quarta-feira, 29 de abril de 2009

GEIR CAMPOS E A GERAÇÃO DE 45

Geir Nuffer Campos é um poeta capixaba (São José do Calçado/ES, 1924 - Niterói, 1999). Exerceu várias profissões. Foi jornalista, diagramador gráfico e inclusive piloto da marinha mercante e ex-combatente civil na Segunda Guerra Mundial.
Formado em Teatro e depois doutor em Comunicação Social, foi professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Colaborou em diversos diários do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Como radialista, apresentou programa sobre poesia na Rádio MEC, por mais de 20 anos. Foi também diretor da Biblioteca Pública Estadual de Niterói. É autor da letra do Hino de Brasília.
Literariamente, começou em 1940, escrevendo contos e poemas originais ou traduzidos. É de 1950 o seu seu primeiro livro Rosa dos rumos. Na continuidade, publicou várias outras obras poéticas. Os principais são: Da profissão do poeta, Canto claro e poemas anteriores, Operário do canto, Cantigas de acordar mulher, Metanáutica" e Canto de peixe, dentre outros. É também autor do Pequeno Dicionário de Arte Poética, importante guia para quem gosta de saber um pouco mais sobre poesia. Em 1956, recebeu o prêmio Olavo Bilac pelo livro Canto claro e poemas anteriores.
Ao lado de Péricles Eugênio da Silva Ramos, Alphonsus de Guimaraesn Filho, João Cabral de Melo Neto, Paulo Mendes Campos, Ledo Ivo, José Paulo Paes, dentre o s mais conhecidos, Geir Campos participou ativamente do grupo que ficou conhecido por Geração 45. No manifesto do grupo, lê-se: Somos na realidade um novo estado poético, e muitos são os que buscam um novo caminho fora dos limites do modernismo”.

Seguem três comentários críticos sobre Geir Campos:
1. “Com Operário do Canto, Geir Campos volta a mover a poesia social, para demonstrar que a preocupação social não perturba a tessitura lírica”. (Adonias Filho)

2. “A poesia de Geir Campos tem circulação, ousadia e canto. Ninguém pode equivocar-se: aproximando o ouvido, sentimo-la como um rumor de cristal errante, sentido e som da poesia verdadeira.” (Pablo Neruda)

Dos mais destacados poemas de Geir Campos, seguem:

TAREFA
Morder o fruto amargo e não cuspir

mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas mutáveis...
E quando em muitos a noção pulsar
— do amargo e injusto e falso por mudar —
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano.

(Poema do livro Geir Campos: antologia poética, Léo Christiano Editorial. Org. Israel Pedrosa: Rio de Janeiro, 2003, p. 89).

SAFRA
Como um viticultor ocioso come
em pleno outono, uma por uma, as uvas
do cacho que ele viu nascer, pesar,
sob os olhos do sol e o próprio olhar;
e em que, mais demorando o paladar
na espera aberta entre o prazer e a fome,
já reconhece o gosto bom das chuvas
lavando os fornos do verão distante;
e, como uma saudade só, o sabor
da terra presa às mãos grossas de suor
— assim viver a vida, instante a instante.

FOGUEIRA
Os gnomos do bosque desabotoam
as toscas pelerines de cortiça
forradas com cetim púrpura e ouro:
o mais sanguíneo deles inaugura
um inferno menor, e todos dançam,
enquanto as labaredas tremem como
mãos de noivas sem tálamo, acenando
para o vento cantor que as chora ausentes
— e também chora, nas árvores altas,
a mágoa obscura de não serem flautas.

HAICAIS
1.
Vento da manhã
varre as folhas pelo chão
do dia que nasce.
2.
Olhos de afogado:
são de ver coisas terríveis
no fundo do mar.


(Poemas do Jornal de Poesia. www.revista.agulha.nom.br/)

ALBA

Não faz mal que amanheça devagar,
as flores não têm pressa nem os frutos:
sabem que a vagareza dos minutos
adoça mais o outono por chegar.
Portanto não faz mal que devagar
o dia vença a noite em seus redutos
de leste - o que nos cabe é ter enxutos
os olhos e a intenção de madrugar.

