quarta-feira, 25 de março de 2009

A POESIA DE HERCÍLIA FERNANDES

Por intermédio de Tânia Azeredo, a Taninha, dos Blogs No rastro da poesia e no Rastro da educação, tomei contato com a poesia de Hercília Fernandes. Ela é uma mulher de muitos talentos: educadora, compositora de música popular, poetisa e escritora, não necessariamente nessa ordem. Talvez, simultaneamente, como todas as pessoas que se propõem a produzir trabalho, arte, cultura.
Com dois livros publicados, Retrato de Helena, 2005, e Agá-Efe: entre ruínas e quimeras, 2006, Hercília Fernandes já faz parte do mundo das letras. Como professora e pedagoga, atua na educação fundamental e na universitária, em seu estado natal, o Rio Grande do Norte. É Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal. Na área da educação, é também Especialista em Educação Infantil pela mesma UFRN – Centro de Ensino Superior de Seridó, em Caicó, sua terra natal, no extremo sul do estado potiguara.
Escreve versos desde muito jovem. Como confessa, aprendeu a construir seus sonhos na paisagem do sertão. Talvez, a brancura do algodão do Seridó, a brisa da serra da Borborema, aliados à beleza dos bordados da região foram o alento poético da sua meninice e que se solidifica agora na juventude. Hercília Fernandes mantém os Blogs HF diante do espelho e Novidades & Velharia. Como não tive ainda acesso aos livros de Hercília Fernandes, recolhi em diferentes blogs os três poemas que seguem:

ORVALHO (Etimologia poética)
Favor não me chamar:

ervilha
lentilha
milha
qualquer coisa terminada em ilha!

Gosto das mil miudezas...

Aprecio deveras poesia-ilha
Porém, my name is
Hercília!


Me chame orvalho.
Lágrimas aquecem o tom matinal

dispersam tempestades após labores e silêncios.

Me chame firmamento

Jardim em flor desbravando litoral
Rósea cor, purpurina, a-normal
Mas, favor não me chamar

ervilha

lentilha
milha
qualquer terminação em ilha

Meu nome é orvalho

natural-mente
Hercília!

Neste poema, dá-se atenção ao trabalho com a palavra. Da palavra Hercília, o seu nome, a poetisa deriva, foneticamente, ervilha, lentilha, milha e a terminação ilha. Esta última, porém, embora uma terminação, assume o seu próprio sentido como palavra, o substantivo ilha. Assim, passa a significar, plurivocamente, um acidente geográfico, mas que, muito frequentemente, tanto poética como filosoficamente, torna-se metáfora de homem ou de mulher. É comum dizer-se que ninguém pode ser uma ilha. Todos nós necessitamos de outras pessoas, sejam familiares, amigos, pessoas amadas, enfim o outro, para nos completar e dar sentido à nossa existência.
Além desse trabalho paronomásico, a poetisa trabalha também com a formação das palavras. Assim grafa poesia-ilha, a-normal e natural-mente. Na primeira, a palavra ilha aparece na formação da palavra composta poesia-ilha. Em a-normal, dá-se a formação de uma nova palavra com o prefixo negativo a. Por fim, em natural-mente, temos uma formação com o sufixo mente, que pode aproximar-se ao verbo mentir, sinônimo de fingir, usado frequentemente para evidenciar o aspecto ficcional do texto. Não se pode também desprezar o emprego da expressão em língua inglesa my name is. Os estrangeirismos, ao lado de arcaísmos e de neologismo constituem fortes recursos poéticos.


ORVALHO (Etimologia poética) traz no título o alerta de ser um poema que busca a própria etimologia dos seus termos. E o termo nuclear do poema é o próprio nome da autora: Hercília.
É assim que leio o poema Orvalho, de Hercília Fernandes.

CAVALO ALADO
Fiquei triste!

De repente todo manto azul do céu
desabou sobre mim. Ao tocar minha pele, aquele azul-celeste,
claro feito neve, coloriu-me de carmim.

Claro! Eu não dei por mim.

Precisava mais de poesia:
escura, difusa, tardia
faria luz à minha nostalgia.
Claro! Eu desejei o cetim.

Com todos os seus festins.
Eu precisava demais de folia
para emoldurar a minha melancolia.

Claro! Tudo foi só um sonho

Um engano desenganado:
claro - como é o orvalho,
escuro - como é o pecado.

Claro... O sonho se foi num cavalo alado!

