sexta-feira, 3 de julho de 2009

ATÉ LISBOA - CRÔNICA DE CECÍLIA MEIRELES

CECÍLIA MEIRELES - (Rio de Janeiro, 1901 – 1964)
Tendo perdido o pai antes mesmo de nascer e sua mãe quando tinha apenas três anos, Cecília se criou com a avó materna. Foi a única dos quatro filhos do casal que sobreviveu. O modo como se relacionou com a morte é descrito de forma muito pessoal: Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno.
Segundo ela própria, foi o fato de viver no silêncio e na solidão que lhe conferiu a inspiração que ela soube transformar no lirismo de sua obra.
Concluído o Curso Normal do Instituto de Educação do Rio de Janeiro, Cecília Meireles ingressa no magistério em escolas oficiais do então Distrito Federal. Mais tarde, casou-se com o pintor português Fernando Correia Dias, com teve três filhas. Uma delas, Maria Fernanda consagrou-se como importante atriz de teatro.
A sua primeira obra poética foi Espectro, de 1919. Depois vieram várias outras. Ficou conhecida literariamente com a publicação de obras, como: Viagem, 1939; Vaga Música, 1942; Mar Absoluto, 1945; e Romanceiro da Inconfidência, 1953. Na literatura para crianças, publicou Ou Isto ou Aquilo, em 1964, ano de sua morte.
Depois de casada, viveu entre Brasil e Portugal. Naquele país teve participação ativa na literatura e lá publicou algumas de suas obras. É considerada uma poetisa portuguesa, pelos motivos de lá ter vivido, ser casada com um artista português e por sua origem açoriana. Viajou pelos cinco continentes. Lecionou literatura nos Estados Unidos e teve participação ativa na política cultural do Chile.
É detentora de várias homenagens que lhe foram prestadas no Brasil e em vários outros países do mundo. na América Latina, recebeu a medalha da Ordem do Mérito do Chile; na Ásia, foi sócia honorária do Instituto Vasco da Gama, em Goa; e, na Índia, recebeu o título de Doutora Honoris Causa da Universidade de Nova Délhi. A poetisa, inclusive, dá nome a uma rua no bairro de Benfica, em Lisboa, e a uma avenida na cidade de Ponta Delgada, nos Açores.
Retornando à sua obra, deve-se ressaltar a sua participação também na prosa . Especificamente na prosa literária, é autora de inúmeras crônicas. Como narradora de suas andanças pelo mundo, a sua obra foi reunida em três volumes, com o título de Crônicas de Viagem.
Sobre as Crônicas de Viagem, há trabalhos importantes no mestrado de Literatura da Universidade Federal do Paraná. A disciplina e a linha de pesquisa sobre os Cronistas Viajantes do Século XX vem produzindo vários trabalhos, dos quais muitos deles se tornaram dissertações de mestrado.
Raquel Illescas Bueno, professora e pesquisadora do tema, no Congresso de Internacional de Lusitanistas, na Universidade da Madeira, assim se referiu à autora: “para Cecília Meireles, que em 1939 denominou Viagem o livro de poemas que a projetaria na cena literária, e cuja primeira edição foi publicada em Lisboa, viajar é atividade que se coaduna perfeitamente ao seu senso do transitório” e adiante afirma: “Cecília Meireles, como é sabido, destacou-se sobretudo pelo lirismo e pela imaterialidade de sua visão de mundo”.
Karla Renata Mendes, também em palestra no mesmo Congresso, afirmou: “As crônicas de Cecília Meireles, de forma geral, possibilitam vislumbrar sua obra indo além da já consagrada poesia, e permitem entender com mais precisão a escritora completa que foi. Suas crônicas de viagem, importante parcela dessa obra, desnudam um olhar sempre atento à realidade circundante, que ia além do visível e perscrutava os espaços mais recônditos em busca de uma observação ‘diferenciada’”.

É um fragmento de Até Lisboa, uma crônica de viagem, e sobre Portugal, que ilustra aqui a prosa de Cecília Meireles:

Até Lisboa


Ruínas do antigo Castelo da Guarda
E dizem, de Guarda, que é a cidade dos quatro "ff": forte e feia, fria e farta. Mas isso deve ser em capítulo de rivalidades folclóricas e por fatalidade da rima... ("Fuerza dei consonante, a cuanto obligas!...").
Forte? Feia? Farta - não o saberemos. Fria, não. Neste meio dia de junho, brilha sobre Guarda um sol dourado e quente: e há tentações turísticas pelos quatro lados desta altíssima cidade, tão antiga. Desponta, de repente, a imagem de D. Sancho, que a levantou nestas alturas, e cujo nome ficou ligado àquela famosa cantiga velha que a "Ribeirinha", "branca e vermelha", talvez cantasse:


Ai eu, coitada, como vivo
en gran cuidado por meu amigo
que ei alongado! muito me tarda
o meu amigo da Guarda!

E eis que vejo o rei D. Sancho, manto e saia de escarlata, por essas terras além... (Permito-me quase trovar.)

D. Sancho I, fundador de Guarda

Rei D. Sancho, rei D. Sancho,
como vos celebraria,
sem o sangue, sem o pranto
que destes à Andaluzia!

Não vos quero mal: porém,
é que amo os mouros, também...