(Poema de
www.almadepoeta.com)

Do livro Da profissão do poeta, que foi dedicado a Paulo Mendes Campos, são estes poemas:

DA IDENTIFICAÇÃO PROFISSIONAL

Operário do canto, me apresento
sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,
minha alma limpa, a face descoberta,
aberto o peito, e — expresso documento —
a palavra conforme o pensamento.

DO CONTRATO DE TRABALHO

Fui chamado a cantar e para tanto

há um mar de som no búzio do meu canto.
Embora a dor ilhada ou coletiva
me doa, antes celebro as coisas belas
que movem o sol e as demais estrelas
— antigos temas que parecem novos
de tão gratos ao meu e aos outros povos.

DA RELAÇÃO COM VÁRIOS OFÍCIOS
Meu verso tine como prata boa

pesando na confiança dos bancários;
os empregados no comércio bem
sabem como atender aos que encomendo
e recomendo mais do que ninguém;
aos que funcionam em telefonia
com ou sem fio, rádio, a esses também
sei dizer à distância ou de mais perto
a cifra e o texto no minuto certo;
para os músicos profissionais,
sem castigar o timbre das palavras
modulo frases quase musicais;
para os operadores de cinema
meu verso é filme bom que a luz não queima;
trilho também as estradas de ferro
e chego ao coração dos ferroviários
como um trem sempre exato nos horários;
às equipagens das embarcações
de mares ou de lagos ou de rios
meu verso fala doce e grave como
doce e grave é a taboca dos navios;
nos frigoríficos derrete o gelo
da apatia, se é para derretê-lo,
meu canto a circular nas serpentinas;
à boca da escotilha ou nas esquinas
do cais, o meu recado é força viva
guindando a atenção dos homens da estiva;
desço cantando aos subsolos e às minas
onde outros operários desenterram
o minério de suas artérias finas;
a outros, que dão sua têmpera aos metais,
meu canto ajuda feito um sopro a mais
aflando o fogo em flâmulas vermelhas;
aos colegas que lidam nos jornais
boas noticias dou e, mais do que isso,
jeito de as repetir e divulgar
quando o patrão quisera ser omisso;
à gente miúda, pronta a ser maior,
passo lições de um magistério puro
e o que é dever escrevo a giz no muro;
para os químicos sei fórmulas novas
que os mártires elaboram nas covas...
e a todos que trabalham vai assim
meu canto sugerindo meio e fim.

DO HORÁRIO DO TRABALHO
Marcadas as minhas horas de ofício,

de dia em sombras pelo chão e à noite
no rútilo diagrama das estrelas,
só quem ama o trabalho sabe vê-las.

DOS PERÍODOS DE DESCANSO
Seja domingo ou dia de semana,

mais do que as horas neutras do repouso
confortam-me os encargos rotineiros;
meu descanso é confiar nos companheiros.

DO DIREITO A FÉRIAS
Nunca me participam por escrito

ou verbalmente os ócios que mereço,
mas sempre gozo bem o merecido:
pois o ócio não é ofício pelo avesso?
É quando fio o verso; depois teço.

DA REMUNERAÇÃO DAS FÉRIAS
Em férias tenho a paga de saber

lembrado o verso meu por quem o inspira;
é como se outra mão tangesse a lira.

DO SALÁRIO MÍNIMO
Laborando entro os pontos cardinais,

de norte a sul, de leste a oeste, vou
cobrando aqui e ali quanto me basta:
o privilégio de seguir cantando.
(Imposto é cuidar onde e como e quando.)

DO EXPEDIENTE NOTURNO
Trabalho à noite e sem revezamentos.

Se há mais quem cante, cantaremos juntos;
sem se tornar com isso menos pura
a voz sobe uma oitava na mistura.

