sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

CASSIANO RICARDO

Cassiano Ricardo (São José dos Campos, SP, 26/07/1895 - Rio de Janeiro, 14/01/1974. Foi jornalista, poeta e ensaísta. Membro da Academia Brasileira de Letras, Cadeira n. 31, sucedeu ao também paulista Paulo Setúbal. Foi saudado em sua posse por outro paulista, Guilherme de Almeida.
Aos 16 anos publicou seu primeiro livro de poesias, Dentro da noite. Formou-se em Direito no Rio de Janeiro. Em São Paulo, foi um dos líderes da Semana de Arte Moderna de 1922, em que participou ativamente dos grupos "Verde Amarelo" e "Anta", ao lado de Plínio Salgado, Menotti del Picchia, Raul Bopp, Cândido Mota Filho e outros. É a denominada fase nacionalista.
Como jornalista, colaborou nos mais importantes jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Fundou algumas revistas literárias: Novíssima, Planalto (1930) e Invenção (1962).
Inicialmente, pertenceu ao Integralismo chefiado por Plínio Salgado, porém, mais tarde, abandona essa tendência e, com Menotti del Picchia e Mota Filho, inicia o movimento político Bandeira, exatamente para contrapor-se ao Integralismo. O movimento lutava "Por uma democracia social brasileira, contra as ideologias dissolventes e exóticas".
Iniciou-se como poeta lírico-sentimental em sua primeira obra, ainda sobre a influência do Parnasianismo e do Simbolismo. Com A flauta de Pã (1917) já adota uma estética que se aproxima dos ideais modernistas de 1922. Foi modernista ortodoxo até o início da década de 40. Suas principais obras dessa fase são: Vamos caçar papagaios (1926), Borrões de verde e amarelo (1927) e Martim Cererê (1928), obras que estão entre as mais representativas do Modernismo.
Na década de 40, com O sangue das horas (1943), inicia uma outra fase bem diferente das anteriores. Passa do imagismo cromático ao lirismo introspectivo-filosófico. Esta nova tendência se acentua em Um dia depois do outro (1947). Esta obra é considerada o marco divisório da sua carreira literária.
Como homem e artista que costumava acompanhar de perto a evolução da política e das artes, Cassiano Ricardo seguiu de perto as experiências do Concretismo e do Praxismo. Nestes movimentos produziu obras poéticas de vanguarda nas décadas de 50 e 60. A sua obra mais representativa do Experimentalismo é Jeremias sem-chorar, de 1964. Nela, registra-se o experimentalismo de um poeta que percorreu um longo caminho na poesia brasileira e que merece lugar de destaque na literatura brasileira.

Os sonetos da primeira fase de sua poesia, como os exemplos abaixo, vão sendo substituídos por poemas livres integrados a uma nova estética:

QUADRO ANTIGO

Por certo que amo as coisas, os objetos,
que me acompanham, neste fim de viagem.
São elas, coisas, minhas cúmplices, à hora
em que, ó lua, me contas teus segredos.

São eles, os objetos, os meus símbolos,
para uma última fotomontagem.
Mas, como são — coisas e objetos — tristes,
por já não serem mais os meus brinquedos.

Em vão o calor físico os dilata.
Em vão meu pensamento lhes dilui
o acre contorno, em proustiana sondagem.

Só, contra o sol, a sombra deles flui!
no chão, na mesa, ou — colorida imagem —
no cristal onde nunca sou quem fui.

FICARAM-ME AS PENAS

O pássaro fugiu, ficaram-me as penas
da sua asa, nas mãos encantadas.
Mas, que é a vida, afinal? Um vôo, apenas.
Uma lembrança e outros pequenos nadas.

Passou o vento mau, entre açucenas,
deixou-me só corolas arrancadas...
Despedem-se de mim glorias terrenas.
Fica-me aos pés a poeira das estradas.

A água correu veloz, fica-me a espuma.
Só o tempo não me deixa coisa alguma
até que da própria alma me despoje!

Desfolhados os últimos segredos,
quero agarrar a vida, que me foge,
vão-se-me as horas pelos vãos dos dedos.

PECADO ORIGINAL
O dia nos espia... novamente.
Mas, ó incrível morena de olhar verde,
fecha os teus olhos pra fingir que é noite.
E teremos a noite, duas, três vezes,
quantas vezes fecharmos nossos olhos
na quentura de um beijo. Porque a noite
é uma pequena invenção de nós dois...
Há um momento de treva em cada beijo
e uma risada matinal depois,
do dia, debruçado na jane1a,
que nos espia, e quer saber de tudo
o que se passa agora entre nós dois.
Fecha os olhos de novo, e eu te darei
a noite que ainda mora atrás do dia ...

