terça-feira, 18 de agosto de 2009

LÍDIA JORGE E O DIA DOS PRODÍGIOS

LÍDIA JORGE
Quando aconteceu o 25 de abril em Portugal, Lídia Jorge era ainda uma jovem, nascida em 1946. Como todo português, também se viu empolgada pelo movimento que viria transformar aquele país. A Revolução dos Cravos, nome pelo qual se tornou conhecido o movimento das Forças Armadas, deu-se no ano de 1974.

Como fato histórico que abalou as velhas estruturas sociais de um povo, a Revolução tornou-se tema quase que obrigatório para os ficcionistas portugueses. Praticamente todos os grandes escritores, alguns estreantes e outros já consagrados, produziram obra sobre o que foi um misto do idealismo de jovens oficiais do exército português e do anseio de um povo que já não mais aceitava as condições do regime que perdurava desde os anos 20, quando Salazar assumira o poder.
Assim, surgiu um grande número de obras, que, segundo alguns críticos, constituiu um novo ciclo literário. Denominaram-no A Literatura do 25 de abril. Dos iniciantes, Lobo Antunes, com Os Cus de Judas (1979) e Lídia Jorge com O Dia dos Prodígios (1980) são os dois que mais se destacaram. Ainda em 1979, José Saramago, com Levantado do Chão, talvez tenha sido o escritor que abriu o novo ciclo. Ele e Lobo Antunes. Outros deram continuidade no ano seguinte, 1980: Agustina Bessa-Luís com O Mosteiro, e Almeida Faria com Lusitânia, além do já referido O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge. No ano de 1981 apareceu O Triunfo da Morte, de Augusto Abelaira e, em 1982, surgiram os livros de dois grandes autores que vinham produzindo há bastante tempo, desde a época do Neo-Realismo: O Rio Triste, de Fernando Namora, e Balada da Praia dos Cães, de José Cardoso Pires. Isto para citar aqueles que se consideram os mais importantes voltados para a temática do 25 de abril.
Em 1980, Lídia Jorge já se encontrava preparada para lançar uma grande obra, embora fosse com esse seu primeiro livro que iria estrear na literatura. Como professora do ensino secundário vivera anos decisivos em Angola e Moçambique em meio a uma guerra cruel, que deixava marcas profundas na terra, nos colonizados e nos colonizadores. Com essa bagagem, produziu O Dia dos Prodígios, um caso raro de aceitação do público e da crítica. De uma autora jovem surgia uma obra já madura.

A autora não se ateve apenas e nem diretamente ao fato histórico do 25 de abril. Pelo contrário, os acontecimentos surgem num ambiente de gente humilde apegada à terra e que se preocupava mais com os prodígios que vinham acontecendo no próprio lugar em que viviam, a pequena Vilamaninhos. E a realidade de uma revolução acontecida longe, em Lisboa, apresentava-se àquelas pessoas simples como uma visão, algo vindo de um outro planeta. Os soldados que representavam a Revolução eram heróis, anjos, deuses...
Essa primeira obra da autora, de raízes míticas, é considerada a alegoria de um país fechado a tudo antes do 25 de abril de 1974. Vilamaninhos é o microcosmo de Portugal.
Se aceitarmos a afirmação de que Lídia Jorge se baseou na terra natal, para fazer dela a metáfora de um país pequeno e ainda preso a tradições que já deveriam estar fazendo parte do passado, teremos a pequena Boliqueime transformada em Vilamaninhos.
Se tal é verdade, teremos uma Boliqueime real, no Algarve, tão junto a praias famosas, mas, ao mesmo tempo, tão afastada do progresso, com uma população vivendo ainda uma era poética da humanidade, a dos mitos, transformada pela ficção em Vilamaninhos. Ambas com a função de representarem um país e um povo.
Lídia Jorge, em O Dia dos Prodígios, consegue apresentar o povo em geral, e a mulher em particular, pelo modo de falar. Na obra, marcada pela, a linguagem ajuda a construir o perfil de cada personagem em sua complexidade e riqueza estrutural.
O enfoque de um atavismo telúrico, a riqueza oral das personagens, a visão mítica da realidade, a polifonia de temas, tudo misturado com uma boa dose de experimentalismo dão os elementos para a construção de O Dia dos Prodígios.
Lídia Jorge continua a publicar importantes obras da literatura portuguesa. Agora, internacionalmente conhecida, sua obra tem sido traduzida para diversos idiomas. Os prêmios que tem recebido atestam a qualidade de seus textos. Citam-se, dentre as principais: O Dia dos Prodígios (1980); O Cais das Merendas (1982); Notícia da Cidade Silvestre (1984); A Costa dos Murmúrios (1988), livro que reflete a experiência colonial passada na África, com o qual a autora confirmou o seu destacado lugar no panorama das literatura portuguesa; O Vale da Paixão (1998); O Vento Assobiando nas Gruas (2002). Combateremos a Sombra é o seu mais recente romance.
A autora publicou ainda duas antologias de contos: Marido e Outros Contos (1997) e O Belo Adormecido (2003). Escreveu ainda de uma peça de teatro: A Maçon.