DA SEGURANÇA DO TRABALHO
Mesmo no escuro, canto. Ao vento e à chuva,

canto. Perigo à vista, canto sempre;
e é clara luz e um ar nunca viciado
e sol no inverno e fresca no verão,
meu canto, e sabe a flores se é de flores
e a frutos se é de frutos a estação.
Só não me esforço à luz artificial
com que a má fé de alguns aos mais deslumbra
servindo-lhes por luz o que é penumbra;
também quando o ar parece rarefeito
a lira engasga, o verso perde o jeito.

DA HIGIENE DO TRABALHO
Não canto onde não seja o sonho livre,

onde não haja ouvidos limpos e almas
afeitas a escutar sem preconceito.
Para enganar o tempo ou distrair
criaturas já de si tão mal atentas, não canto...
Canto apenas quando dança,
nos olhos dos que me ouvem, a esperança.

DA ALTERAÇÃO DE CONTRATO ETC.
Meu ofício é cantando revelar

a palavra que serve aos companheiros;
mas se preciso for calar o canto
e em fainas diferentes me aplicar
unindo a outros meu braço prevenido,
mais serviço que houver será servido.

Lendo alguns e relendo outros poemas de Geir Campos, percebo que a sua poesia, que é de talhe classicizante, como se propôs a Geração de 45, incopora elementos de várias poéticas. Como exemplo apenas, cito a poética dos árcades (veja–se o poema Fogueira, em que explora o motivo da flauta, aliado a um conjunto de outros motivos do viver bucólico); de Camões (principalmente poemas como Da Identificação Profissional, Do Contrato de Trabalho, Da Alteração de Contrato Etc, além de outros em que vibra o tom do decassílabo clássico); de Olavo Bilac (como o poema Do Horário de Trabalho, em que termina com versos muito parecidos com versos do famoso Soneto XIII da coletânea Via Láctea. É só comparar estes dois versos de Geir Campos: “no rútilo diagrama das estrelas, / só quem ama o trabalho sabe vê-las”, com estes dois de Olavo Bilac; “Pois só quem ama pode ter ouvido / Capaz de ouvir e de entender estrelas”);não podendo ainda esquecer da poética de João Cabral de Melo Neto, seu colega de Geração (vejam-se estes dois versos perfeitamente no estilo do poeta pernambucano: “pois o ócio não é ofício pelo avesso? / É quando fio o verso; depois teço”).
A sua poética é realmente multiforme. A sua poesia transita das atribuições trabalhistas, que ele poetiza com maestria, à fina sensibilidade e incomparável formalismo dos poemas de influência oriental, como os Haicais.
Nota-se também na sua obra, não apenas uma preocupação social, como alguns críticos apontam, porém, mais do que isso, um sentido de solidariedade humana (pode-se notar isso no poema Tarefa e nestes versos de Do Expediente Noturno: “Se há mais quem cante, cantaremos juntos”).
Espero que minha leitura tenha sido fiel ao espírito da poética de Geir Campos. Somente um poeta complexo como ele, consegue harmonizar o formalmente artesanal a um sentir profundamente poético.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