Da fase nacionalista do Modernismo, temos este poema integrado a um modo de viver do interior do Brasil. O imigrante que chegara para repor a mão-de-obra escrava foi um dos temas que Cassiano Ricardo adotou para ilustrar o seu amor pelo país, que o poeta retrata com muito conhecimento e vivência na labuta das plantações do interior paulista:

A FILHA DO IMIGRANTE
Eu fui buscar maracujás e vi no mato a loura filha
do imigrante.
(Os gafanhotos de esmeralda com pijamas amarelos ou vermelhos surpreendidos por meu passo davam saltos sobre a grama em trampolins feitos de folha.
E como bichos agarrava-se ao meu corpo uma porção
de carrapichos.) .
Eu fui buscar maracujás e vi no mato a loura filha
do imigrante.

Sua figura me ficou quente de sol naquele dia todo
branco, na moldura do barranco, dentre as árvores
festivas com cabelos de fogueira e com pestanas tão torradas como longas sempre-vivas...
Eu fui buscar maracujás e vi no mato a loura filha
do imigrante.

As bananeiras eram pássaros gigantes de asas verdes
tatalantes que pousavam pela grata em procissão e conservavam a asa aberta e o bico rubro em coração
a levantar no vôo imenso qualquer coisa que ficara
sobre o chão! .

E então
uma dourada mamangava
ferrotoou-me o coração...

É interessante comparar os dois poemas seguintes, ambos com o mesmo título, LADAINHA. O primeiro é da fase nacionalista do Modernismo; o outro, do Experimentalismo dos anos 60:

LADAINHA
Por se tratar de uma ilha deram-lhe o nome de Ilha de Vera-Cruz.
Ilha cheia de graça
Ilha cheia de pássaros
Ilha cheia de luz.

Ilha verde onde havia
mulheres morenas e nuas
anhangás a sonhar com histórias de luas
e cantos bárbaros de pajés em poracés batendo os pés.

Depois mudaram-lhe o nome
pra Terra de Santa Cruz.
Terra cheia de graça
Terra cheia de pássaros
Terra cheia de luz.

A grande Terra girassol onde havia guerreiros de tanga
e onças ruivas deitadas à sombra das árvores mosqueadas de sol.

Mas como houvesse, em abundância,
certa madeira cor de sangue cor de brasa
e como o fogo da manhã selvagem
fosse um brasido no carvão noturno da paisagem,
e como a Terra fosse de árvores vermelhas
e se houvesse mostrado assaz gentil,
deram-lhe o nome de Brasil.

Brasil cheio de graça
Brasil cheio de pássaros
Brasil cheio de luz.

LADAINHA
Por que o raciocínio,
os músculos, os ossos?
A automação, ócio dourado.
O cérebro eletrônico, o músculo
mecânico
mais fáceis que um sorriso.

Por que o coração?
O de metal não tornará o homem
mais cordial,
dando-lhe um ritmo extra-
corporal?

Por que levantar o braço
para colher o fruto?
A máquina o fará por nós.
Por que labutar no campo, na cidade?
A máquina o fará por nós.
Por que pensar, imaginar?
A máquina o fará por nós.
Por que fazer um poema?
A máquina o fará por nós.
Por que subir a escada de Jacó?
A máquina o fará por nós.

Ó máquina, orai por nós.

Um dos poemas mais bem acabados e, por isso mesmo, representativo da estética de Vanguarda, Poesia Concreta, Concretismo, ou Experimentalismo, como quer que se denomine, é sem dúvida o poema Rotação. Nele, Cassiano Ricardo demonstra ter assimilado a nova fase da atual poesia brasileira:

ROTAÇÃO

a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova espera
me ensina
de novo a esperança
na esfera

a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
a esperança
]a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
uma nova esperança
na esfera

a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
uma nova esperança
na esfera


sábado, 24 de janeiro de 2009

MENOTTI DEL PICCHIA

Menotti del Picchia (São Paulo, 20.03.189223.08.1988) é um daqueles poetas da Semana de Arte Moderna que ficaram um pouco esquecidos. Talvez isso se deva à dissensão com o grupo que se impôs como o principal do Modernismo, com Mário e Oswald de Andrade à frente. Nada disso, porém, tira o valor que a sua poesia ostenta.
Como a maioria dos poetas daquela época, Menotti tinha vindo de movimentos estéticos anteriores, principalmente do Parnasianismo e do Simbolismo. Às vezes esses poetas praticavam uma espécie de síntese dessas duas tendências. Assim, é comum encontrar-se o Soneto, como uma das formas recorrentes na poesia desses autores.
O Soneto é uma forma universal e atemporal. Desde a época do Renascimento com a poesia clássica, quando surgiu até os nossos dias, ele sempre terá cultores e admiradores.
Pessoalmente, prefiro para a nossa época os poemas livres, como os dois últimos destes três. Sinto que neles Menotti se manifesta com mais espontaneidade.

