terça-feira, 26 de maio de 2009

GALIZA - LÍNGUA, POESIA, CULTURA E MAIS

A GALIZA

A cidade de Pontevedra às margens do Lérez

1. HISTÓRICO
A Galécia (em latim Gallaecia) foi uma província romana ao norte da Península Ibérica. Correspondia, mais ou menos, o que hoje é a própria Galiza, na Espanha, e a atual região do Minho, em Portugal. Ao sul, encontrava-se a província da Lusitania. A origem do nome, segundo alguns, é a latinização do grego kallakoi, que significa “pessoas dos castros”, ou seja, dos castelos.
Em áreas de produção agrícola, com frequência aparecem os hórreos. São pequenas e tradicionais construções de pedra para se armazenar o produto das colheitas. Os hórreos possuem recursos para que não sejam invadidos por pequenos animais que procuram esses produtos para se alimentar. Eles existem também ao norte de Portugal, na região do Minho.

Um hórreo

A Galiza atualmente é uma Comunidade Autônoma, cuja capital é Santiago de Compostela. Possui quatro províncias: A Corunha, Lugo, Ourense e Pontevedra. A maior cidade é Vigo, na província de Pontevedra.
Como região autônoma é governada por uma Junta, denominada Xunta de Galicia.
A Comunidade possui traços rurais bem definidos. As cidades não chegam a ser grandes. O que
predomina são os campos com rica vegetação. Pela situação geográfica e pelo clima favoráveis é rica em vegetação e, por isso, recebeu a denominação de “país verde”. Poderia também ser chamada "país amarelo". Quando chega a primavera os campos pedregosos se cobrem de toxo, uma planta espinhosa com flores amarelas.

O toxo nos campos galegos

As sete maiores cidades da Galiza (para poder incluir as quatro capitais de Província) são:
1. VIGO – 295.000 h.
Vigo, a maior cidade da Galiza, é um municúpio da Província de Pontevedra. É, também, a maior cidade não capital de Província de toda a Espanha. É o porto mais importante da Península Ibérica. Praticamente, todos los continentes se interligam com o porto de Vigo, que acolhe um grande número de linhas regulares, tanto de navios de carga, como modernos transatlânticos de turismo.
Na época do Trovadorismo, Vigo era centro de um grande número de trovadores. Ficou famosa a Cantiga Ondas do Mar de Vigo, de Martim Codax (séc. XIII).

1.
Ondas do mar de Vigo,
se vistes meu amigo?
E ai Deus!, se verrá cedo?
2.
Ondas do mar levado,
se vistes meu amado?
E ai Deus!, se verrá cedo?

O mar na ria de Vigo

2. A Corunha – 245.000 h
A Coruña situa-se entre o porto e as muitas praias. Por isso, diz-se que é a cidade que tem mar de dois lados. O seu monumento-símbolo é a Torre de Hércules, que foi construída há mais de 2000 anos. É o farol em funcionamento mais antigo do mundo. Como uma das principais capitais de Província, A Corunha apresenta intensa vida noturna, com cassino e espectáculos, concertos e festivais, geralmente apresentados no no Teatro Rosalía.
3. Ourense – 115.000 h
É uma capital que se encontra no centro-sul da Galiza, às margens do rio Minho e bem próxima do norte de Portugal. É famosa por suas burgas, fontes termais, com água a 65º. É famosa a culinária da região, muito parecida com a do norte de Portugal. Além dos mariscos, famosos em toda a Galiza, há o denominado “prato nacional”: lacón (pernil de porco defumado) com grelos (brotos de hortaliças, principalmente do nabo) e salsichas.
4. Santiago de Compostela – 92.500 h
Santiago de Compostela é a capital da Comunidade e, juntamente com Jerusalém e Roma, uma dos locais de peregrinação mais importantes do mundo. A cidade toda está ligada à história do apósto Tiago (Santiago) e às peregrinações que para lá se dirigem desde a descoberta do túmulo do apóstolo, no ano de 813. A grande catedral, na praça do Obredoiro, foi construída em 1075. É o ponto de chegada para quem percorre os aproximados 800 km do Caminho de Santiago. É também a cidade dos estudantes.
5. Lugo – 96.000 h
Lugo, a romana Lucus Augusti (bosque de Augusto), tem um ambiente extraordinário devido à sua muralha romana, que a envolve e que se encontra completa e bem conservada. Mede mais de 2 km de comprimento com uma altura média de 11 m. Lugo é atravessada pelo Caminho de Santiago, que vem desde o outro lado dos Pirineus, na França, para chegar a Santiago de Compostela.
6. Ferrol – 85.000 h
Ferrol, na província de A Corunha, é importante porto e sede de indústrias, principalmente a naval. Por isso, é conhecida como a Cidade dos Estaleiros. Historicamente, foi sede da Armada Espanhola. É a terra natal do caudilho espanhol Francisco Franco. Por tal motivo, foi denominada, na época do Franquismo, de Ferrol del Caudilho. É também pátria de Pablo Iglesias, fundador do partido trabalhista PSOE – Partido Socialista Obrero Español.
7. Pontevedra –80.000 h
Pontevedra, a Ponte Vetera (a forma do latim popular) dos romanos. Teria sido fundada por Teucro, herói da guerra de Troia, no séc. XIII a. C. O fundador dá nome a uma praça da cidade. Em Pontevedra, encontra-se um templo bastante venerado, que é a Igreja da Peregrina, em forma de concha. A pequena e encantadora cidade é bastante movimentada, com inúmeros bares e restaurantes, que servem pratos da rica culinária galega. Nos arredores encontram-se lugares turísticos, como Arousa, a ilha de A Toxa, O Grove e outros.
II - A LÍNGUA GALEGA
O galego é a língua oficial da Comunidade Autônoma da Galiza, na Espanha. É falado também em algumas áreas fronteiriças do principado das Astúrias e das províncias de Leão e da província de Zamora, estas duas já na atual região de Castela Leão.
A língua galega encontra-se atualmente num grande dilema devido a algumas tendências. Uma delas é a denominada reintegracionista. Esta considera o galego uma variedade do português. Assim, os seus seguidores defendem uma norma ortográfica comum, ou muito parecida, para o galego e o português; há, uma outra, de total independência (o galeguismo). É considerada a tendência oficial, segundo à qual, o galego e o português são duas línguas distintas e, por isso, defende normas ortográficas diferenciadas . É denominada isolacionista pelos partidários do reintegracionismo; e finalmente uma terceira, que é de aproximação com o castelhano, língua oficial da Espanha. Esta, ultimamente, tem sido muito criticada pelos intelectuais da Galiza.
São defensores de uma língua e de uma cultura tipicamente galega intelectuais como Eduardo Pondal, Manuel Curros Enríquez, e no séc. XX, Ramón Cabanillas, Ramón Otero Pedrayo, Álvaro Cunqueiro e tantos outros.
III – A CULTURA GALEGA
A cultura galega está intimamente ligada à cultura dos Celtas, povos que habitavam a região antes dos Romanos. Os celtas, em grego, keltoi, signifcava ocultos. Assim, a música, as danças, o folclore de modo geral sofre essa influência.
As citanias (povoados) e os castros (fortificações) já existiam no noroeste da atual Espanha antes mesmo da invasão dos Celtas. Porém, a cultura ibérica se misturou com os elementos célticos, tanto assim que essas construções continuaram a ser utilizados pelos druidas celtas.