POESIA, FINGIMENTO E SINCERIDADE NA LITERATURA PORTUGUESA

A crítica literária portuguesa de modo geral se debate em relação a um problema literário, e em especial poético, que é o caso do fingimento e da sinceridade na criação artística. Qual seria a principal função do criador: confessar-se ou fingir? Com fundamento nessa pergunta-se, passa-se a enfocar a produção de determinado poeta de acordo com a feição teórica que esse criador assume ao escrever seus poemas.
Embora o problema seja de todos os tempos, em Portugal ele se aprofundou depois de Fernando Pessoa, que explicitava em suas criações poéticas e em textos críticos a ideia que arte, e em decorrência disso, literatura e, mais especificamente, poesia, tudo é fingimento. Aristotélico como era, o grande poeta português não se afastava muito do seu mestre grego, que afirmava ser a poesia uma imitação. Ser imitação do real e fingir o real são conceitos que praticamente se igualam, pois ambos defendem uma realidade que subjaz à criação literária e que é de outra natureza. Uma coisa é a realidade, outra, diferente, é a produção artística.
Essa discussão intensificou-se com as declarações do grande poeta e líder da revista Presença, José Régio. Este, em aparente oposição ao poeta da revista Orpheu, considera a arte como resultado não do fingimento, mas da sinceridade. Desde então esses dois conceitos passaram a se opor em termos de crítica literária.
Olhando-se, porém, por um outro prisma, parece que tanto a poesia dita fingida, como aquela dita sincera, em nada são diferentes. Ambas são fingidas e ambas são sinceras, simultaneamente. São fingidas em relação à pura realidade, ou, como se queira, a realidade real; e ambas são sinceras, quanto ao modo como são produzidas. São elas sinceras artisticamente. É o que se pode depreender de textos como os que seguem:
Quando Fernando Pessoa diz:
1. A base de toda a arte é a sensação.
2. Para passar de mera emoção sem sentido à emoção artística, ou susceptível de se tornar artística, essa sensação tem de ser intelectualizada
.
ele está lançando uma como que teoria da poesia fingida. Há a necessidade de intelectualizar uma sensação, ou seja, fingi-la, para que ela se torne uma sensação com valor artístico. Antes disso, ela é apenas uma sensação. Fernando Pessoa aplica essa teoria no poema que denominou Autopsicografia, como se constata nesta transcrição da primeira estrofe:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Assim, “a dor que deveras sente”, a que se refere o poeta, é a sensação; a dor que ele diz “fingir”, essa é já a dor intelectualizada, que se torna matéria poética. A poesia e a teoria se correspondem, numa prova inequívoca de que a poesia de Fernando Pessoa é uma poesia pensada e não meramente sentida.
De outro lado teórico, assumindo uma poesia viva, uma poesia sincera, José Régio declara:
o que então inspira a obra de arte - é a paixão; e uma paixão considerada infamante ou uma paixão considerada nobre – podem da mesma forma inspirar obras elevadas sob o ponto de vista que nos interessa: estético.
e também:
É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística.
Poeticamente, e de modo coerente com essa teoria, José Régio escreve poemas como Demasiado Humano, aqui ilustrado em sua primeira estrofe:
Escancarei, por minhas mãos raivosas,
As chagas que em meu peito floresciam.
Versos a escorrer sangue eis escorriam
Dessas chagas abertas como rosas…
e neste dramático poema denominado Diário, do qual se transcreve a primeira estrofe, diz ele:
Tinha um diário aonde ia escrevendo,
Dia a dia, a agonia dos meus dias:
Era um romance tremendo,
Dilacerado de piedade e de ironias.
Aí, estão presentes dois modos de enfocar teoricamente e na prática a arte da poesia, uma classificada como “poesia fingida” e uma outra, que se denominou “poesia sincera”. A primeira é representada principamente por Fernando Pessoa, mas de modo geral também pelos colaboradores da revista Orpheu, fundada em Lisboa em 1915. A segunda tem seu lídimo representante na pessoa de José Régio e dos poestas da revista Presença, que surgiu em Coimbra em 1927.
Esta discussão levada a sério por muitos críticos foi também bastante combatida e mesmo ironizada. É o caso, por exemplo, do poeta do Surrealismo português Alexandre O’Neill, que, com seu senso altamente irônico e de certo modo desestabilizador dos formalismos, como foi preceito da estética surrealista, escreveu:
Às dores inventadas
Prefere as reais.
Doem muito menos
Ou então muito mais...
Antes do encerramento, trazem-se aqui dois fragmentos da crônica Elogio da Mentira, de Miguel Sanches Neto, publicado em 31 de março de 2009. No primeiro, afirma-se:
Não há verdades, apenas versões. Levando este raciocínio ao seu extremo, chegaremos à conclusão de que tudo é ficção. Assim, nada coincide com nada. O que vejo não é igual ao que o outro vê, mesmo quando estamos olhando para o mesmo objeto e do mesmo mirante. Movemo-nos em meio a realidades construídas.
e no segundo, conclui-se:
Todo ficcionista é um ilusionista profissional; promove uma proliferação de entes e fatos, embaralhando assim as muitas realidades. Todas verdadeiras à sua maneira. Pois só à maneira de cada um é que pode haver verdade.
Concluindo este breve comentário sobre tema tão complexo, apenas podemos dizer que toda poesia é, de um ponto de vista, fingida, porque é a vivência de uma sensação, de uma emoção, que é transformada pelo poder de intelectualizar, enfim de transformar o que se vive em matéria poética, o que se configuraria como a arte de fingir. Por outro lado, toda a poesia é sincera, porque está de acordo com a arte e não com a realidade.
Fernando Pessoa, no poema Isto, que aqui se transcreve, esclarece vários aspectos:
Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
1. Ele não finge no sentido literal, ele apenas sente com a imaginação, ou seja, ele intelectualiza, “finge” poeticamente.
2. O que o poeta sonha ou passa – as emoções – isso é apenas o primeiro estágio; o segundo estágio, que é a intelectualização dessa sensação ou emoção, essa coisa é que é linda, porque já é matéria poética.
3. Finalmente, o poeta confirma que escrever livre do enleio, ou seja, livre do encantamento do que se vive, mas, de modo sério, embora sobre um assunto que não é sério no sentido estrito da palavra, mas um “fingimento”, uma “cópia”, é que torna a arte séria. A arte assim construída deve, portanto, autêntica, verdadeira do ponto de vista estético.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