Embora rei do Algarve, D. Sancho, se foi mesmo o poeta do can­cioneiro, compreenderá estas minhas inquietações sentimentais, ao passar pela terra de Guarda, onde é tão viva a sua sombra, - deixará que a minha, muito mais tênue, se aproxime de Celorico da Beira.
Na verdade, não sei bem por que vamos por Celorico da Beira, quando uma outra estrada, no mapa, se nos afigura mais curta. Mas as pessoas da terra sempre sabem mais que os forasteiros. Iremos, pois, por onde nos aconselham.
Já o nome de Celorico é um pequeno enigma no labirinto ver­melho e azul das estradas. Logo adiante, encontraremos outra esfinge no caminho... Mas Portugal está bordado de palavras surpreendentes. Não é só, aqui, Fornos de Algodres, mas, ali, Freixo de Espada à Cinta; do outro lado, Santa Comba Dão; lá para cima, Carrazeda de Ansiães... E estes lugares de sonho que se chamam: Barca d'Alva, Ervas Tenras, Vale de Prazeres, Portela do Vento, Penhas Douradas, Rio de Moinhos... Há mesmo um lugar fabuloso que se chama Alfândega da Fé! E o que não daríamos para ficar conversando sobre esses no­mes, viajando por dentro das palavras, na paisagem do tempo, muitas vezes mais bela que a paisagem do espaço!
Aqui há nomes que devem ter sido inventados para quebrar a cabeça do turista: Alfarela de Jales, Altér do Chão... Outros, que pa­recem jogos infantis: fiolhoso, gafanhoeira, alto do velão... Os nomes em letra pequenina, escondidos no intricado desenho do mapa, são, às vezes, os mais engraçados: Vera Cruz do Marmelar e este outro: Cas­tanheira de Pera, - coisa de poeta burlesco, como aquele que cantou:

Quando o sobreiro der baga
e o carvalho der cortiça...


Pois em Celorico da Beira cai um chuvisco muito agradável, que solta pelo ar um cheiro bom de terra molhada, a sensação de folhas verdes, de frutos em botão, de pesadas casas tranquilas, onde o silêncio é como o tempo de um sino imóvel no campanário.


O largo e a Catedral de Guarda

De minha parte, sobre o fragmento da crônica, farei apenas comentários periféricos:

Até Guarda

1.º - sobre ser a cidade de Guarda, capital de um dos dois distritos da Beira Alta, ser “forte e feia, fria e farta”, é questão de ótica: forte ela é, a sua muralha bem o atesta; feia... tenho para mim que não há cidade feia, depende muito do espírito com que se visita determinado lugar; fria, sim, mas somente no inverno, quando toda a serra da Estrela surge branca no horizonte; farta deve ser, mas não tenho grandes argumentos para afirmar, sei somente que o refeição frugal que fiz em minha breve passagem, foi boa, provavelmente uma truta das águas geladas vinda das corredeiras da serra.
2.º - sobre ir por Celorico da Beira e não por outros caminhos, disse-me uma vez, em resposta à mesma pergunta que fiz a um motorista: - “o senhor e sua família querem enfrentar a serra do Caramulo?”. Aí está um bom motivo: nunca enfrentar a serra do Caramulo. Deve ser terrível, há que desviar sempre...
3.º - sobre o D. Sancho referido, ele é o primeiro com esse nome, portanto D. Sancho I. É o segundo rei de Portugal (1185-1211), ainda da dinastia de Borgonha e conhecido por “o povoador”. Fundou e fortificou Guarda, local que “aprisionava” os jovens soldados. Eles teriam de defender as terras montanhosas tão próximas da temida Espanha, forte e aguerrida, sempre a pôr em cheque a independência portuguesa. Como local de acampamento de jovens guerreiros, era tristemente lembrada por enamoradas saudosas de seus amados, e assim amargamente citada nas cantigas de amigo.
4.º - sobre os nomes que emolduram a serra da Estrela, e para ficar só naqueles compostos, eu acrescentaria estes: Vila Franca das Naves, em plenas alturas; Torre de Moncorvo, que nos deixa curiosos por saber o que será moncorvo, que os dicionários e as enciclopédias não registram, só se sabe que fica além de Vila Nova de Foz Côa; Figueira de Castelo Rodrigues, onde possivelmente se encontrava lendária figueira ao pé de um castelo defendido por Rodrigues, filho de Rodrigo, mas hoje com suas amendoeiras em flor. Nas vizinhanças há ainda Horta da Vilariça, próxima de Souto da Velha. E por que a velha queria um bosque? Nós não sabemos, mas, como diz Cecília Meireles, “as pessoas da terra sempre sabem mais que os forasteiros”.
5.º - É para lá que eu vou, como já fui em outros tempos, mas sempre em sentido contrário ao de Cecília - de Lisboa para Guarda. Sairei de Portela de Sacavém, passarei em Vila Franca de Xira, seguirei por Aveiras de Cima, Torres Novas, Vila Velha de Ródão, São Vicente da Beira até encontrar o caminho de vinda de Cecília, no Vale dos Prazeres.
6.º - Talvez, eu, como Cecília, por lá, tenha a felicidade de sentir o “cheiro bom de terra molhada, a sensação de folhas verdes, de frutos em botão, de pesadas casas tranqüilas”. Queira Deus, que eu possa ainda sentir o silêncio do mesmo sino, ou então, o seu badalar a fazer eco pela serra, antes de seguir por terras calientes de Espanha...