Ruínas da antiga citania e reconstrução de uma casa castreña

A música: A tradição da dança e da música tem origens celtas. A gaita de fole um dos instrumentos mais típicos. O baile gallego é a manifestação mais visível da região. Dança-se a pares num círculo. É muito parecida com as danças portuguesas da região do Minho, limítrofe à Galiza.
Os principais instrumentos musicais são a gaita de fole, a pandereta, a caixa e o bumbo. É frequente usar-se também as castanholas.
O gênero musical mais típico e tradicional da Galiza é a muiñera. Esse nome se deve ao fato de ter se originado nos moinhos. Na Galiza, é frequente que a música e os seus temas, bem como a dança, sejam fortemente influenciados pela cultura rural e folclórica.
A música galega atual procura unir o moderno ao tradicional. A intenção dos novos compositores, como Xabier Díaz, não é recordar o passado, mas reinterpretá-lo com novas harmonias. Busca-se um novo sentido num presente que aos poucos vai se afastando do tradicionalismo.

Um desfile de gaiteras

- A pintura galega
Os pintores geralmente nominados na pintura galega são aqueles surgidos após o período denominado de Rexurgimento, já a partir do Romantismo, se considerarmos a poetisa Rosalía de Castro uma das iniciadoras do movimento. Bello Piñeiro (1886 – 1952) teria sido o precursor do Rexurgimento na pintura galega. Pouco depois surgem Os Renovadores, como Manuel Colmeiro (Pontevedra, 1901 – 1999), Luis Seoane, Laxeiro, Arturo Souto y Carlos Maside, considerados continuadores da geração de Eugenio Granell (1912 - 2001), Francisco Llorens (1874 - 1948) e outros. De Manuel Colmeiro disse o colega pintor Carlos Maside, em 1934:
Se os povos caminhassem parelhos em sensibilidade com a obra dos seus criadores representativos, hoje Galiza berraria em pé os seus júbilos por ter parido um pintor, o PINTOR, carne da sua carne, terra da sua terra”.

Dos contemoprâneos, citam-se nomes como os de Alfonso Costa, Ana Lamuño, Barreiro, Cabanas, Caruncho, Correa Corredoira, García Patiño, Isaac Díaz Pardo, Jaime Quesada, Jano Muñoz, Lugrís Vadillo, Marc Quintana, Pablo Orza, Quintana Martelo, Gutiérrez de la Concha.
Um quadro de Manuel Colmeiro:

Paisaje con labriegas

IV - A RELIGIÃO GALEGA
A religião predominante é o Catolicismo romano. Porém, há na Galiza uma forte influência céltica também na religião. A cultura dos Druidas e das fadas é constante. Há de certo modo um Cristianismo celta, que surgiu diferente do Cristianismo romano, inclusive na simbologia religiosa.
Os Druidas, que alguns vêem apenas como sacerdotes, eram mais do que isso. Representavam uma espécie de filósofos, cientistas ou eruditos, e inclusive magos. Daí o apego dos galegos à magia e aos rituais religiosos, como se pode exemplificar pelo culto ao apóstolo Santiago, que marca profundamente a religião galega, simbolizada muitas vezes pelo Caminho de Santiago
.