UM CONTO DE DANIEL OSIECKI

Daniel Osiecki é um jovem curitibano, nascido em 1983. Formou-se em Letras na Pontifícia Universidade Católica do Paraná e especializou-se em Literatura Brasileira nessa mesma Instituição. Na Especialização, apresentou como monografia um estudo sobre um romance de Moacir Scliar, que denominou: Um Herdeiro da Diáspora: a questão da identidade judaica em O Centauro no Jardim, de Moacyr Scliar.
Profissionalmente, é professor de literatura brasileira e revisor de texto. Mantém o Blog Távola Redonda, voltado para a literatura. Nele, Daniel publica seus estudos, principalmente sobre autores portugueses. O próprio título do blog, ao homenagear uma revista literária portuguesa dos anos 50, demonstra claramente a influência da literatura portuguesa nos seus trabalhos. É nesse espaço, que publica periodicamente artigos e análises literárias.
Como músico, creio que um tanto amador, tem feito apresentações com sua Banda formada por ele e alguns amigos, que foram seus colegas no curso e fora dele. Nela, Daniel é responsável pelo som da bateria.
O livro de contos Abismo é sua primeira obra de ficção publicada. Os contos aí presentes mostram geralmente ambientes sombrios, próprios de um sorvedouro, ou abismo, como o autor intitulou esta sua obra. Explora os aspectos existenciais, o que reflete a grande admiração que tem pelo existencialista português Vergílio Ferreira. A confirmar essa influência, como epígrafe ao livro, transcreveu este trecho desse autor: “Se o homem “é” o que faz, é-o sobretudo para os outros, não totalmente para si, muito menos para a interminável realização da própria aspiração humana” (Vergílio Ferreira).
Conheci o Daniel como meu aluno de literatura portuguesa no curso de Letras da PUCPR. Em uma das primeiras aulas, quando procurei levantar algumas leituras já feitas, ele foi um dos poucos que conhecia autores e obras dessa literatura. Propôs-se a apresentar na próxima aula a leitura que fizera de Viagens na minha terra, do romântico Almeida Garrett. Em suas leituras, logo entusiasmou-se pelos autores neo-realistas. Passou a ler Alves Redol, Fernando Namora e Miguel Torga daquela fase em que se preocupou com os problemas sociais do norte vinhateiro. Costumamos manter vivo um relacionamento, ao menos pela Internet. Sei que continua interessado na literatura portuguesa. Em seu blog, diz: “Em nome dos poetas que publicaram na Revista Távola Redonda, criei este blog. Espaço para discussões sobre literatura, muito em especial a Literatura Portuguesa. Viagens poéticas e narrativas”.