Este é um poema que estrutural e semanticamente privilegia, em especial, o elemento cromático e a rima, além da duplicidade semântica natural de toda poesia.
Quanto ao elemento cromático, que se alia às antíteses, aparecem explicitamente “manto azul do céu”, “azul celeste”, “carmim”; e, implicitamente à cor do, a “cetim”, que geralmente se apresenta colorido. Há, ainda, o “claro orvalho” em oposição ao “escuro pecado”. Essas oposições desembocam em um autêntico paradoxo: “engano desenganado”. Esse é o estado em que o eu poético mergulha.
É esse estado poético, já emergente nas contradições da primeira estrofe: “azul celeste, claro feito neve, coloriu-me de carmim”. Isso desencadeia, na segunda estrofe, uma sequência de rimas pelo emprego das palavras: poesia, tardia, nostalgia, folia, melancolia. E isso constitui o festim desejado.

A duplicidade semântica aparece acentuadamente no último verso com a palavra Claro. O termo Claro tanto pode referir-se à brancura do sonho, como representar uma expressão afirmativa, que surge em frases como, por exemplo, "Claro que isso acontece...".
Como motivos principais, aparecem a tristeza e a desilusão. O poema inicia com o verso “Fiquei triste” e continua registrando “minha nostalgia”, “minha melancolia”, para encerrar-se com “O sonho se foi num cavalo alado!”.
O cavalo branco, ao voar, leva o sonho. É a perda, o esvair-se do sonho.

MARIA CLARA

Maria Clara
Clara
Alva
rara Maria.

............................................................ Ria

............................................................ Ia
............................................................ Subia
............................................................ clara à luz do dia

Minha cara,

Clara minha!

........................................................... Doce flauta,

........................................................... serena,
........................................................... silencia.

Minha causa
fada minha!

........................................................... Rara

........................................................... tão alva
.......................................................... Clara,
........................................................... tanto bem,
.......................................................... Maria!

Neste poema, Hercília Fernandes trilha o experimentalismo. A disposição das estrofes - que ocupam diferentes espaços na página em branco - vai ao encontro de uma das primeiras formas experimentais da poesia que depois foi também denominada poesia concreta, como se prefere no Brasil, ou experimental, denominação mais presente na literatura portuguesa. Essa é uma contribuição, principalmente, da poesia de Mallarmé, com o poema Un coup de dés.
Com o aproveitamento dessa técnica, a poetisa passeia pelos recursos do concretismo com bastante facilidade. Da similaridade formal da palavra passa para a diferenciação semântica, como em “Maria Clara”, “Clara”, “Alva”. Nessa sequência, há a passagem de Clara (substantivo próprio), para Clara (adjetivo) e finalmente um sinônimo da segunda palavra, o também adjetivo Alva. De modo semelhante, continua na segunda estrofe, embora com outras derivações: Ria, que evolui para ia, para subia e para dia, sempre com a terminação ia, que aparece na primeira palavra. Segue em frente explorando o processo em: cara, Clara, causa. Na última estrofe, surge Rara, próxima foneticamente de cara e de Clara.
Como figuras, aparece a metáfora sinestésica "Doce flauta", seguida da assonância serena, silencia.
Para concluir, é interessante notar que o texto inicia com Maria e termina com Maria. É como o fechamento de um círculo e como, também, a expressão viva da circularidade do poema, uma das características da poesia concreta.

Com os comentários, procurei mostrar um pouco da riqueza e da complexidade da poesia de Hercília Fernandes. Espero que a poetisa continue com sua produção poética, para satisfação de seus leitores, dentre os quais me incluo.

Para encerrar, envio uma homenagem à Hercília e à sua terra natal.


Sertão. Seridó.
Na beleza da brancura
a flor de Caicó.



terça-feira, 17 de março de 2009

DE REALITY SHOW E DE FERNANDO PESSOA

Em um programa dominical de televisão, uma participante recentemente eliminada de um Reality Show, quando entrevistada, referiu-se à existência de duas vidas: uma lá dentro, no ambiente vivido pelos enclausurados, e outra aqui fora. Falou também que todos possuem dois lados: o que é visto aqui de fora e outro que se vivencia lá dentro.
Portanto, de modo simplificado, o que ela disse e o que há são duas vidas. Uma é a vida real, aquela de aqui fora; a outra, uma vida fingida, a dos participantes na casa do reality show. Ou será o contrário?, como indaga Fernando Pessoa. A entrevistada acrescentou, ainda, que o fato de as pessoas cultivarem os dois lados é normal, porque todos nós os possuímos concomitantemente.
Como esses são temas de vários autores, e frequentes na poesia de todos os tempos, lembrei-me em especial de Fernando Pessoa. Em várias passagens da sua obra, o poeta versa, como um dos motivos de sua poesia, a existência de duas vidas, uma real e outra fingida.
Ao retornar à literatura portuguesa, vamos transcrever dois textos de Fernando Pessoa: um poema e um fragmento de um poema em prosa, dentre aqueles que o próprio poeta denominou poemas dramáticos.

POEMA 165
Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida.
E outra vida que é pensada.
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual, porém, é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.