SONETO

Soneto! Mal de ti falem perversos

que eu te amo e te ergo no ar como uma taça.
Canta dentro de ti a ave da graça
na gaiola dos teus quatorze versos.

Quantos sonhos de amor jazem imersos
em ti que és dor, temor, glória e desgraça?
Foste a expressão sentimental da raça
de um povo que viveu fazendo versos.

Teu lirismo é a nostálgica tristeza
dessa saudade atávica e fagueira
que no fundo da raça nos verteu

a primeira guitarra portuguesa
gemendo numa praia brasileira
naquela noite em que o Brasil nasceu...

NIRVANA

Quisera ficar a teu lado

No grande êxtase pacífico
do nosso silêncio.
Continuar indefinidamente
o diálogo mudo dos nossos olhos.

Quisera
diluir-me em ti como um aroma no vento
como dois rios que fundem suas águas
no abraço do mesmo leito
e correm para o mesmo destino...

Somos duas árvores solitárias
que entrelaçam suas ramas:
à mesma brisa estremecem
florescem
envelhecem
e morrem...

POEMA XXX

Encontraremos o amor depois que um de nós abandonar
os brinquedos.
Encontraremos o amor depois que nos tivermos despedido
E caminharmos separados pelos caminhos.
Então ele passará por nós,
E terá a figura de um velho trôpego,
Ou mesmo de um cão abandonado,
O amor é uma iluminação, e está em nós, contido em nós,
E são sinais indiferentes e próximos que os acordam do
seu sono subitamente.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

GILKA MACHADO


GILKA MACHADO
Em tempos de recordar Maysa, cantora polêmica e avançada para a sua época, (Maysa, quando fala o coração), devemos lembrar também de Gilka Machado (Rio de Janeiro, 12.03.1893 – 11.12.1980). Combatida pelo grupo da Semana de Arte Moderna, Gilka soube impor-se por sua determinação na luta em favor da libertação da mulher do pensamento retrógrado de muitos intelectuais da época.
Escreveu versos sob a influência do Simbolismo e que foram considerados escandalosos no começo do século XX, pelo marcante erotismo. Como mulher que se impunha ao seu tempo, não se abateu pelas críticas e continuou a escrever sobre a condição feminina.
Suas principais obras foram: Cristais Partidos, 1915; Estados de Alma, 1917; Mulher Nua, 1922; Meu Glorioso Pecado, 1918; Carne e Alma, 1931; Sublimação, 1928; Meu Rosto, 1947; Velha Poesia, 1968; Poesias Completas, 1978.
Há na poesia de Gilka Machado um erotismo e uma audácia que desafiavam os preceitos e a conduta moral de sua época. É considerada a pioneira no emprego da sensualidade, na poética feminina brasileira.

LEMBRANÇAS
Teus retratos — figuras esmaecidas;
mostram pouco, muito pouco do que foste.
Tuas cartas — palavras em desgaste,
dizem menos, muito menos
do que outrora me diziam
teus silêncios afagantes...
Só o espelho da minha memória
conserva nítida, imutávela projeção de tua formosura,
só nos folhos dos meus sentidos
pairam vívidas
em relevo
as frases que teu carinho
soube nelas imprimir.
Sou a urna funerária de tua beleza

que a saudade
embalsamou.

Quando chegar o meu instante derradeiro

só então, mais do que eu,
tu morrerás

em mim.

SAUDADE
De quem é esta saudadeque meus silêncios invade,
que de tão longe me vem?

De quem é esta saudade,
de quem?
Aquelas mãos só carícias,
Aqueles olhos de apelo,
aqueles lábios-desejo...
E estes dedos engelhados,
e este olhar de vã procura,e esta boca sem um beijo...
De quem é esta saudadeque sinto quando me vejo?

SENSUAL
Quando, longe de ti, solitaria, medito
neste affecto pagão que envergonhada occulto,
vem-me ás narinas, logo, o perfume exquisito
que o teu corpo desprende e ha no teu proprio vulto.

A febril confissão deste affecto infinito
ha muito que, medrosa, em meus labios sepulto,
pois teu lascivo olhar em mim pregado, fito,
á minha castidade é como que um insulto.

Si acaso te achas longe, a collossal barreira
dos protestos que, outr’ora, eu fizera a mim mesma
de orgulhosa virtude, erige-se altaneira.

Mas, si estás ao meu lado, a barreira desaba,
e sinto da volupia a ascosa e fria lêsma
minha carne polluir com repugnante baba...