A cidade Santiago de Compostela com a Catedral

Um aspecto ligado à religião e ao folclore da Galiza é a crença nas meigas (magas), que são uma atualização do conceito de fadas e bruxas. As meigas se comportam de acordo com a pessoa. Se uma pessoa merece o bem, agem como fadas; se, ao contrário, a pessoa merece o mal, agem como bruxas.
Não é por acaso que a mascote da Galiza seja a meiga. Para quem não crê, há um ditado espanhol: “yo no lo creo, pero que las hay, las hay!”. Ou, em galego: "no me creo en las meigas prou haber hai-nas". Elas estão expostas por toda parte, lojas, carrinhos de ambulantes e nas tabernas pelos caminhos dos peregrinos.
Alguém disse em galego: “A figura da meiga está moi arraigada na tradición popular”. São mulheres com conhecimento de magia, além de menciñeiras (curandeiras) e, inclusive, adivinhas. Há vários
tipos de meigas: chuchonas (as que chupam o sangue de crianças); asumcordas (as espreitadeiras de pessoas); marimanta (as que rouba os rapazes e os faz desaparecerem); feiticeira (a que hipnotiza os rapazes e os joga no rio); cartuxeiras ( as que adivinham pelas cartas); lobismuller (versão feminina do nosso lobisomem); e outros.
V - A GASTRONOMIA GALEGA
A Galiza é famosa pela sua culinária. Tanto a tradicional como a nova cozinha ganham dimensão especial por contar com a inegável qualidade das matérias primas, principalmente os mariscos. Mas há pratos a base de carnes, como o famoso lancón (pernil de porco defumado) e muitas hortaliças, das quais a mais tradicional são os grelos.
Os mariscos mais famosos vêm da região de O Grove; e as carnes, da província de Ourense. Como deve acontecer, cada prato deve vir acompanhado por um bom vinho regional, como um Ribeiro ou um Albariño, que tornam esses pratos mais deliciosos.

Pulpos, vieiras, pan gallego y tinto Ribeiro

VI – A LITERATURA GALEGA
A literatura galega é a grande expressão da Galiza. Desde o século XII com os trovadores galego-portugueses, um surto de lirismo tomou conta de toda a região (a atual Galicia espanhola e o atual norte de Portugal, na época,Portu Cale. As Cantigas Paralelísticas, as Cantigas de Amor e também as Cantigas de Maldizer são estudadas tanto na literatura espanhola, como na portuguesa. São conhecidos poetas como Airas Nunes, Martim Códax, Pero da Ponte, Julian Bolseiro e outros.
Podemos dividir as etapas da literatura galega da seguinte maneira:
- Período Medieval (XIII – XV) - (Trovadorismo, Cantigas de Santa María e Prosa galega medieval)

- Séculos Escuros (XVI, XVII e XVIII)
- Rexurdimento (XIX)
- Século XX.

Rosalía de Castro

No Romantismo, surgiu a grande poetisa Rosalía de Castro (Maria Rosalía Rita). Nasceu em Camiño Novo, nos arredores de Santiago de Compostela, em 1837. Foi registrada como de pais desconhecidos, mas seria filha de José Martínez Viojo, um sacerdote, que, devido à sua condição religiosa, não pôde reconhecer nem legitimar a sua filha. Faleceu em Padrón, em sua residência, em 1885, vítima de câncer.

Casa de Rosalía em Padrón, atualmente, museu em homenagem à poetisa

Rosalía de Castro é autora de várias obras tanto em prosa como em poesia, algumas em castelhano. Em galego, publicou: Cantares Gallegos (1863), base para o chamado ressurgimento da língua e da literatura galega. A obra, porém, que lhe deu notoriedade foi Follas Novas, de 1880.
Da primeira parte de Cantares Gallegos, estas estrofes:

Campanas de Bastabales,
cuando os oigo tocar,
me muero de añoranzas.
I Cando vos oio tocar,
campaniñas, campaniñas,
sin querer torno a chorar.

. Cando de lonxe vos oio
penso que por min chama
dese das entrañas me doio.

. Dóiome de dór ferida,
que antes tiña vida enteira
e hoxe teño media vida.

. só media me deixaron
os que de aló me trouxeron,
os que de aló me roubaron.

. Non me roubaron, traidores,
¡ai!, uns amores toliños,
¡ai!, uns toliños amores.

De Follas Novas, primeira parte que reúne os poemas sob o título Vaguedad, estes três:

I
Daquelas que cantan as pombas i as frores,
Todos din que teñen alma de muller.
Pois eu que n’as canto, Virxe da Paloma,
¡Ai!, ¿de qué a terei?
II
Bem sei que non hai nada
Novo en baixo do ceo,
Que antes outros pensaron
As cousas que ora eu penso.
.
E bem, ¿para que escribo?
E bem, porque así semos,
Relox que repetimos
Eternamente o mesmo.
III
Tal como as nubes
Que impele o vento,
I agora asombran, i agora alegran
Os espazos inmensos do ceo,
Así as ideas
Loucas que eu teño,
As imaxes de múltiples formas,
De estranas feituras, de cores incertos,
Agora asombran,
Agora acraran
O fondo sin fondo do meu pensamento.

Como representantes da poesia atual, apresentam-se o poeta Celso Emilio Ferreiro e o prosador Xavier Frias-Conde.
Celso Emilio Ferreiro (Celanova - Ourense, 1912 – Vigo, 1979).
De família camponesa e galeguista, aos 22 anos fundou com José Velo Mosquera a Federação de Mocedades Galeguistas. Chegou a ser processado por um artigo publicado em Guieiro, revista que dirigia.
Foi convocado para a Guerra Civil Espanhola pelas tropas de Franco. Em 1966 emigra para a Venezuela. Lá trabalhou no gabinete do presidente Rafael Caldera Rodríguez, que governou aquele país por duas vezes, de 1969 a 1074 e de 1994 a 1999.

