Ad maiorem Dei Gloriam.
- Como disse Cristo em suas últimas palavras na cruz: Consummatum est!
- Agora, que sua vida findou, que seu corpo Requiescat in pace.
- Em oração, peço ao bondoso Pai: Requiem aeternam dona eis, Domine.

Concluindo este depoimento, deixo, como minhas últimas palavras, o seguinte: graduei-me em Letras Clássicas – Bacharelato, em 1959 e Licenciatura, em 1960 e fiz Especialização em Literatura Brasileira em 1965, esses cursos na Universidade Federal do Paraná. Mais tarde, em 1979, completei o Mestrado em Teoria Literária na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Finalmente, doutorei-me em Letras, em 1983, na USP – Universidade de São Paulo, com estágio em Portugal, junto à Biblioteca Nacional de Lisboa.
Tudo isto para declarar que, com todos esses cursos, a origem, os fundamentos mais profundos do meu conhecimento da Língua Portuguesa e das Letras e também o amor ao estudo se encontram lá nos anos de 1950, no Colégio Diocesano de Santa Cruz, de Castro, nas aulas do Prof. Cobbe.



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Alguns dados biográficos:
- João Batista Cobbe nasceu em Castro, em 24 de janeiro de 1925, filho de Marcemino Cobbe e Maria Rosa Nogaroli Cobbe. Cursou o primário no Colégio José e no Colégio Santa Cruz, ambos da cidade de Castro. Fez o curso ginasial no Seminário Arquidiocesano, em Brusque, Santa Catarina. O Seminário Arquidiocesano de Brusque é também conhecido por Seminário Nossa Senhora de Lourdes Azambuja-Brusque. Pertencia à Arquidiocese de Florianópolis.
João Baptista Cobbe frequentou o Seminário nos anos 40, quando era reitor o Pe. Afonso Nieheus. Depois, vieram outros, como o então padre Jaime de Barros Câmara, que mais tarde se tornaria o célebre Arcebispo do Rio de Janeiro, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
- João Baptista Coaabbe prestou o sercviço militar em Castro. Mais tarde, cursou Direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
- Profissionalmente, devido à sua origem modesta, exerceu diversas atividades profissionais, desde trabalhador em obras, sacristão da Matriz de Castro, secretário do Colégio Diocesano de Santa Cruz. No magistério, foi professor de latim, português e história, no Ginásio. No jornalismo, foi colaborador do importante jornal da época na região, o Castro-Jornal.
- Bacharel em Direito, exerceu a profissão como advogado e foi aprovado em concurso público no Ministério Público. Em 1956, assumiu como Promotor de Justiça, cargo que exerceu em Castro, Jaguariaíva, Piraí do Sul, Tibagi, Arapongas, Mallet, Cascavel e Curitiba.
- Em Cascavel, de 1961 a 1973, exerceu o cargo de Promotor de Justiç e foi também professor de Direito Usual e Legislação Aplicada no Colégio Marista de Cascavel. Na sociedade da jovem cidade que brotava pujante no oeste do Paraná, exerceu diversos cargos de relevância social e cultural e esportiva.
- Em cargos públicos administrativos, já em Curitiba, atuou em vários órgãos, como governança do estado, secretarias, institutos e fundações estaduais e também no judiciário paranaense.

Faleceu em paz ao lado de seus familiares, no dia 4 de abril de 2010.

sábado, 11 de setembro de 2010

MEU CARO CHICO Texto de Paulo Camargo

Ilustração: Felipe Lima
Meu caro Chico
“As dezenas, senão centenas de músicas que conheço de cor e salteado, têm o superpoder de me devolver a mim. E isso não tem preço.”

Publicado em 11/09/2010 pcamargo@gazetadopovo.com.br

A idolatria costuma estar associada à adolescência. Adultos, quando nutrem uma paixão tão intensa por alguém fora de seu alcance, correm o risco de parecer pueris, em descompasso com a idade que têm.
Mesmo assim, não são poucos os que carregam essa pulsão dos verdes anos à maturidade. Talvez porque seja uma forma de nos reconectarmos com instâncias menos cínicas. E assim, resgatar um pouco daquilo que um dia fomos e, de certa forma, mantemos engavetado em nome da dita maturidade.
Com o lançamento, pela editora Abril, de uma caprichada coleção que inclui quase toda a discografia oficial de Chico Buarque, em formato de CDs acompanhados de livretos, vi-me frente a um dilema dos mais prosaicos: comprar ou não discos que, em sua grande maioria, já tenho, à medida que chegam todas as semanas às bancas e livrarias. Existe o desejo, confesso, mas também o pé no freio, a cabeça que diz: “Não, bobagem”.
Esse conflito, aparentemente tolo, me fez pensar sobre por que gosto tanto do Chico. E, depois de enumerar vários motivos, todos muito racionais – como a qualidade e a importância histórica das composições e a riqueza poética das letras –, caiu a ficha.
As dezenas, senão centenas de músicas que conheço de cor e salteado, têm o superpoder de me devolver a mim. E isso não tem preço.
Quando ouço, por exemplo, pérolas como “O Que Será (À Flor da Terra)”, “Passaredo” ou “A Noiva da Cidade”, me vejo aos 11, 12 anos, contando os cruzeiros para comprar Meus Caros Amigos na filial da rede Rei do Disco em um velho shopping de Copacabana, no Rio de Janeiro.
Não tinha ideia, pelo menos não à primeira audição em uma radiola Grundig, que a letra de “Meu Caro Amigo”, composta em parceria com Francis Hime, falava do Brasil sob a bota do governo militar.
Foram necessárias algumas aulas de Português e História com professores veladamente “subversivos” para compreender o que queriam expressar versos como “Meu caro amigo me perdoe, por favor/ Se eu não lhe faço uma visita/ Mas como agora apareceu um portador/ Mando notícias nessa fita/ Aqui na terra tão jogando futebol/ Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll/ Uns dias chove, noutros dias bate sol/ Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta”.
Lembro-me do momento da revelação, o instante em que percebi que, por trás do delicioso samba de Chico e Francis, escondia-se amarga ironia. A letra era uma mensagem melancólica a amigos que (como o próprio Chico) tiveram de tirar o time de campo e deixar do país por estarem na mira da ditadura.
A idolatria, que aqui assumo sem pudores de jornalista cultural, está muito ligada à sensação, desengavetada nos últimos dias, de que ouvir Chico Buarque sempre foi, e ainda é, uma experiência estética. Algo que fratura minha rotina, de horários, obrigações, deveres e responsabilidades, e me recoloca em contato com territórios mais sensíveis.
Muitas de suas canções me provaram ao longo dos últimos 30 anos, por mais que o cotidiano por vezes me force a esquecer, que sou capaz de pensar e sentir ao mesmo tempo. São pedaços de mim.
E lá vou eu comprar a coleção da Abril.


(Paulo Camargo é editor do Caderno G. do jornal Gazeta do Povo.)
(CAMARGO, Paulo. Meu Caro Chico. Gazeta do Povo, Caderno G Idéias, 11.set.2010, p.5.)
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Faço meu o texto de Paulo Camargo.
Acabo de resolver também o meu dilema. Vou correr a um shopping comprar a nova coleção.
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Jayme Ferreira Bueno