Lídia Jorge está aqui representada por dois textos de O Dia dos Prodígios. O primeiro é significativo por mostrar a cosmovisão da autora ao apresentar os habitantes da pequena Vilamaninhos extasiados por uma visão; o segundo descreve a pequena Vilamaninhos:

1.
Macário fazia agradecimento, deixando a vizinhança entoar sozinha. E virava o alto da cabeça nos joelhos. Os cabelos soltos como erva escura por segar. Quando Jesuína Palha disse. O que vejo, meu deus? Vem aí um carro. Um carro celestial. Celestial. Olhem todos. Traz os anjos e os arcanjos. Oh gente. E São Vicente por piloto. Disse Jesuína Palha que voltava da ceifa, ainda com o aven­tal e o lenço repletos de praganas. Todos olharam. Na ver­dade surgia na curva da estrada, pelo lado poente, qual­quer coisa de tão extravagante que todos os que conseguiam enxergar a mancha de cores, virando as cabeças julgaram ir cair de borco sobre o chão da rua. Embora a mancha já volumosa, avançasse lentamente. Ocupando no espaço as três dimensões duma coisa visível, sólida e palpável. Mas os homens, pondo a mão, e fazendo muito esforço para ve­rem claro o que avançava com tanta majestade, disseram. Menos rápidos e mais lúcidos. Vamos. Vamos ser visitados por seres saídos do céu, e vindos de outras esferas. Onde os séculos têm outra idade. Afastem-se, vizinhos, que esta visão costuma fulminar. As crianças correram estrada fora, comandadas pela coragem. Sentiam que o mar ia chegar atrás dum barco de velas alvadias e soltas, desfraldadas à levíssima brisa da tarde. E também começaram a esbra­cejar, esboçando gestos de natação. Mas Macário. Tendo sido o último a enxergar, teve a visão exacta. No momento da surpresa ainda tinha os olhos fechados de repetir pela última vez. À espera de ocasião. À espera de ocasião.
- Isto é um carro de combate. Oh vizinhos.
Na verdade, a pleno meio da estrada avançava um carro singular, porque vinha pejado de soldados garbosos e épi­cos, penetrando já pelo centro de Vilamaninhos com ban­deiras e flores. E cantavam por um altifalante como se viessem munidos de uma poderosa orquestra. Agora já o espectáculo era tão real e tão bonito que todos. Esquecidos desses primeiros segundos de pasmo e confusão. Sentiram estar suspenso o toque, o canto e a audição desde há pouco. Para só ouvirem -e verem aquilo que chegava em cima duro carro aberto e blindado. Todos tinham a certeza que desde tempo dos reis nunca mais se vira de igual. Ah mara­vilha. Então o carro parou em frente do grupo, e fez-se um momento de silêncio tão solene que as pessoas pensaram ir morrer. Mas um soldado. Particularmente bem feito, tendo sem dúvida nascido numa terra muito diferente. Começou a falar de cima do carro, agora parado no largo. Dizia coisas. Que tinha feito uma re vo lu ção, e que era preciso animar os espíritos. Porque tudo. Tudo. E abria uns braços de salvador. Tudo iria ser modificado. Falava tão bem, que todos se encontravam encantados no timbre daquela voz. E nas maneiras másculas, sendo contudo delicadas, como se não sentisse o soldado o peso do corpo. Na farda, no cabelo levemente encaracolado. E ninguém era capaz de dizer fosse o que fosse, presos, todos da surpresa e da maravilha. Nem Macário. Nem Manuel Gertrudes. Os outros soldados sentindo sem dúvida a perturbação que invadia os naturais de Vilamaninhos, levantaram então os braços e disseram o que os ouvintes porventura queriam dizer. Mas falaram os soldados em conjunto. Tão alto e tão vibrante. Que os vilamaninhenses só compreenderam que uma grande coisa eles haviam dito, e maiores ainda teriam a dizer no futuro. Quando acabaram o largo estava cheio de gente que escutava. Nem se sentia
o vazio dos ausentes. E Macário, receando que os habitantes de Vilamaninhos estivessem a desempenhar o papel de bêbados na perfeição, e animado, porque antes da chegada, acabara de ouvir da boca do seu vizinho, que o seu lugar não deveria, ser ali. Sentindo-se patrício desses forasteiros. Disse.
-Nós aqui soubemos logo, dois dias depois, que vocês tinham feito a re vo lu ção. Mas nunca pensá­mos que chegássemos a ver os heróis.
O soldado que havia falado agradeceu com a mão. Todos os outros tinham um ar solene e marcial, não duvidando ninguém que tais homens venceriam as maiores batalhas. Disse também o soldado formosíssimo, com flores a desfo­lharem-se nas abotoadeiras. Que era preciso que aquela terra se capacitasse que o tempo da li ber da de tinha chegado. As mulheres menos ociosas, e as moças, que haviam sido as últimas a descer, mas que mais próximas se encon­travam agora do carro de guerra, começaram a sentir que não poderiam reprimir por mais tempo os sentimentos es­pontâneos, e porque o espectáculo era o mais arrebatador das suas vidas puseram-se a gritar todas as palavras de entusiasmo que souberam. Disseram vivas. Amigos, amores, irmãos. Seres divinos. Libertadores da fome e da inveja. Disseram anjos, coisas formosas, filhos do ventre e visitantes. E havia quem chorasse e cruzasse os braços sobre os seios como se abraçasse os soldados que permaneciam heróicos e fardados sobre o carro verde, da cor do rinchão. Singularmente aberto e blindado.