Ao voltar da emigração, passou a residir em Madri, onde exerceu o jornalismo. Escreveu prosa e poesia em castelhano e galego. Em galego, destacou-se por sua poesia de conteúdo social. Foi esta que lhe deu a reputação de grande escritor.
Suas principais obras são: Cartafol de poesía, O sono sulagado, Viaxe ao país dos ananos, Terra de ningures, Onde o mundo se chama Celanova, Longa noite de pedra. Esta última é a mais importante e conhecida e que deu nome a toda uma época da historia galega contemporánea. Publicou ainda a obra Cimeterio privado.
Pela epígrafe, pelo estilo, pela temática e, inclusive, pelo título da obra, Celso Emilio Ferreiro se mostra admirador e seguidor do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade.
POEMA de Longa Noite de Pedra - 1962

(No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra
.)
(Carlos Drummond de Andrade)

Xavier Frias-Conde (1965)
Xavier Frias-Conde é escritor em língua galega, embora tenha publicado também em outras línguas, como o português e o espanhol. A sua obra poética contém literatura infantil (aproximadamente vinte títulos) e poesia para adultos (oito livros e muitas colaborações em revistas literárias). É professor universitário e trabalha também como tradutor de textos literários. Grande ensaísta, principalmente sobre a língua e a cultura galega. Sua residência oficial, desde 1974, é em Madri, mas passa grande parte da vida em Praga.
Só se vive desperto (um microrrelato)

El acordou a tremer. Tivera o peor pesadelo da súa vida. Soñara que aboiaba entre cabichas, milleiros de cabichas, millóns de cabichas, aínda sen apagar, un mar de cabichas. E respiraba cabichas, afundía entre as cabichas, engulía cabichas... Non entendía por que aquel pesadelo que, amais, xa se repetira varias veces nas últimas semanas. Sinceramente, non entendía o porqué. Mais acordara tan nervioso que procurou acougo. Estricou a man, apañou un cigarro e prendeuno. E o fume chegoulle até o fondo. E despois, matou o cigarro e botou a cabicha ao chan, onde ela foi facer compaña a outras súas colegas que durmían o sono dos xustos.

VII – UM ADEUS A GALIZA
Assim, com esta breve passagem por estradas, caminhos, cidades, aldeias, despedimo-nos de Galiza. Ficou a memória de encontros com pessoas, recantos... Pudemos saborear pratos da rica culinária e ler alguns textos de escritores e poetas. Por tudo isso e por mais que não se diz, a Galiza permanecerá em nossa lembrança como uma região de lugares emblemáticos e de gente acolhedora.
E para finalizar, quatro poemetos (com muita boa vontade, quatro haicais):

1. ALDEA DE COBADOSA

En la Cobadosa,
Provincia de Pontevedra,
en su cueva la osa
.

2. VILA DE CAROY

Vila de Caroy.
Sigo só pelos caminhos.
Mas,ah! como dói!

3. EIGREJA DE CAROYSiento un gran apelo
frente al templo de Caroy.
Yo me quedo suelo.


4. CORREDOIRA

Pola estrada calma
de Corredoira a Caroy,
sigo eu e minh'alma.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

LITERATURA LATINA – UMA ODE DE HORÁCIO

Local em que se erguia a Casa de Campo de Horácio na Sabina
(Foto: GEORGIN, Ch. Les Latins. Paris: Hatier, s. d., p. 672)
.
A LITERATURA LATINA - Periodização
.
1. Costuma-se dividir a literatura latina em 5 grandes épocas:
I – Período de Influência Helênica (240 a.C. – 81 a.C.)
II – A Época de Cícero (81– 43 a. C.)
III – O Século de Augusto (43 a. C – 14 d. C.)
IV – Período Imperial (14– 192 d. C.)
V – A Literatura Cristã (séc. III– séc. V d. C.)
.
As datas que costumam marcar a divisória temporal entre períodos literários são relativos quanto ao estilo propriamente. Eles marcam mais certos acontecimentos históricos e não literários propriamente. Toda periodização literária serve apenas como uma referência de determinada tendência literária que se pode situar de modo aproximado a cada um desses períodos historicamente marcados.

2. O grande período da literatura latina foi, sem dúvida, o século de Agusto. É a denominada época de ouro. O grande apogeu econômico e cultural de Roma propiciou o aparecimento de grandes literatos, principalmente poetas. São exemplos Virgílio, Horácio e Ovídio, três dos maiores poetas latinos. Além deles, são dessa época, também, os líricos Tibulo e Propércio, e o historiador Tito Lívio.

3. Para exemplificar um dos poetas mais versáteis da época, selecionamos Horácio (Quintus Horatius Flaccus 65 – 8 a. C.). É o grande poeta das Odes, dos Epodos, das Sátiras e das Cartas. Duas Cartas se tornaram famosas: a Carta a Mecenas e a Carta aos Pisões, esta conhecida como Arte Poética.

4. Mecenas (Gaius Cilinius Maecenas, 70 – 8 a. C.) foi político e diplomata romano, que se tornou conhecido por patrocinar poetas, como Virgílio, Propércio e Horácio. Rico, seu progresso político e sua grande influência se devem ao imperador Augusto, a quem serviu como secretário e conselheiro. A palavra mecenas passou a significar aquele que patrocina a cultura, a ciência e as artes.

5. Com uma pensão e bens recebidos de Mecenas, Horácio pôde viver tranquilo em sua casa de campo e dedicar-se inteiramente à poesia e à filosofia. Rejeitou cargos públicos e preferiu uma vida íntima de inteira doação à arte e ao pensamento.

6. Há vários poemas em que Horácio se refere ao seu grande protetor. Constam pelo menos sete Odes e quatro Epodos em agradecimento a Mecenas, além de algumas Cartas, poemas escritos em agradecimento ao seu protetor pelos favores recebidos.

7. Como exemplo, na Ode 1, do livro I, diz:
Maecenas, atavis edite regibus, / O et praesidium et dulce decus meum (Mecenas, descendente de altos reis, / ó minha glória e meu doce amparo).

8. A seguir uma Ode de Horácio (Quintus Horatius Flaccus (65 - 8 a.C.):

ODE - I,
11

Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi
finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros, ut melius, quidquid erit, pati.
seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
.
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum: sapias, vina liques et spatio brevi
spem longam reseces.dum loquimur, fugerit invida
aetas: carpe diem quam minimum credula postero.