O lançamento do livro Abismo aconteceu no sábado, 28 de março deste ano. Lá estive, para cumprimentar o autor, ex-aluno e amigo Daniel Osiecki.




A seguir um conto transcrito de Abismo:

PESSOAS
Fernando acabara de sair do modesto restaurante onde almoçava todos os dias no centro de Lisboa. Caminhando despreocupado pela rua encontrou um velho amigo, Bernardo.
- Olá, Fernando. Quanto tempo, como está?
- Estou bem, Bernardo, obrigado. Como está indo o escritório de contabilidade? Muita correria?
- Daquele jeito de sempre. Você soube do Alberto?
- Claro, uma grande perda. Ele foi um mestre para mim. No ano passado passei algumas semanas com ele e com a tia na casa que tinham no Douro. Foi uma grande perda mesmo.
- E se foi. Bem, está muito ocupado agora?
- Na verdade estava indo ver Ophélia, mas... por quê?
- Estou indo encontrar o Ricardo. Quer me acompanhar?
Fernando pensou por alguns segundos e decidiu que acompanharia o velho amigo no passeio.
- Claro! - Respondeu Fernando. - Por que não? Depois eu explico pra Ophélia.
Os dois dirigiram-se para a cantina Pessoa, que ficava próxima à Praça do Comércio. Fernando era correspondente estrangeiro, escrevia versos e também tinha uma tipografia em Lisboa. Ele e seus companheiros da Revista Orpheu estavam em polvorosa, pois a revista havia sido um sucesso. Seu grande amigo Mário estava preparando a segunda tiragem.
Bernardo era uma figura atípica. Muito pouco sabia sobre seu amigo, apenas que havia nascido em Lisboa e trabalhava como assistente contábil e levava uma vida modesta. Também era poeta, e tinha uma ambição: publicar sua obra prima que já havia começado a lhe inquietar.
- Então, como vai sua obra-prima? ­Perguntou Fernando, acendendo um cigarro.
- Não sei. Já pensei em desistir. Já tenho o título.
- Qual é? - Perguntou Fernando, interessado. - Eu prefiro não falar nada por enquanto. Vamos ver. Vamos aguardar.
Um garçom traz uma jarra de vinho do Porto e se retira rapidamente para atender dois rapazes que estavam à mesa ao lado. Nesse momento entra um homem alto, com um ar de erudito e com uma maleta de médico na mão esquerda. Dirige-se à mesa de Fernando e Bernardo e cordialmente os cumprimenta.
- Boas tardes caros colegas!
- Querido amigo Ricardo, como estás? - Pergunta afavelmente Bernardo.
- Agora estou bem, caro Bernardo, agora que estou de volta a Portugal.
- Ricardo, o que você fez esse tempo todo no Brasil? - Pergunta Fernando, interessado nas suas novidades.
- Olá, Fernando. Como sabes, estive exilado. Exerci minha profissão de médico e escrevi odes. Bem, como vão as coisas por aqui? Soube da revista.
- Pois é. Eu e o Mário trabalhamos duro. Se tiver interesse em juntar-se a nós...
- Meu caro Fernando, sabes muito bem que jamais conseguiríamos trabalhar juntos. Eu considero a produção de vocês um tanto quanto alucinada, irreverente demais, até certo ponto chocante. Espero que...
- Você jamais romperia com as estéticas do passado. Você não passa de um burguês que é incapaz de...
Nesse momento Bernardo, até agora apenas ouvindo os dois amigos, intervém na conversa com a intenção de acalmar os ânimos. - Calma, gente, mudemos de assunto. E o Álvaro?
- O Álvaro está viajando pelo Oriente.
Nem sinal dele. - Ricardo tomou um longo gole do vinho. - quando falei com ele pela última vez, ele estava me mostrando alguns poemas que chamavam de futuristas.
Os três ainda ficaram conversando por uma hora. Depois saíram e cada um seguiu um caminho diferente. Apesar de todas as divergências, de todas as diferenças intelectuais e de uma certa hostilidade entre os amigos, separados e distantes, pareciam fragmentos de um mesmo ser. Suas condições de seres estilhaçados por razões diversas, davam a cada um deles um aspecto soturno e radiante ao mesmo tempo. Quando estavam um ao lado do outro não se suportavam, ou apenas fingiam, pois o poeta é um fingidor, e finge que é dor a dor que deveras sente. Porém quando estavam separados, distantes, sentiam que se comunicavam e que se completavam de alguma forma. Os estilhaços provocados pela distância os aproximavam, e assim os formavam como um único-ser.
O céu de Lisboa já estava tornando-se escuro, as pessoas que caminhavam na Praça do Comércio caminhavam mais rápido. O desejo de chegar em casa era grande. Em frente da Cantina Pessoa chegou um homem alto, de cabelos escuros e usando monóculo. Entrou e dirigiu-se ao balcão.
- Boas noites. O senhor sabe se aqui estiveram três cavalheiros. Fernando, Bernardo e Ricardo?
- Assim por nome é difícil, entra tanta gente aqui todo dia.
O elegante senhor colocou as mãos nos bolsos em busca de papel e caneta. Escreveu seu nome e deu ao dono da cantina.
- Se eles aparecerem aqui ainda hoje ou amanhã, diga que ficarei em Lisboa até o final da semana. É fácil de reconhecê-los. Muito obrigado, senhor e boas noites.
Saiu pela rua escura. O simpático senhor dono da cantina pegou o bilhete e leu em voz alta. Estava sozinho.
- "Voltei. Álvaro de Campos".