(p. 152)
2.
A saber. Vilamaninhos tem seis braços. Dois são feitos de casas ao longo da estrada que a atravessa, fita de alcatrão que se esburaca como roupa puída. Primeiro uma nódoa de pedra a emergir do pez, depois uma, duas britas nítidas, apenas aglomeradas. Em seguida uma solta-se, outra, e debaixo dessa outra, outra. E logo a terra à vista como um óculo. Vejam a porcaria da estrada. Os outros dois braços são o resto da antiga, da macadamizada, si­nuosa e às lombas, como correnteza de telhado mourisco. Sempre o cantoneiro a compor-lhe o saibro. Passava esta a meio do povoado antes da preta, mas agora fica de lado; quando se fala da nova. E as outras duas pontas são Q eixo do primitivo caminho. Feito de lajedos e pequenos de­graus de pedra, socalcozitos de desnível do tamanho de um nada, onde os pés escapam e as ferraduras das bestas disferem faísca. Esse é o caminho empedrado, chama-se la­deira, corre de norte a sul e tem a dedada do avô de um dos passados de José Jorge Júnior. Todos sabem e dizem que terá ele próprio sozinho desbravado as carrasqueiras com o seu alferce de dois dentes, e com ele terá cortado ao meio toda a cobra atravessada na passagem. O fundador. Mas as três vias que se cruzam e quebram em seis braços não se encontram no mesmo ponto. Antes duas a duas formando um nó. No meio do nó uma barriga de terra, lajedo e pó, a venda, a igreja, o armazém de figo, o lagar de azeite, três casas de habitação. Desligadas, mas na sombra umas das outras, apenas pela distância de um suspiro de gente. Mas só a venda abre porque Matilde é dona, e só a casa de José Jorge Júnior está habitada e tem uma palmeira. Nesse recinto se terá digladiado a cobra voadora. Vista de cima alguém chamaria a Vilamaninhos uma estrela. Vista de baixo, no meio das encruzilhadas, apenas se diria. Ê uma desmoronação de casas. A casa de Carminha Rosa fica no alto da via empedrada. A de Pássaro entre a empedrada e a nova. Apenas separada desta por um pátio bordado de alta parede com algerozes e malvas. Aí se planta o can­toneiro a ler as horas pela altura do sol. Do lado oposto, a casa de Macário e a de Manuel Gertrudes, parede meias. Mas a palmeira de José Jorge Júnior é a referência mais solene de Vilamaninhos. Um estandarte de folhas verdes, acenando de domingo a domingo. Os meninos tentam subir o pé, feito de nós de folhas mortas, mas descem-na, de calças rotas e coxa em sangue. Depois uns cachinhos de frutos cor de fogo, nunca vistos, acenam lá de cima. Eh, pequenada, isto não é azinheira. Vão procurar boleta para outro lado. Seu pé erecto, um braço. Sua copa, mão. Na sua sombra suposta, pelo chão, se senta o dono. Se vai aqui, são cinco da tarde.
(p. 71)

Se Boliqueime é a ficcional Vilamaninhos, andei por essas ruas, não por aquelas empoeiradas, mas pela principal, a da faixa de alcatrão. Ali, parei à frente da Junta da Freguesia e avistei algumas personagens que povoam a Vilamaninhos/Boliqueime de hoje e de sempre. Não presenciei o prodígio de uma serpente a voar, mas avistei um céu como aquele do dia em que ali aportaram soldados, deuses, anjos...
O ar do Algarve trazia o perfume das plantas e uma brisa suave soprava da serra que separa aquela região meridional do caloroso Alentejo. Era um dia auspicioso de julho.
Lembrei-me então de uma Lídia Jorge dos anos 80 quando em companhia de Lobo Antunes vieram ambos a Curitiba divulgar suas obras. É a certeza de que se iniciavam em literatura, ele médico psiquiatra, ela jovem professora.
Essa lembrança de uma tarde/noite de setembro de 1983 trouxe uma outra lembrança, a de uma época em que ainda vivia sonhos que, muitos deles, não se realizaram.

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