ODE I, 11 - (Tradução minha)

Leuconoe, não indagues - saber seria nefasto –
que fim a mim e a ti os deuses a nós reservaram,
nem consultes os difíceis cálculos dos babilônios,
mesmo porque o melhor é aceitar o que nos vier.
Quer seja este inverno um dos muitos, ou que seja o último

que Júpiter te conceda, este que, agora, se desfaz
como espuma no mar Tirreno: prepara o teu vinho,
abrevia esperanças longas, porque o tempo é breve.
Ele nos foge enquanto falamos: colhe este dia,
porque sobre os vindouros dias nada saberemos.

NOTAS:

1.
Esta Ode de Horácio é a de número 11 do livro I.

2. Metricamente, ela se compõe de dois espondeus ( - - ) e quatro dátilos ( - u u ), que são pés métricos de quatro tempos. Cada sílaba longa ( - ) equivale a dois tempos; e cada sílaba breve ( u ), a um tempo. Um espondeu ( - - ) é o pé métrico de quatro tempo composto por duas sílabas longas. O dátilo ( - u u ) é o pé métrico, também de quatro tempos, formado por uma sílaba longa e duas breves. Esta Ode, que mistura espondeus e dátilos, emprega, portanto, versos de ritmo quaternário.

3. A tradução está feita em versos de 14 sílabas. Alguns autores costumam chamar de versos bárbaros a todo verso com mais de 12 sílabas, especialmente o de 14, que é o mais empregado, inclusive pelos parnasianos.

4. Leuconoe – etimologicamente significa ingênua, pura. (Do grego leukós = branco, puro, limpo; e noós, por contração, nous = inteligência, alma, coração).
É nome feminino tradicional na literatura latina. Foi dado pelo historiador Higino (Gaius Julius Hyginus, 64 a. C. – 17 d. C.) a uma irmã de Netuno e esposa de Apolo. Ovídio (Publius Ovidius Naso, 43 a. C. – 18 d. C.) assim chamou uma das irmãs de Mínias (rei e herói grego).

5. Babylonios numeros = cálculos astrológicos em que os caldeus eram mestres, e famosos em Roma.
4. Hiems, em latim, tem o sentido também de um ano, principalmente em uma situação poética, em que se emprega tal palavra como metáfora
.
.
Concluindo, esta apresentação teve a intenção de rever a velha literatura latina, que, embora bastante devedora à literatura grega, não deixou de ser marco importante para as literaturas das línguas neolatinas. O Renascimento, período do Classicismo, foi todo ele influenciado por gregos e latinos, mas principalmente por estes últimos. Não podemos esquecer que a Língua Portuguesa foi chamada por Olavo Bilac de “Última flor do Lácio”, em homenagem à região da Península Itálica - Latium -, a que mais prosperou por suas condições geográficas. Foram as condições climáticas, geográficas de uma vasta planície que propiciaram aos latinos se desenvolverem, progredirem e, inclusive, suplantar inicialmente os seus vizinhos oscos e umbros. Mais tarde partiram para as grandes conquistas bélicas, que foram base para o vasto e poderoso Império Romano.

sábado, 9 de maio de 2009

JOÃO CABRAL DE MELO NETO AMANDO SEVILHA

Só em Sevilha o corpo está
com todos os sentidos em riste
(João Cabral de Melo Neto)
A obra poética de João Cabral de Melo Neto, por ser uma das mais complexas, e não só da literatura brasileira, enseja os mais variados enfoques. Há críticos que escolhem o lado geométrico, desenhado de seus poemas, como influência para a poesia concreta; outros selecionam o aspecto visual; e outros, ainda, vão fazer leituras de seus poemas sob a ótica as contribuições de Bachelard para os estudos literários. Estudos dessas e de outras naturezas iluminam os textos do grande poeta pernambucano.
Para uma visão rápida de alguns poemas de João Cabral, procuramos apoiar-nos na grande admiração, amor mesmo, pela cidade de Sevilha, na hoje Andaluzia espanhola. Embora tenha vivido em outras tão diferentes cidades da Europa, da África, da América do Sul, da América Central e própria Espanha, Madri e Barcelona, a nenhuma delas o poeta devota tanta admiração e amor como a Sevilha, a quem (porque cidade e mulher) entregou-se de corpo e alma.
Vivendo em Sevilha, por treze anos, embora em vezes diferentes, nela exerceu o cargo de Cônsul do Brasil. Nessa cidade do sul da Espanha, João Cabral de Melo Neto buscou assimilar a literatura, a arte e muito especialmente a cultura popular. Em intensa vivência, embebeu-se da poesia gitana, do flamenco, do cante hondo. Para tanto, foi assíduo frequentador de lugares típicos: tablaos, barrios gitanos, plaza de toros, tascas... Conviveu com o povo sevilhano uma profunda relação de amigo, admirador e divulgador de artistas, toreros, cantaores, bailaoras. Enfim, ao produzir uma poesia impregnada de palavras e figuras andaluzas, contribuiu para a divulgação dessa vasta cultura, principalmente daquela do povo mais simples e, por isso mesmo, muitas vezes, discriminadas por certas classes.
Nestas duas estrofes do poema Viver Sevilha, João Cabral declara:

Só em Sevilha o corpo está

com todos os sentidos em riste,
sentidos que nem se sabia,
antes de andá-la, que existissem;

sentidos que fundam num só:

viver num só o que nos vive,
que nos dá a mulher de Sevilha
e a cidade ou concha em que vive.