Aprendamos a viver e a conviver com nossas duas vidas, com a real - a vivida - e com a pensada - puro sonho. Penso que ninguém sabe explicar qual a verdadeira e qual a errada, porque ambas são verdadeiras.

FRAGMENTO DE O MARINHEIRO, poema dramático de Fernando Pessoa.
(...)
SEGUNDA — À beira-mar somos tristes quando sonhamos... Não podemos ser o que queremos ser, porque o que queremos ser queremo-lo sempre ter sido no passado... Quando a onda se espalha e a espuma chia, parece que há mil vozes mínimas a falar. A espuma só parece ser fresca a quem a julga uma... Tudo é muito e nós não sabemos nada... Quereis que vos conte o que eu sonhava à beira-mar?
PRIMEIRA — Podeis contá-lo, minha irmã; mas nada em nós tem necessidade de que no-lo conteis... Se é belo, tenho já pena de vir a tê-lo ouvido. E se não é belo, esperai..., contai-o só depois de o alterardes...
SEGUNDA — Vou dizer-vo-lo. Não é inteiramente falso, porque sem dúvida nada é inteiramente falso. Deve ter sido assim... Um dia que eu dei por mim recostada no cimo frio de um rochedo, e que eu tinha esquecido que tinha pai e mãe e que houvera em mim infância e outros dias — nesse dia vi ao longe, como uma coisa que eu só pensasse em ver, a passagem vaga de uma vela. Depois ela cessou... Quando reparei para mim, vi que já tinha esse meu sonho... Não sei onde ele teve princípio... E nunca tornei a ver outra vela... Nenhuma das velas dos navios que saem aqui de um porto se parece com aquela, mesmo quando é lua e os navios passam longe devagar...
PRIMEIRA — Vejo pela janela um navio ao longe. É talvez aquele que vistes...
SEGUNDA — Não, minha irmã; esse que vedes busca sem dúvida um porto qualquer... Não podia ser que aquele que eu vi buscasse qualquer porto...
PRIMEIRA — Por que é que me respondestes?... Pode ser... Eu não vi navio nenhum pela janela... Desejava ver um e falei-vos dele para não ter pena... Contai-nos agora o que foi que sonhastes à beira-mar...
SEGUNDA — Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam por elas... Não vi se alguma vez pousavam... Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali... Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas... Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia, de costas e não reparando nas estrelas.
PRIMEIRA — Não ter havido uma árvore que mosqueasse sobre as minhas mãos estendidas à sombra de um sonho como esse!...
TERCEIRA — Deixai-a falar... Não a interrompais... Ela conhece palavras que as sereias lhe ensinaram... Adormeço para a poder escutar... Dizei, minha irmã, dizei... Meu coração dói-me de não ter sido vós quando sonháveis à beira-mar...
SEGUNDA — Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num sonho contínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma pedra de sonho nesse edifício impossível... Breve ele ia tendo um país que já tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se já de ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que cor soíam ser os crepúsculos numa baía do norte, e como era suave entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmúrio da água que o navio abria, num grande porto do sul onde ele passara outrora, feliz talvez, das suas mocidades a suposta...
(uma pausa)
PRIMEIRA — Minha irmã, por que é que vos calais?
SEGUNDA — Não se deve falar demasiado... A vida espreita-nos sempre... Toda a hora é materna para os sonhos, mas é preciso não o saber... Quando falo de mais começo a separar-me de mim e a ouvir-me falar. Isso faz com que me compadeça de mim própria e sinta demasiadamente o coração. Tenho então uma vontade lacrimosa de o ter nos braços para o poder embalar como a um filho... Vede: o horizonte empalideceu... O dia não pode já tardar... Será preciso que eu vos fale ainda mais do meu sonho?
PRIMEIRA — Contai sempre, minha irmã, contai sempre... Não pareis de contar, nem repareis em que dias raiam... O dia nunca raia para quem encosta a cabeça no seio das horas sonhadas... Não torçais as mãos. Isso faz um ruído como o de uma serpente furtiva... Falai-nos muito mais do vosso sonho. Ele é tão verdadeiro que não tem sentido nenhum. Só pensar em ouvir-vos me toca música na alma...
SEGUNDA — Sim, falar-vos-ei mais dele. Mesmo eu preciso de vo-lo contar. À medida que o vou contando, é a mim também que o conto... São três a escutar... (De repente, olhando para o caixão, e estremecendo). Três não... Não sei... Não sei quantas...
TERCEIRA — Não faleis assim... Contai depressa, contai outra vez... Não faleis em quantos podem ouvir... Nós nunca sabemos quantas coisas realmente vivem e vêem e escutam... Voltai ao vosso sonho... O marinheiro. O que sonhava o marinheiro?