Em um breve comentário, pode-se dizer que Daniel Osiecki assimilou bem as características do Pós-Modernismo. No conto Pessoas, há o caráter da intextextualidade entre a sua narrativa e o verdadeiro “romance” criado por Fernando Pessoa entre si e suas diferentes personas, os heterônimos.
Uma outra tendência pós-modernista, e que decorre da primeira, é o recontar fatos históricos ou da história literária. Daniel faz em seu conto o que autores famosos já fizeram sobre o mesmo tema É só relembrar José Saramago com o romance O ano da morte de Ricardo Reis e Amadeu Lopes Sabino com o conto O Lepidóptero, do livro Retrato de Rubens. E sem esquecer os textos de Fernando Pessoa, que estão, sobretudo, em Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, em especial na parte que ele intitulou Para a Compreensão de... (Alberto e Caeiro e também os outros heterônimos), além, ainda, do Livro do desassossego, do heterônimo prosador Bernardo Soares, que foram, sem dúvida, fontes valiosas para o texto de Daniel Osiecki.
É lógico que as narrativas desta obra de Daniel sofram daquelas impurezas próprias das primeiras obras de um autor, seja ele qual for. Como diz Ricardo Reis sobre a poesia de Alberto Caeiro, embora eu reproduza as suas palavras sem a crueldade daquele frio heterônimo: “Perdoa-se-lhe a falta, porque aos inovadores muito se perdoa; mas não se pode omitir que seja uma falta, e não uma distinção”.
E, para finalizar, reproduzo o texto aparentemente enigmático e cruel de Álvaro de Campos sobre o Cancioneiro de Fernando Pessoa: “Sou demasiado amigo de Fernando Pessoa para dizer bem dele sem me sentir mal: a verdade é uma das piores hipocrisias a que a amizade obriga”. (Ser amigo, e eu sou amigo do Daniel, não nos pode impedir de falar bem de alguém. É o que eu faço agora. Falo bem dos contos do livro Abismo).