Nesta outra confissão, agora em prosa, o poeta afirma:
"Sevilha é uma cidade intima. Você anda nas ruas de Sevilha como você anda no corredor de sua casa. É difícil explicar, aqui no Brasil, o que é uma corrida de touros, o que é um toureiro... um taurino ... para compreender o que é um taurino é preciso ter vivido na Espanha como eu, que vivi treze anos lá."
Estes textos levaram habitantes ilustres de Sevilha a se manifestarem sobre o conhecimento e o apreço que João Cabral tinha da cidade:
"Ele era um poeta com sensibilidade. Um poeta que sabia apreciar o mundo das touradas, dos touros. Que apreciava o flamenco em toda sua gama: o " baile ", o " cante" e a guitarra. É preciso ter muita sensibilidade para entender tudo isso. Especialmente para quem não é da Espanha e não nasceu em Sevilha. " (Manolo Vazques, toureiro).
É muito bonito quando ele fala de Sevilha, do aspecto feminino da cidade, quando a compara a uma mulher andando nas ruas, pisando o chão, sob a luz e na obscuridade, nos recantos bonitos e nas ruas tranqüilas. O olhar de Cabral é muito profundo e não fica no aspecto exterior. Ele vai sempre até o centro das coisas." (Pablo del Barco, poeta e escritor).
O amplo conhecimento de Sevilha e seus lugares típicos fez com que poetizasse esses locais, como Calle Relator, Plaza Pumarejo, Calle Sierpes, Calle San Luis; os bairros de El Arenal; Triana, Macarena, Santa Cruz, Santa Maria La Blanca, São Bernardo, este frequentado por toreros; e cidades próximas como Utrera e Carmona. A cada um desses lugares referiu-se em poemas nos quais aliava o próprio local a poetas famosos que antes dele os haviam poetizado.
Para o pensamento geometrizante, proporcional e de uma lógica muito particular de João Cabral, Recife é Sevilha, e o Guadalquivir corresponde ao seu Capibaribe. A secura dos campos andaluzes são as pedras do sertão nordestino, assim como a planura do Mediterrâneo são os verdes canaviais de Pernambuco. Em Sevilha em Casa, escreveu:
Sevilha veio a Pernambuco

porque Aloísio lhe dizia
que o Capibaribe e o Guadalquivir
são de uma só maçonaria.

1. Para mostrar o apego motivacional e poético de João Cabral por Sevilha, pode-se começar, como abertura, por esta sua:

AUTO-CRÍTICA
Só duas coisas conseguiram

(des)feri-lo até a poesia:
o Pernambuco de onde veio
e o aonde foi, a Andaluzia.
Um, o vacinou do falar rico
e deu-lhe a outra, fêmea e viva,
desafio demente: em verso
dar a ver Sertão e Sevilha.
Para João Cabral, apenas duas coisas o despertaram para a poesia, Pernambuco e Sevilha. A secura de Pernambuco ensinou-lhe a secura da poesia, e Sevilha sempre foi para ele, poeta, um desvairado desafio.

2. Andando e amando Sevilha, o poeta vai, pouco a pouco, ilustrando a sua vivência sevilhana com poesia, como nesta estrofe de Estudos para uma Bailarina Andaluza:
Dir-se-ia, quando aparece
dançando por siguiriyas,
que com a imagem do fogo
inteira se identifica.

Aqui é o mundo das “bailaoras” que aparece vivo. São elas, “las gitanas andaluzas” que bailam ao som “del cante flamenco”, nos “tablaos” de bairros típicos.

3. As andaluzas, sejam de Sevilha ou de Cádiz, ou de qualquer outra cidade daquela região da Espanha, estão sempre presentes na sua poesia, como nesta primeira parte de Retrato de Andaluzia:

Estatura pequena e nítida

das cidades de onde ela era:
daquele justo para o abraço
que é de Cádiz, onde nascera,
e de Sevilha, onde vivia
e se dizia, mas não era:
cidades que ainda se podem
abraçar de uma vez, completas,
e que dão certo estar-se dentro,
àquele que as habita ou versa,
a entrega inteira, feminina,
e sensual ou sexual, de sesta.

Nestes versos, vislumbram-se duas cidades próximas, Sevilha perto do mar, e Cádiz, porto desse mar. Encontram-se a pouca distância uma da outra, ambas são capitais de províncias andaluzas. Assim, por serem irmãs próximas podem abraçar-se. Ambas são próprias para abraços, por acolhedoras que são. Inclusive, aqui, se inclui o fato de Cádiz encontrar-se numa parte mais ampla de pequena península e, portanto, rodeada de águas. É como se estivesse continuamente abraçada pelo Mediterrâno. Por isso, nela, pode dar-se um “certo estar-se dentro”, como também em Sevilha. Nelas acontece, porque ambas, femininas, “a entrega inteira”, “sensual e sexual” e de “sesta”, o horário em que em cidades tão quentes dá-se o inteiro fechar-se, sem sair às ruas.

4. O mundo dos touros, a tauromaquia, de que tanto gostava e frequentava, está, por exemplo no poema Alguns Toureiros:
Un cartel de corridas

Eu vi Manolo González
e Pepe Luís, de Sevilha:
precisão doce de flor,
graciosa, porém precisa.

Vi também Julio Aparício,
de Madrid, como Parrita:
ciência fácil de flor,
espontânea, porém estrita.

Vi Miguel Báez, Litri,
dos confins da Andaluzia,
que cultiva uma outra flor:
angustiosa de explosiva.

E também Antonio Ordóñez,
que cultiva flor antiga:
perfume de renda velha,
de flor em livro dormida.

Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,

o de nervos de madeira,

de punhos secos de fibra
o da figura de lenha
lenha seca de caatinga,

o que melhor calculava

o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,

o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,

sim, eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.
La Maestranza
Percebe-se pelo poema a intensa frequencia “a las plazas de toros”. Em Sevilha, está uma das mais famosas da Espanha, “la Real Maestranza de Caballería”. Situa-se no bairro de Arenal, um dos mais típicos daquela cidade. João Cabral torna “el toreo” um verdadeiro poema. O toureiro é o poeta; o tourear, o poema; e cada movimento na arena, é a metáfora contida no poema. Daí o elogio incontido a um dos maiores toureiros da Espanha, Manolete, que não só cultivava a sua poesia, como a demonstrava a outros poetas.