SEGUNDA (mais baixo, numa voz muito lenta) — Ao princípio ele criou as paisagens, depois criou as cidades; criou depois as ruas e as travessas, uma a uma, cinzelando-as na matéria da sua alma — uma a uma as ruas, bairro a bairro, até às muralhas dos cais de onde ele criou depois os portos... Uma a uma as ruas, e a gente que as percorria e que olhava sobre elas das janelas... Passou a conhecer certa gente, como quem a reconhece apenas... Ia-lhes conhecendo as vidas passadas e as conversas, e tudo isto era como quem sonha apenas paisagens e as vai vendo... Depois viajava, recordando, através do país que criara... E assim foi construindo o seu passado... Breve tinha uma outra vida anterior... Tinha já, nessa nova pátria, um lugar onde nascera, os lugares onde passara a juventude, os portos onde embarcara... Ia tendo tido os companheiros da infância e depois os amigos e inimigos da sua idade viril... Tudo era diferente de como ele o tivera — nem o país, nem a gente, nem o seu passado próprio se pareciam com o que haviam sido... Exigis que eu continue?... Causa-me tanta pena falar disto!... Agora, porque vos falo disto, aprazia-me mais estar-vos falando de outros sonhos...
TERCEIRA — Continuai, ainda que não saibais por que... Quanto mais vos ouço, mais me não pertenço...
PRIMEIRA — Será bom realmente que continueis? Deve qualquer história ter fim? Em todo o caso falai... Importa tão pouco o que dizemos ou não dizemos... Velamos as horas que passam... O nosso mister é inútil como a Vida...
SEGUNDA — Um dia, que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto, o marinheiro cansou-se de sonhar... Quis então recordar a sua pátria verdadeira..., mas viu que não se lembrava de nada, que ela não existia para ele... Meninice de que se lembrasse, era a na sua pátria de sonho; adolescência que recordasse, era aquela que se criara... Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara... E ele viu que não podia ser que outra vida tivesse existido... Se ele nem de uma rua, nem de uma figura, nem de um gesto materno se lembrava... E da vida que lhe parecia ter sonhado, tudo era real e tinha sido... Nem sequer podia sonhar outro passado, conceber que tivesse tido outro, como todos, um momento, podem crer... Ó minhas irmãs, minhas irmãs... Há qualquer coisa, que não sei o que é, que vos não disse... Qualquer coisa que explicaria isto tudo... A minha alma esfria-me... Mal sei se tenho estado a falar... Falai-me, gritai-me, para que eu acorde, para que eu saiba que estou aqui! ante vós e que há coisas que são apenas sonhos...
PRIMEIRA (numa voz muito baixa) — Não sei que vos diga... Não ouso olhar para as cousas... Esse sonho como continua?...
SEGUNDA — Não sei como era o resto... Mal sei como era o resto... Por que haverá mais?...
PRIMEIRA — E o que aconteceu depois?
SEGUNDA — Depois? Depois de quê? Depois é alguma cousa?... Veio um dia um barco... Veio um dia um barco... — Sim, sim... só podia ter sido assim... — Veio um dia um barco, e passou por essa ilha, e não estava lá o marinheiro.
TERCEIRA — Talvez tivesse regressado à pátria... Mas a qual?
PRIMEIRA — Sim, a qual? E o que teriam feito ao marinheiro? Sabê-lo-ia alguém?
SEGUNDA — Por que é que mo perguntais? Há resposta para alguma coisa?
(uma pausa)
TERCEIRA — Será absolutamente necessário, mesmo dentro do vosso sonho, que tenha havido esse marinheiro e essa ilha?
SEGUNDA — Não, minha irmã; nada é absolutamente necessário.
PRIMEIRA — Ao menos, como acabou o sonho?
SEGUNDA — Não acabou... Não sei... Nenhum sonho acaba... Sei eu ao certo se o não continuo sonhando, se o não sonho sem o saber, se o sonhá-lo não é esta coisa vaga a que eu chamo a minha vida? Não me faleis mais... Principio a estar certa de qualquer coisa, que não sei o que é... Avançam para mim, por uma noite que não é esta, os passos de um horror que desconheço... Quem teria eu ido despertar com o sonho meu que vos contei?... Tenho um medo disforme de que Deus tivesse proibido o meu sonho... Ele é sem dúvida mais real do que Deus permite... Não estejais silenciosas... Dizei-me ao menos que a noite vai passando, embora eu o saiba... Vede, começa a ir ser dia... Vede: vai haver o dia real... Paremos... Não pensemos mais... Não tentemos seguir nesta aventura interior... Quem sabe o que está no fim dela?... Tudo isto, minhas irmãs, passou-se na noite... Não falemos mais disto, nem a nós próprios... É humano e conveniente que tomemos, cada qual, a sua atitude de tristeza.
(...)

Continuemos, como o marinheiro, a sonhar uma pátria, a nossa, aquela que nós construímos, seja essa pátria, um lugar, um tempo, ou mesmo a nossa vida.