Erasmo de Rotterdam ao escrever O Elogio da Loucura tocou em um dos temas mais complexos da produção poética. De onde provém o processo criador?
Os Antigos, principalmente os gregos, consideravam que havia necessidade de um furor divino para o humano tornar-se um poeta, um demiurgo, um criador. O fenômeno que alguns denominavam inspiração poética, os gregos chamavam de entusiasmo (de en + theos = estar com deus em si). Assim, o poeta é um possesso, um possuído. O poeta produz quando abandona a sua própria consciência e se deixa invadir por uma divindade.
A palavra poesia (grego poésis) significa “uma ação para fazer algo”. O poeta (poietés) é “aquele que age, que faz”. Segundo Platão, é o entusiasmo que leva à ação.
Para Erasmo, o que move o ser humano à ação deixa de ser o entusiasmo, ou inspiração divina, e passa a ser a loucura. Segundo ele, a sobriedade inibe a ação. Só age quem está possuído pela loucura: “O louco, ao contrário, tomando a iniciativa de tudo, arrostando todos os perigos, parece-me alcançar a verdadeira prudência” (p. 47). Continua a afirmar: “Se a prudência consiste no uso comedido das coisas, eu desejaria saber qual dos dois merece mais ser honrado com o título de prudente: o sábio que, parte por modéstia, parte por medo, nada realiza, ou o louco, que nem o pudor (pois não o conhece) nem o perigo (porque não o vê) podem demover de qualquer empreendimento” (p. 47).
2. Poetas que enaltecem a loucura
Inúmeros poetas prestaram homenagem à loucura. Na literatura portuguesa, o exemplo a ser citado será um poema de Fernando Pessoa. O exemplo da poesia brasileira, neste espaço, será um texto de Mario Quintana:
GAZETILHA - Álvaro de campos, heterônimo de Fernando Pessoa:
Dos Lloyd Georges da Babilônia
Não reza a história nada.
Dos Briands da Assíria ou do Egito,
Dos Trotskys de qualquer colônia
Grega ou romana já passada,
O nome é morto, inda que escrito.
Só o parvo dum poeta, ou um louco
Que fazia filosofia,
Ou um geômetra maduro,
Sobrevive a esse tanto pouco
Que está lá para trás no escuro
E nem a história já historia.
Ó grandes homens do Momento!
Ó grandes glórias a ferver
De quem a obscuridade foge!
Aproveitem sem pensamento!
Tratem da fama e do comer,
Que amanhã é dos loucos de hoje!
O AUTO-RETRATO - Mário Quintana
No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Terminado por um louco!
. 2. Poetas tomados pela loucura
Em Portugal, o aparecimento do Modernismo, em 1915, deu-se com a revista Orpheu. A poesia que nela se publicou foi taxada de “poesia de loucos”. Os organizadores e editores da Revista, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, foram, então, à busca de poemas de alguém que realmente fosse doente mental. Como já conheciam a poesia de um interno de Hospício, a tarefa não foi difícil. O interno era o poeta Ângelo de Lima.

A sua poesia foi adotada pelos primeiros modernistas e começou a ser difundida. O segundo número de Orpheu publicou um conjunto de poemas. O soneto seguinte, publicado na Revista, é um exemplo:
EDD´ORA ADDIO... – MIA SOAVE!...
— Mia Soave... — Ave?!... — Almeia?!...
— Mariposa Azual...— Transe!...
Que d’Alado Lidar, Canse...
— Dorta em Paz...— Transpasse Ideia!...
— Do Ocaso pela Epopeia...
Dorto...Stringe... o Corpo Elance...
Vai à Campa... — Il c’or descanse...
— Mia soave... — Ave!... — Almeia!...
— Não dói Por Ti Meu Peito...
— Não Choro no Orar Cicio...
— Em Profano... — Edd’ora...Eleito!...
— Balsame — a campa — o Rocio
Que Cai sobre o Ultimo Leito!...
— Mi’Soave!... Eddora Addio!...
Quanto à forma, os poemas de Ângelo de Lima sempre se mostrou perfeitamente bem estruturada. O mesmo, porém, não se pode dizer da sua linguagem, que se apresenta bastante desviada da linguagem considerada normal. A sua poesia foi altamente valorizada pelos simbolistas e depois pelos modernistas, principalmente pelo emprego de neologismos e pela sonoridade de seus versos. Há também, nessa poesia, sinais precursores do Surrealismo, que só iria aparecer na França, em 1924.
São notáveis alguns outros sonetos de Ângelo de Lima, como este:
Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz, do esquecimento...
Pára surpreso, escrutador, atento,
Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado...
Pára e fica e demora-se um momento.
Pára e fica na doida correria...
Pára à beira do abismo e se demora
E mergulha na noite escura e fria
Um olhar de aço que essa noite explora...
Mas a espora da dor seu flanco estria
E ele galga e prossegue sob a espora.
Neste poema, pode-se observar uma estrutura perfeitamente definida e uma linguagem de alguém que se encontra de posse de suas faculdades mentais. Acontecia com Ângelo de Lima, o que é normal em pessoas com tal doença, momentos de lucidez em meio a tantos outros de desvarios. Por vezes, a sua poesia abandona aquele estilo de alucinação e passa a retratar estados de lucidez.
Um outro texto típico da poética de Ângelo de Lima é este:
OLHOS DE LOBAS
Teus olhos lembram círios
Acesos n'um cemitério...
(Dr. Rogério de Barros)
Têm um fulgor estranho singular
Os teus olhos febris... Incendiados!...
Como os Clarões Finais... - Exaustinados
Dos restos dos archotes, desdeixados...
— Nas criptas d'um Jazigo Tumular!...
— Como a Luz que na Noute Misteriosa
— Fantástica - Fulgisse nas Ogivas
Das Janelas de Estranho Mausoléu!...
— Mausoléu, das Saudades do Ideal!...
— Oh Saudades... Oh Luz Transcendental!
— Oh memórias saudosas do Ido ao Céu!...
— Oh Pérpetuas Febris!... - Oh Sempre Vivas!...
— Oh Luz do Olhar das Lobas Amorosas!...
Este poema se destaca por uma espécie de dedicatória a um médico, possivelmente aquele que o atendia. A epígrafe denota, além do carinho pelo clínico, o estado em que muitas vezes se encontrava Ângelo de Lima e que se refletia em seus olhos.
Quanto à estrutura se mostra perfeitamente regular como uma forma pouco mais livre do que um soneto, porém conservando o equilíbrio na construção de dos versos, perfeitos decassílabos. Quanto à linguagem fica a meio-termo entre aquela que retrata momentos de lucidez e outra em que aparecem estranhas percepções. Emprega termos exóticos, o que era comum entre os simbolistas, e que não chegam a pertubar o entendimento do texto.