5. Nos bares da cidade, o poeta aprendeu a beber “a palo seco”, como dizem os boêmios sevilhanos. Beber apenas beber, sem mais nada. Nos tablados flamengos, apendeu que cantar “a palo seco” é apenas cantar. É um cantar solitário, sem acompanhamento. Diz João Cabral no início do poema A Palo Seco:

Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada.

João Cabral aproxima o “cante a palo seco” à sua própria poesia. Uma poesia seca, feita de silêncios, uma poesia só poesia. Segue, assim, o ensinamento que aprendeu no canto: “A palo seco existem / situações e objetos: / Graciliano Ramos, / desenho de arquiteto”.
O que de fato pode existir de mais seco, de “mais sem nada” do que simples objetos, do que os textos de Graciliano Ramos, do que um desenho de arquiteto. Eles são solitários, valem por si.

6. O bairro de Sevilha que ilustra a andança de João Cabral pela cidade é Arenal. Lamenta o poeta as mudanças havidas e, por essas, já quase nada mais existe do antigo e verdadeiro. A cidade modernizou-se. Só resta do outro lado do rio o bairro de Triana. É o que nos diz no poema O Arenal de Sevilha:
Torre de Oro
Já nada resta do Arenal
de que contou Lope de Vega.
A Torre do Ouro é sem ouro
senão na cúpula amarela.
Já não mais as frotas das Índias,

e esta hoje se diz América;
nem a multidão de mercado
que se armava chegando elas.
Já Riconete e Cortadilho

dormem no cárcere dos clássicos
e é ponte mesmo, de concreto,
a antiga Ponte de Barcos.
.
Urbanizaram num Passeio

o formigueiro que antes era;
só, do outro lado do rio,
ainda Triana e suas janelas.

O bairro Arenal é onde se encontram alguns dos monumentos mais famosos como a “Torre del Oro”, a “plaza de toros de la Maestranza”. Foi nesse bairro que teria surgido o mito de Don Juan, depois imortalizado literariamente pelo poeta barroco Tirso de Molina e, mais tarde, pelo romântico Francisco Zorilla, com a peça Don Juan Tenorio. Inspirou também Cervantes, o escitor francês Merimée, que escreveu a novela Carmen, base para ópera homônima do compositor também francês Bizet. Carmen seria uma jovem vendedora de cigarros, mas também dançarina atraente de Arenal. O bairro foi também motivo da obra do renascentista Lope de Vega, El Perro del Hortelano y el Arenal de Sevilla.
A modernização que conheceu João Cabral, e muito mais aquela sofrida depois da Exposição Universal de Sevilha, em 1992, fez com que a cidade se transformasse completamente em especial nesse espaço entre os bairros de Arenal e de Triana. Foi aí que se instalaram os pavilhões da grande Feira. Foi aí que se construiu a estação ferroviária para receber o AVE – o trem de alta velocidade, que liga Sevilha a Madri. Surgiram novas e moderníssimas pontes.
Nada disso, porém, pode ofuscar o antigo brilho da cúpula da “Torre del Oro”, o mistério da antiga Ponte de Barcos. O antigo espaço foi urbanizado num longo passeio. Só restou a poesia de Triana e de suas janelas, no outro lado do Guadalquivir.

7. Não se poderia esquecer uma rua de Sevilha. Fica, como exemplo, a Calle Relator, local que inspirou João Cabral de Melo Neto a “contar” poeticamente o Crime na Calle Relator, título de um poema e de um livro de João Cabral de Melo Neto.

Calle Relator
CRIME NA CALLE RELATOR
Achas que matei minha avó?

O doutor à noite me disse:
ela não passa desta noite;
melhor para ela, tranqüilize-se.

À meia-noite ela acordou;
não de todo, a sede somente;
e pediu: Dáme pronto, hijita,
una poquita de aguardiente.

Eu tinha só dezesseis anos;
só, em casa com a irmã pequena:
como poder não atender
a ordem da avó de noventa?

Já vi gente ressuscitar
com simples gole de cachaça
e arrancarse por bulerías
gente da mais encorujada.

E mais: se o doutor já dissera
que da noite não passaria
por que negar uma vontade
que a um condenado se faria?

Fui a esse bar do Pumarejo

quase esquina de San Luís;
comprei de fiado uma garrafa
de aguardente (cazzala e anis)

que lhe dei cuidadosamente
como uma poção de farmácia,
medida, como uma poção,
como não se mede a cachaça;

que lhe dei com colher de chá
como remédio de farmácia:
Hijita, bebi lo bastante,
disse com ar de comungada.

Logo então voltou a dormir
sorrindo em si como beata,
um semi-sorriso de gracias
aos santos óleos da garrafa.

De manhã acordou já morta,
e embora fria e de madeira,
tinha defunta o riso ainda
que a aguardente lhe acendera.

Aqui se dramatiza a culpa da jovem que ficou entre o dever de atender à sua querida avó e o perigo que poderia causar à saúde da velhinha adoecida. Teria cpometido um crime? O poeta a perdoa. Para ele, o que ela fez foi um grande bem. A doente conciliou o sono e pode reencontrar o riso perdido.

