terça-feira, 22 de junho de 2010

A MORTE DE SARAMAGO


José Saramago feliz ao lado de sua esposa, também feliz, Pilar del Río


Pois é, amigos! Morreu Saramago.

Leiamos estas duas notícias:
1. “A Fundação José Saramago emitiu esta sexta-feira um comunicado em que informa que o Nobel português faleceu às 12:30 na sua residência de Lanzarote, em consequência de uma múltipla falha orgânica, após uma prolongada doença.
O comunicado adianta ainda que o escritor morreu ‘acompanhado pela sua família, despedindo-se de uma forma serena e tranquila’
”.

2. “O escritor Mário Cláudio afirmou esta sexta-feira que José Saramago é ‘uma figura indiscutivelmente maior das nossas letras’, considerando ‘triste e inesperada’ a sua morte.
O escritor portuense afirmou à Lusa que conhecia ‘muito bem’ José Saramago de ‘encontros internacionais’, considerando tratar-se de uma figura ‘que vai ficar por muitos e muitos anos’.‘Saramago vai durar o que durar a literatura portuguesa’, sustentou Mário Cláudio
”.

Na sexta-feira, 18 de junho, no seu refúgio da Ilha de Lanzarote, nas Canárias, morreu José Saramago. Depois de 84 anos profícuos para a literatura, para o pensamento, para a vida, nos deixa o único Prêmio Nobel de Literatura da língua portuguesa.
A vida sempre foi, para Saramago, simplesmente um oposto da morte. Declarou em entrevista a um canal de TV brasileira: “A diferença entre a vida e a morte é que antes tu estás e depois tu já não estás.”
É impressionante a lucidez com que via a chegada da morte. Na referida entrevista, que é de 2007, disse ao entrevistador algo assim: “o futuro? Estou com 84 anos, quantos anos a mais terei de vida? Três, quatro...”. Faleceu três anos depois.
Em toda a sua obra, mas especialmente em As Intermitências da Morte, de 2005, ele nos dá lições sobre a morte, a morte dele, a morte de todos nós. As lições são também, e principalmente, sobre a vida.
Na obra, refere-se a um dia particularmente diferente: “No dia seguinte ninguém morreu”. Iniciam-se, então, várias divagações sobre a vida, sobre a morte e sobre outras realidades, como o amor, que nos movem e nos atormentam. Não deixa, porém, de falar sobre a falta dessas realidades, como aconteceu com a ausência, embora temporária da morte, pois, certo dia, lá pelo sétimo capítulo do livro, ela avisa que estava de volta. E a volta da morte, agora sobre novas condições, é assustadora: “a partir da meia-noite de hoje se voltará a morrer tal como sucedia, sem protestos notório...”.
Em seguida, ela se justifica: “ofereci uma pequena amostra do que para eles seria viver para sempre...”.
Avisa, para que todos estejamos atentos, porque: “a partir de agora toda a gente passará a ser prevenida por igual e terá um prazo de uma semana para pôr em dia o que ainda lhe resta na vida”.
Esses sete dias, uma espécie de carência necessária para se colocar em dia alguns compromissos, tomarem-se algumas decisões, seriam avisados por uma carta oficialmente remetida pela Morte. Nela, de modo cortante, anucia a fatal “rescisão deste contrato temporário a que chamamos vida”.
Imagine-se, portanto, as reações daqueles que são avisados e daqueles que ainda aguardam a fatídica comunicação...

Vejam-se trechos de As Intermitências da Morte:
I. “De Deus e da morte não se tem contado senão histórias, e esta é mais uma delas.”, p. 146

II. “Por um instante a morte soltou-se a si mesma, expandindo-se até às paredes, encheu o quarto todo e alongou-se como um fluido até à sala contígua, aí uma parte de si deteve-se a olhar o caderno que estava aberto sobre uma cadeira, era a suite número seis opus mil e doze em ré maior de johann sebastian bach composta em cöthen e não precisou de ter aprendido música para saber que ela havia sido escrita, como a nona sinfonia de beethoven, na tonalidade da alegria, da unidade entre os homens, da amizade e do amor. Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte deixou-se cair de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito, e por isso é que tinha joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos escondia, e uns ombros que tremiam não se sabe porquê, chorar não será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua. Assim como estava, nem visível nem invisível, em esqueleto nem mulher, levantou-se do chão como um sopro e entrou no quarto.”, p. 158/159

III. “Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.”, p. 214

Para Saramago, mesmo uma declaração de amor, e eram muitas, à sua companheira, admiradora ímpar do homem e do escritor, tradutora, amada, Pilar del Río, haveria de ter uma referência à morte, não por morbidez, mas para ressaltar a grandeza do seu sentimento:
Se eu tivesse morrido antes de te conhecer, Pilar, teria morrido sentindo-me muito mais velho. Aos 63 anos, a minha segunda vida começou. Não posso queixar-me. As coisas que você considera importantes não são tão importantes. Eu ganhei um Prémio Nobel. E daí?

E para terminar este post, um poema de Saramago, do livro Provavelmente Alegria. 3.ed. Lisboa: Caminho, 1985. Nele, ressoa a voz do heterônimo epicurista de Pessoa, do mesmo modo como ressoava nas Odes de Ricardo Reis:

Na ilha por vezes habitada

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra em nós uma grande serenidade, /
e dizem-se as palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o sorriso de quem se reconhece /
e viajou à roda do mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.