8. A cidade selecionada para representar localidades da província de Sevilha, foi Carmona. Aqui o poeta viu a arte de um ferrageiro, nas rendas de suas grades de ferro. Em O Ferrageiro de Carmona, o poeta aprendeu poesia. É arte difícil e deve ser feita à mão e não moldada em forma. Éo que se lê nestas estrofes selecionadas:

O FERRAGEIRO DE CARMONA
Um ferrageiro de Carmona,

que me informava de um balcão:
"Aquilo? É de ferro fundido,
foi a forma que fez, não a mão.
.
Só trabalho em ferro forjado

que é quando se trabalha ferro
então, corpo a corpo com ele,
domo-o, dobro-o, até o onde quero.
.
O ferro fundido é sem luta

é só derramá-lo na forma.
Não há nele a queda de braço
e o cara a cara de uma forja.
.
Existe a grande diferença

do ferro forjado ao fundido:
é uma distância tão enorme
que não pode medir-se a gritos.

Conhece a Giralda, em Sevilha?

De certo subiu lá em cima.
Reparou nas flores de ferro
dos quatro jarros das esquinas?

Pois aquilo é ferro forjado.

Flores criadas numa outra língua.
Nada têm das flores de forma,
moldadas pelas das campinas.
.
Dou-lhe aqui humilde receita,

Ao senhor que dizem ser poeta:
O ferro não deve fundir-se
nem deve a voz ter diarréia.
.
Forjar: domar o ferro à força,

não até uma flor já sabida,
mas ao que pode até ser flor
se flor parece a quem o diga.

O que o ferrageiro fazia era pura arte, pura poesia. Não escolhia o caminho fácil do ferro fundido, mas o trajeto difícil do ferro forjado. Forjado é o ferro, forjada é a poesia de João Cabral. O ferrageiro, semioticamente, sabia a diferença de linguagem que há entre o fazer flores de ferro e fazer poesia. Cada uma usa uma língua diferente. Era capaz ainda o ferrageiro de dar sábia lição: “o ferro não deve fundir-se / nem deve a voz ter diarréia”. Tudo deve ser difícil, contido, metáfora da própria poesia de João Cabral de Melo Neto.

9. João Cabral de Melo Neto afastou-se, ou teve de afastar-se fisicamente, de Sevilha. Porém, o poeta levou-a consigo. Ela o acompanhou na memória e nos versos. Assim a cidade passou a ser algo que o acompanharia sempre, Coisas de Cabeceira, Sevilha, que é o título de um de seus poemas. Nesta primeira parte, lemos:

Diversas coisas se alinham na memória

numa prateleira com o rótulo: Sevilha.
Coisas, se na origem apenas expressões
de ciganos dali; mas claras e concisas
a um ponto de se considerarem em coisas,
bem concretas, em suas formas nítidas.

Por estes versos pode-se notar mais uma vez a admiração de João Cabral pela concisão. O falar cigano é claro e comedido a ponto de se transformarem em coisas concretas, como queria o poeta que fosse a poesia. A sua era.

10. A despedida de João Cabral ao deixar Sevilha deve ter sido um momento de sofrimento para o poeta. Ao receber o adeus de seus amigos, procurou exorcizar esse sentimento de perda ao poetizar esse instante no poema Na Despedida de Sevilha:

NA DESPEDIDA DE SEVILHA
"Tó lo bueno le venga a U’ted.
Não viveu cá como um qualquer.
Conheceu Sevilha como a Bíblia
fala de conhecer mulher.
..
Sei tudo dessas relações
de corpo, que não o deixarão
ir de Sevilha a outra Cidade
como alguém que se lava as mãos.
.
Sei que sabe de tudo, até
dos estilos de matar touros;
do flamenco e sua goela extrema,
de sua alma esfolada, sem couro.
.
Sei que bem sabe distinguir
a soleá de uma siguiriya.
Sei que conhece casa a casa,
sua cal de agora e a cal antiga.
.
Sei que entende nossos infundios,
nossa verdade de mentira
que o sevilhano faz mais franco
mas nunca um Franco nem polícia
.
Eu, como simples sevilhano,
só sei
adiós na minha língua,
nesse andaluz de que a gramática
fala desde Madrid, e de cima.
.
Vaya con Dió! com o gracioso
que anda na boca das ciganas,
no Pumarejo, em Santa Cru,
nos cais da Barreta e Triana.
.
.Repito adió! nesse andaluz
que é o espanhol com mais imagens,
que faz a cigana e a duquesa
benzerem-se igual: Qué mal ange!”

João Cabral, ao deixar Sevilha, recebe as homenagens do homem simples, do andaluz autêntico, daquele que fala as palavras formalmente incompletas, mas completas no seu conteúdo, no sentimento que essas palavras expressam. “Que todo o bem o acompanhe”; “Segue com Deus!”; “adeus”. Era uma despedida de alguém que conhecia e sabia tudo de Sevilha. Sevilha é conhecida em seus recantos mais íntimos. É cidade e é mulher. Entende de touradas, de cantares populares, das pequenas mentiras, fingimentos, em que o sevilhano é mestre. Só o andaluz poderia reduzir uma expressão “que mala sangre”, em “qué mal ange”, que literalmente poderia ser “que mau caráter!”, mas transforma-se numa interjeição que pode admitir o sentido segundo a situação. Essa riqueza da fala do povo encantou o poeta e nela foi buscar fonte de – não direi inspiração – motivo para a sua poesia.

Finalizando, vamos procurar seguir o preceito do poeta. Já que não se pode humanizar a terra, vamos que se sevilhize o mundo. É o que faz João Cabral no poema Sevilhizar o Mundo:

Como é impossível, por enquanto,

civilizar toda a terra,
o que não veremos, verão,
de certo, nossas tetranetas,
.
infundir na terra esse alerta,

fazê-la uma enorme Sevilha,
que é a contra-pelo, onde uma viva
guerrilha do ser, pode a guerra.

Sevilha está presente em todos que a conhecem, localmente ou pela imaginação. Eu, agora, com João Cabral de Melo Neto revisitei Sevilha, andei Sevilha, amei Sevilha e aprendi poesia.